6. Do software livre como principal meio de concretização do princípio constitucional da eficiência
Entre outros obstáculos, normalmente se alega que a preferência legal pelo negócio do software livre infringiria o princípio da eficiência (art. 37, caput, da Constituição da República) e, também, o da economicidade.
Com efeito, desde a Emenda nº 19/98, que carreou à Carta da República o princípio da eficiência, especificamente no caput do art. 37, de sorte a integrá-lo ao bloco de controle constitucional – de acordo com a linguagem portuguesa –, inaugurou-se uma nova era da Administração Pública pátria. De uma gestão estatal que nasceu num contexto patrimonialista e passou por outro, o burocrático, chega-se ao cenário da eficiência, no qual se delineia um Estado enxuto, ágil e dinâmico, próximo das texturas econômicas do próprio setor privado.
Pois bem, se a opção pelos direitos emergentes dos programas abertos não se apresentasse como a melhor otimização de disponibilidades financeiras, bem como o meio mais seguro de desenvolvimento de atividades, sejam econômicas ou não, o ambiente empresarial, em que a correta alocação de recursos norteia a respectiva lógica, não os acolheria nem os estimularia. Se assim é no contexto do mercado, parece acertada, também, a preferência do Estado pelos softwares não proprietários.
Ao tecer considerações sobre a correlação entre o princípio da eficiência e o software livre, Ivo Teixeira Gico Júnior, mestre pela Columbia University (USA), esclarece:
"Da própria análise da definição de software livre podemos inferir suas vantagens sobre os demais tipos de software, os programas proprietários. Primeiro, a administração que o adota não se submete a qualquer condição ou restrição de uso que não aquele ditado pelo interesse público. Segundo, como o acesso ao código-fonte é permitido, ou seja, sabe-se o que está por trás do programa, qualquer um pode estudá-lo, adaptá-lo a suas necessidades particulares e melhorá-lo em caso de falhas. Sua adoção representa, em última análise, uma transferência de tecnologia. Por último, mas não menos importante, como não se paga pela licença do software livre, não só o custo de aquisição é nulo, como o de aquisição de equipamentos (hardware) é muito menor, uma vez que tais programas exigem menor capacidade de processamento. É aqui que o princípio da eficiência se faz sentir de maneira mais forte.
O mercado brasileiro de software movimentou mais de US$ 3,2 bilhões em 2000. Dessa quantia, US$ 1 bilhão refere-se à aquisição de licenças de software proprietário, sendo o governo federal responsável por mais de R$ 200 milhões por ano. Uma vez que a adoção do software livre representa real possibilidade de redução de custos, da exegese do princípio da eficiência resta cogente sua adoção pela administração, independentemente de outros fundamentos como a democratização do conhecimento, desenvolvimento da indústria local, independência tecnológica, soberania, segurança nacional (já que é o único efetivamente auditável) e, com maior razão, se levarmos em consideração o tão propalado princípio da razoabilidade." [16]
Não é, entretanto, apenas o argumento econômico que orienta a eficiência da opção pelos softwares abertos. Primeiramente, a segurança do armazenamento de informações e de dados públicos reclama o domínio dos códigos dos programas, bem assim a plena ciência dos trâmites correspondentes, sob pena de o Estado ver violados seus informes mais íntimos pela sua própria rede de tecnologia, acessível por "portas traseiras" – como fala o legislador português – unicamente pelo autor do programa fechado.
A par disso, consoante já mencionado, somente os softwares livres permitem a plena concretização do princípio democrático e da cidadania, por meio do compartilhamento do código fonte utilizado pelo ente estatal na consecução de certas tarefas, acarretando, assim, a transparência que deve permear a Administração. Ademais, essa socialização do código permite uma interação criativa entre o agente público e o programa, de modo a permitir uma total adequação deste às necessidades materiais do correlato órgão.
Vale apontar, ainda, que, em eventual inadimplemento do contratado pela Administração – para exemplificar, suponha-se que se negue a proceder à manutenção convencionada do programa adquirido –, apenas o software livre permitiria a encampação de que cuida o art. 58, V, da Lei nº 8.666/93. O segredo que permeia o código dos programas proprietários poderia comprometer, na hipótese, a continuidade do serviço público, o que, por certo, não sucederia com aqueles abertos.
A propósito, um dos obstáculos que alguns menos avisados levantam contra a economicidade e a eficiência da utilização de softwares livres pela Administração refere-se a uma suposta ausência de responsável por ocasionais vícios ou falhas dos sistemas. Trata-se de premissa equivocada, pois, ao licitar a aquisição de programas, o Estado poderá valer-se da faculdade de exigir do respectivo distribuidor as garantias necessárias à plena execução do objeto, nos termos do art. 54, VI, da Lei 8.666/93.
Com essas considerações, mostra-se inegável o fato de o software livre ser, no universo informático, o principal meio – e, talvez, até o único – capaz de atender tanto ao princípio da eficiência, quanto ao da economicidade.
Não apenas isso: os programas abertos, por todas as suas peculiaridades, constituem a necessária opção à qual deve proceder o Poder Público, cujos agentes efetivamente se pautam pela concretização dos valores estatuídos na Carta da República.
Notas
01 Veja-se o inteiro teor da lei impugnada na ADI nº 3.059, in verbis: "Art. 1º A administração pública direta, indireta, autárquica e fundacional do Rio Grande do Sul, assim como os órgãos autônomos e empresas sob controle do Estado utilizarão preferencialmente em seus sistemas e equipamentos de informática programas abertos, livres, de restrições proprietárias quanto a sua cessão, alteração e distribuição.
§ 1º Entende-se por programa aberto aquele cuja licença de propriedade industrial ou intelectual não restrinja sob nenhum aspecto da cessão, distribuição, utilização ou alteração de suas características originais, assegurando ao usuário acesso irrestrito e sem custos adicionais ao seu código fonte, permitindo a alteração parcial ou total do programa para seu aperfeiçoamento ou adequação.
§ 2º Para fins de caracterização do programa aberto, o código fonte deve ser o recurso preferencial utilizado pelo programador para modificar o programa, não sendo permitido ofuscar sua acessibilidade, nem tampouco introduzir qualquer forma intermediária como saída de um pré-processador ou tradutor.
§ 3º Quando da aquisição de softwares proprietários, será dada preferência para aqueles que operem em ambiente de multiplataforma, permitindo sua execução sem restrições em sistemas operacionais baseados em software livre.
§ 4º A implantação da preferência prevista nesta lei será feita de forma paulatina, baseada em estudos técnicos e de forma a não gerar perda de qualidade nos serviços prestados pelo Estado.
Art. 2º As licenças de programas abertos a serem utilizados pelo Estado deverão, expressamente, permitir modificações e trabalhos derivados, assim como a livre distribuição destes nos mesmos termos da licença do programa original.
Parágrafo único – Não poderão ser utilizados programas cujas licenças:
I – impliquem qualquer forma de discriminação a pessoas ou grupos;
II – sejam específica para determinado produto, impossibilitando que programas derivados deste tenham a mesma garantia de utilização, alteração, distribuição; e
III – que restrinjam outros programas distribuídos conjuntamente.
Art. 3º Será permitida a contratação e utilização de programas de computador com restrições proprietárias ou cujas licenças não estejam de acordo com esta Lei, nos seguintes casos:
I – quando o software analisado atender a contento o licitado ou contratado, com reconhecidas vantagens sobre os demais softwares concorrentes, caracterizando um melhor investimento para o setor público.
II – quando a utilização de programa livre e/ou código de fonte aberto causar incompatibilidade operacional com outros programas utilizados pela administração.
Art. 4º O Estado regulamentará as condições, prazos e formas em que fará a transição, se necessária, dos atuais sistemas e programas de computador para aqueles previstos no art. 1º, quando significar redução de custos a curto e médio prazo, e orientará as licitações e contratações, realizadas a qualquer título, de programas de computador.
Parágrafo único – A falta de regulamentação não impedirá a licitação ou contratação de programas de computador na forma desta Lei.
Art. 5º Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.
Art. 6º Revogam-se as disposições em contrário."
02 Como assinala Joaquim Falcão, Diretor da Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas e Professor de Direito Constitucional da UERJ, in verbis: "Mas afinal o que realmente que um software é livre? O que é software livre? Na verdade, essa é a tradução de uma expressão americana: free software. Acontece que, em inglês, a palavra free pode significar tanto livre como grátis. Essa distinção é fundamental para colocar um pouco de bom senso no crescente e saudável debate entre o software livre e o software proprietário no Brasil e no mundo." (Livre ou gratuito? Disponível em: www.femperj.org.br/jornal/05062004.htm; acesso em 12/11/2004).
03 ROCHO, Luciano Alberto. Software livre como alternativa viável na câmara dos deputados. Brasília: 2003, p. 08.
04O fenômeno do software livre. In: Revista Info. Editora Abril: fevereiro de 2004, p. 61.
05 HEXSEL, Roberto A. Software livre: Propostas de ações de governo para incentivar o uso do software livre. Curitiba, 2002, p.1.
06 Essas informações foram retiradas do site da Association Francophone des Utilisateurs de Linux et des Logiciels Libres (Disponível em: www.aful.org/politique/references.html; acesso em: 21/11/04).
07 Tradução livre do original: "El presidente de la República, Hugo Chávez Frías, anunció que el Gobierno emitirá un decreto mediante el cual se establecerá la utilización de software libre para todas los organismos y dependencias de la administración pública." (Disponível em: www.softwarelibre.cl/modules.php?op=modload&name=News&file=article&sid=411; acesso em: 21/11/2004).
08 Tradução livre do original: "Para grantizar el libre acceso de los ciudadanos a la información pública, resulta indispensable que la codificación de los datos no esté ligada a un único proveedor y menos a formatos no estándar que algunos proveedores imponen por supuesto ‘dominio’ en el mercado. El uso de formatos estándar y abiertos permite garantizar este libre acceso a la información independentemente de si el proveedor desea o no continuar brindando los servicios, logrando si fuera necessario la creación de software compatible a todo software que respete el estándar mundial de la industria. Para garantizar la perenidad de lod datos públicos, es indispensable que la utilización y el mantenimiento del software no dependan de la buena voluntad de los proveedores, ni delas condiciones monopólicas, impuestas por éstos. Se precisan sistemas cuya evolución natural pueda ser garantizada gracias a la disponibilidad del código fuente. Para garantizar la seguridad nacional, resulta indispensable contar con sistemas desprovistos de elementos que permitan el control a distancia o la transmisión no deseada de información a terceros. Por lo tanto, se requieren sistemas cuyo código fuente sea libremente accesible al público para permitir su examen por el proprio Estado, los ciudadanos y un gran número de expertos independientes en el mundo." (Disponível em: www.softwarelibre.cl/modules.php?op=modload&name=Downloads&file=index&req=viewdownload&cid=17; acessado em: 21/11/04).
09 Disponível em: http://www3.parlamento.pt/plc/iniciativa.aspx?id_ini=19247; Acesso em: 20/11/04.
10 Disponível em: http://www3.parlamento.pt/plc/iniciativa.aspx?id_ini=19247; Acesso em: 20/11/04.
11 LARENZ, Karl. Metodologia da ciência do direito. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1997, p. 439.
12 Tradução livre do original: "D’un point de vue juridique, un logiciel libre est avant tout un logiciel protégé par le droit d’auter et soumis à une licence qui le réglemente et en délimite les droits et obligations afférents. Souvent opposé au logiciel propriétaire, qui habituellement ne comporte que des droits d’usage, le logiciel libre s’en distingue par les droits plus importants accordés par l’auter du logiciel aux bénéficiaires de la licence. Un logiciel libre est donc bien soumis au droit d’auter et au code de la propriété intellectuelle. Sa licence permet ainsi d’utiliser un logiciel, mais elle permet également au bénéficiaire de la licence d’étudier le fonctionnement du logiciel – ce qui est parfois possible sous certaines conditions avec les logiciels propriétaires – de modifier le logiciel pour son usage propre et de redistribuer les modifications qu’il a effectuées sur le logiciel – ce qui est généralement interdit avec les logiciels propriétaires." (Guide de choix et d’usage de licences de logiciels libres pour les administrations. Disponível em: http://softwarelibre.cl/modules.php?op=modload&name=Downloads&file=index&req=viewdownload&cid=13; Acesso em: 21/11/04).
13 MIRANDA, Jorge. Manual de direito constitucional. Tomo IV. Coimbra: Coimbra Editora, 1993, pp. 201/202.
14 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Conteúdo jurídico do princípio da igualdade. São Paulo: Malheiros, 1999, p. 41.
15O fenômeno do software livre. In: Revista Info. Editora Abril: fevereiro de 2004, p. 58.
16 Princípio da eficiência e o software livre. Disponível em: jus.com.br/revista/doutrina/texto.asp?id=2970; Acessado em: 11/11/04.