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Transplantes de órgãos e tecidos:

uma abordagem constitucional

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3 DO TRANSPLANTE DE ÓRGÃOS E TECIDOS

            O transplante é uma modalidade terapêutica em que o sucesso, na maioria das vezes, ao contrário das outras terapias, depende mais dos outros – e quase sempre de forma involuntária – do que da vontade do doente e dos médicos, pois, sem um doador, não há a possibilidade de realização de um transplante. O leitor de um jornal de grande circulação, comovido com a situação dos transplantes em nosso país, e como forma de incentivo à doação, enviou o seguinte texto ao Diário Popular:

            Um dia, um doutor determinará que meu cérebro deixou de funcionar e que basicamente minha vida cessou. Quando isso acontecer, não tentem introduzir vida artificial por meio de uma máquina. Ao invés disso, dêem minha visão ao homem que nunca viu o sol nascer, o rosto de um bebê ou o amor nos olhos de uma mulher. Dêem meu coração a uma pessoa cujo coração só causou intermináveis dores. Dêem meus rins a uma pessoa que depende de uma máquina para existir, semana a semana. Peguem meu sangue, meus ossos, cada músculo e nervos de meu corpo e encontrem um meio de fazer uma criança aleijada andar. Peguem minhas células, se necessário, e usem de alguma maneira que um dia um garoto mudo seja capaz de gritar quando seu time marcar um gol, e uma menina surda possa ouvir a chuva batendo na sua janela. Queimem o que sobrou de mim e espalhem as cinzas para o vento ajudar as folhas nascerem. Se realmente quiserem enterrar alguma coisa, que sejam minhas falhas, minhas fraquezas e todos os preconceitos contra meus semelhantes. Dêem meus pecados ao diabo e minha alma a deus. Se quiserem lembrar de mim, façam-no com um ato bondoso ou dirijam uma palavra delicada a alguém que precise de vocês. Se vocês fizerem tudo o que estou pedindo, viverei para sempre. [27]

            Os transplantes de órgãos e tecidos [28] encontram-se em voga há muito tempo, mas tiveram a sua prática eficaz nas duas últimas décadas do século passado. A sua idéia vem desde o início da história da civilização mundial, tendo suas primeiras experiências realizadas registradas, sendo muitas vezes lendárias, com registros até mesmo antes de Cristo, inclusive bíblicos. [29]

            [...] há trezentos anos antes de cristo, a tradição chinesa aponta a troca de órgãos entre dois irmãos feita pelo médico Pien Chiao. Estudos arqueológicos feitos no Egito, na Grécia e na América pré-colombiana registraram o transplante de dentes. Na era medieval, os santos médicos Cosme e Damião efetuaram o transplante de perna de um etíope para um branco. [30]

            No decorrer do século passado houveram muitas experiências animadoras com relação aos transplantes, mas a sobrevida dos receptores era ínfima em função da rejeição. Desde 1984, passados longos anos de estudo, os transplantes de órgãos e tecidos começaram a ter resultados positivos, isso em função das drogas imunosupressoras, que são aquelas que evitam a rejeição do órgão transplantado. Consolidaram-se todos os tipos de transplantes, com destaque ao transplante inter-vivos, que é realizado no caso de órgãos duplos ou quando esses possam ser regenerados.

            No entanto, tem-se por regra a doação de órgãos e tecidos após a ocorrência da morte encefálica do doador. A conceituação de morte encefálica, já pacificada tecnicamente, nos meios médico e jurídico através da Resolução do Conselho Federal de Medicina nº 1.480 de 1997, ainda é um mito entre a maioria dos doadores em potencial, o que causa a grande negativa quando do fato ocorrido, sendo esta negativa agravada, ainda, com o medo do tráfico ilegal de órgãos.

            Com relação às religiões, a maioria incentiva a doação de órgãos e tecidos, considerando o ato uma decisão individual de seus seguidores. Entretanto outras, como a Testemunhas de Jeová, impunham insuperáveis empecilhos à utilização dos órgãos.

            Tem-se, assim, perdas humanas ou declínio nas condições de vidas que poderiam ser salvas ou ter maior dignidade. O tema foi objeto, no mundo jurídico recente, de duas legislações específicas: a Lei nº. 9.434, de 4 de fevereiro de 1997, (a qual trouxe grande flexibilidade na oportunização da doação, cabendo ao doador, em vida, dispor, ou não, de seus órgãos, mediante registro nos documentos de identidade); e a Lei nº. 10.211/2001, (que alterou alguns dispositivos da Lei anterior, inserindo a necessidade de autorização da família do morto para a retirada de seus órgãos, mesmo que este tenha manifestado de forma expressa em vida a opção de "doador", ou "não doador" de órgãos e tecidos).

            Desta forma, pretende-se demonstrar que as alterações ocorridas na atual Lei, embora tenha entendimentos doutrinários contrários, não vislumbram os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana do doador e do receptor em potencial.

            A lei determina que a doação de órgãos seja gratuita, como sendo um ato altruísta por parte do doador. O art. 1º, "caput", da Lei. 9434 de 04/02/1997, dispõe o seguinte: "a disposição gratuita de tecidos órgãos e partes do corpo humano, em vida ou post mortem, para fins de transplante e tratamento, é permitida na forma desta Lei".

            O surgimento do mercantilismo na área dos transplantes tem levado grande parte dos doadores potenciais a abandonar a decisão de doar seus órgãos. Elucida Bernard que "os órgãos, tecidos e as células do homem fazem parte de seu ser, de sua pessoa, participam de sua dignidade. Devem ser respeitados. Não podem ser objetos de comércio". [31]

            Para Almeida, a maior fator que agrava o tráfico de órgãos é a nossa legislação: "Se a lei realmente suprisse a procura de órgãos, não existiria tráfico de órgãos, mas como a falta de órgãos é um problema crítico, os traficantes usam isto para ganhar dinheiro, enquanto os que podem pagar ‘compram’ a sua saúde". [32]

            O legislador, no art. 3º da Lei nº 9.434 de 04/02/1997, pretendeu dificultar o tráfico de órgãos e tecidos ao determinar que o diagnóstico de morte encefálica deve ser realizado por dois médicos não participantes das equipes de remoção de órgãos e transplante, devendo um deles ser especialista em neurologia. Por este mesmo motivo, a lei determinou também, que os prontuários médicos e demais documentos referentes a este procedimento sejam guardados por pelo menos cinco anos.

            Não há como negar que o tráfico de órgãos está diretamente ligado à pobreza e má estrutura para captação e transplantes em cada país. Inclusive falhas na legislação, falta de programas que incentivem a doação e que, principalmente, esclareçam as principais dúvidas das pessoas acerca da captação de órgãos, são os principais fatores desse quadro desolador da falta de doadores e do excesso de receptores. Segundo a doutrina, os países em que mais ocorre o tráfico de órgãos, onde há uma abominável relação com a miséria e a pobreza dos doadores, ou vítimas do saque são: Brasil, China e Índia.

            Segundo as leis de comércio, onde há desequilíbrio entre a oferta e a demanda, surgem distorções que deságuam em delitos para suprir a necessidade. Em Brasil, é notória a dificuldade em conseguir órgãos para transplantes. O desequilíbrio entre doadores e receptores gera um a estrutura de comercialização, contrabando, tráfico ou comércio clandestino em função dessa dificuldade.

            Um pacote de leis decretos, portarias, resoluções, medida provisória e, finalmente, a atual lei 10.211 de 23 de março de 2001 regulam a doação de órgãos e transplantes em nosso país, trazendo confusão entre os leigos, que são geralmente os doadores e receptores em potencial, e muitas vezes deixam de autorizar a doação de órgãos e tecidos de algum familiar por não entenderem a legislação em vigor.

            A lei 5.479 de 10/03/1992 trazia confusão quanto os critérios da doação e também a quem pertencia o cadáver. Quando aprovada pelo Congresso nacional a lei nº 8.489 de 17/11/1992, os procedimentos estabelecidos acerca da doação de órgãos e tecidos tomaram maior clareza. Mas manteve-se a mesma deficiência da lei anterior quanto à manifestação da vontade do doador em potencial, sendo que o doador deveria aceitar espontaneamente a postura de ser doador de órgãos e tecidos, denominada como doação voluntária. Se o doador não manifestasse em vida a sua opção, a família era consultada. Essa prática vigorou no Brasil até 1997.

            Após entrou em vigor a Lei nº 9.434 de 4 de fevereiro de 1997, que teve a sua redação modificada pela lei nº 10.211 de 23 de março de 2001, sendo que esta teve a sua principal alteração com relação à obrigatoriedade de consulta à família [33] do cadáver para que autorize a retirada, ou não, dos órgãos deste, ainda que o mesmo tenha manifestado de forma expressa em vida a vontade de ser doador de órgãos e tecidos. Assim sendo, foi adotado um critério único em todo o mundo, pois associa o consentimento presumido fraco e a exigência da participação da família ou do responsável pelo doador.

            No entendimento de Goldim o critério adotado pela atual lei é bastante polêmico, sendo um retrocesso em nossa legislação e trazendo à tona diversos questionamentos:

            a atual proposta legal, em vigor desde março de 2001, onde só a família pode decidir, pode trazer novas questões. A lei estabelece que a vontade do doador, consignada nos documentos estabelecidos pela lei do transplantes, não tem mais validade. Quem responde pela pessoa falecida? Pela lei é o cônjuge ou outros familiares. Quem tem o poder de decisão quando a família tem posições divergentes entre doar e não-doar? A Bioética deve refletir e discutir estas questões auxiliando as pessoas a tomarem suas decisões. Uma reflexão transcultural destes aspectos pode auxiliar no esclarecimento desta questão. [34]

            No que concerne à autorização da família para extração dos órgãos do doador morto, utilizam-se as palavras de Nanni: "o cadáver é o prolongamento da pessoa humana, não estando à disposição de terceiros, com exceção se assim deliberar a pessoa". [35]

            Diante do exposto, pode-se afirmar que as alterações introduzidas pela atual Lei de transplantes no se refere à autorização da família do doador, infringem os direitos fundamentais já citados. Acredita-se que deve haver um meio-termo entre a redação antiga do art. 4º e a redação atual.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

            Numa sociedade em que cada vez mais se ampliam os avanços tecnológicos e as inovações biomédicas, urge um controle (jurídico) em relação a isto, visto que nem sempre aquilo que é tecnicamente possível é moral e juridicamente admissível. Assim, o transplantes de órgãos é um desses fenômenos que surgem a partir do conflito entre liberdade científica e limites éticos-jurídicos.

            É, sem dúvida paradoxal essa dicotomia entre ciência-direito, a qual revela um caráter cada vez mais complexo e sistêmico do conhecimento na contemporaneidade em que a Ciência Jurídica muitas vezes tem de dar conta de problemas que até há pouco tempo nem mesmo eram suscitados nos círculos acadêmicos, muito menos no processo de criação legislativa, devendo os Poderes, mormente o Legislativo na criação e o Judiciário na interpretação/aplicação da lei, atualizarem-se em relação às novas relações jurídicas de cunho transindividual que exsurgem no seio social.

            Em frente a esta problemática, faz-se necessária, partindo da legislação existente sobre o tema, uma interpretação constitucionalizante acerca do transplante de órgãos e tecidos de modo a concretizar a Constituição Federal de 1988, especialmente no que tange aos seus princípios fundamentais, como a dignidade humana e o direito à vida.

            O Legislador ordinário não está autorizado a ultrapassar (nem minorar) o texto constitucional, pois a Constituição vincula a ação à seara do constitucionalismo dirigente de Joaquim Gomes Canotilho. Assim é que se adentrará no art. 4o da Lei nº 9.434 de 1997 e nas alterações intruduzidas neste artigo pela Lei nº 10.211 de 2001, suscitando-lhes uma Interpretação conforme a Constituição no sentido de acrescentar (sem modificar-lhe o texto) o seguinte trecho: "(Salvo manifestação de vontade do doador ainda em vida, devidamente documentada,) a retirada de tecidos, órgãos e partes do corpo de pessoas falecidas para transplantes ou outra finalidade terapêutica, dependerá da autorização do cônjuge ou parente, maior de idade, obedecida a linha sucessória, reta ou colateral, até o segundo grau inclusive, firmada em documento subscrito por duas testemunhas presentes à verificação da morte". Foi utilizado este modo de interpretação a este artigo em face dos direitos fundamentais da pessoa humana, tais como direitos de personalidade, integridade física e poder de disposição do próprio corpo e, em especial, a liberdade de consciência.

            Ocorreu, assim, um grande retrocesso legislativo. Tem-se evidenciado desrespeito ao Principio Fundamental da Dignidade da Pessoa Humana na medida em que pessoas necessitadas não terão acesso a uma vida prolongada, melhor e mais dignamente vivida, bem como caracteriza-se a infirngência do direito fundamental à vida do receptor que aguarda por um órgão que na maioria das vezes não chega a tempo de salvá-la. Também se observa a infringência de alguns direitos fundamentais, como a liberdade de consciência, poder de disposição sobre o próprio corpo, bem como a integridade física do doador que manifestou a sua vontade de ser, ou não doador em vida e, quando da sua morte, a família tem o direito de ir contra essa decisão.


REFERÊNCIAS

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            BERNARD, Jean. A bioética. São Paulo: Editora Ática, 1998.

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            ____. Lei nº. 10.211, de 23 de março de 2001. Altera dispositivos da lei nº 9.434. de 4 de fevereiro de 1997, que dispõe sobre a remoção de órgãos, tecidos e partes do corpo humano para fins de tratamento. Disponível em: . Acesso em: 11/11/2004.

            BRAUNER, Maria Cláudia Crespo. Nascer com dignidade frente à crescente instrumentalização da reprodução humana. Rev. Direito, Santa Cruz do Sul, n. 14., jul./dez. 2000. Santa Cruz do Sul: Edunisc.

            CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 2. ed. Coimbra: Livraria Almedina, 1998.

            DINIZ, Maria Helena. O Estado atual do biodireito. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2000.

            FABRIZ, Daury César. Bioética e direitos fundamentais. Belo Horizonte: Mandamentos, 2003, p. 355.

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            JUNGES, José Roque. Bioética: perspectivas e desafios. São Leopoldo: Editora da Universidade do Rio dos Sinos, 2003.

            NANNI, Giovanni Ettore. A autonomia privada sobre o próprio corpo, cadáver, os órgãos e tecidos diante da Lei Federal nº. 9.3434/97 e a Constituição Federal. In: LOTUFO, Renan (coord.). Direito Civil Constitucional: caderno 1. São Paulo: Max Limonad, 1999.

            NUNES, Rizatto. O Princípio Constitucional da Dignidade da Pessoa Humana. Doutrina e Jurisprudência. São Paulo: Saraiva, 2002.

            SÁ, Maria de Fátima Freire de. Biodireito e direito ao próprio corpo: doação de órgãos, incluindo o estudo da Lei n. 9.434/97, com as alterações introduzidas pela Lei n. 10.211/01. 2. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2003

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            SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 20. ed. São Paulo: Malheiros, 2002.

            SINGER, Peter (In: Ética prática. São Paulo: Martins Fontes, 2002, pp. 93-118.

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Sobre os autores
Andiara Roberta Silva

bacharel em Direito pela Universidade de Santa Cruz do Sul (UNISC), pesquisadora nas áreas de bioética e direito ambiental

Theobaldo Spengler Neto

mestre em Direito pela Universidade de Santa Cruz do Sul (UNISC)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVA, Andiara Roberta ; SPENGLER NETO, Theobaldo. Transplantes de órgãos e tecidos:: uma abordagem constitucional. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 857, 5 nov. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/7541. Acesso em: 26 abr. 2024.

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