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Reflexões sobre o Direito, o juiz e a função de julgar

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02/11/2005 às 00:00
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§ 6. Governo de juízes? Judicialização da Política? A delicada questão da legitimidade do juiz como agente político

A crítica freqüentemente endereçada a essas posturas hermenêuticas é a de que o juiz exorbitaria suas funções, usurpando o legislador, este eleito pelo povo. A questão é ainda mais delicada nos países em que não se submetem os magistrados a processo eletivo.

Assim é que LUÍS ROBERTO BARROSO [34] recomenda ao julgador redobrada prudência e parcimônia na aplicação do princípio da proporcionalidade no controle dos atos emanados da administração ou do legislativo, pois não conta o Poder Judiciário com "o batismo da representação popular."

Para INOCÊNCIO MÁRTIRES COELHO, todavia, é possível romper o bloqueio representado pelo "coeficiente de voluntarismo que remanesce como resíduo incômodo" de todo ato de aplicação do direito, mediante: a) do ponto de vista substancial, a avaliação pela consciência jurídica geral constituída por critérios objetivos (princípios contidos nas próprias leis e acolhidos e desenvolvidos pela jurisprudência, valores éticos reconhecidos na comunidade jurídica etc. e b) do ponto de vista formal, as garantias fundamentais do processo (devido processo legal em sentido amplo (juiz natural, contraditório e ampla defesa, publicidade e motivação dos julgamentos, duplo grau de jurisdição etc.).

Com efeito, a legitimidade dos julgados haure fundamento da capacidade de o magistrado fundamentar convincentemente sua decisão. No dizer de MARIO PIMENTEL DE ALBUQERQUE [35], se a legislação pressupõe sensibilidade do legislador para encarnar a vontade popular no ato de criação do direito, mediante a elaboração de normas gerais, a jurisdição exige do órgão titular de seu exercício, para ser legítima, o requisito da jurisdicidade, cabendo-lhe velar pela exata equivalência normativa das instâncias criativa e aplicativa, por ocasião da composição judicial de conflitos intersubjetivos.

As demandas que chegam quotidianamente aos tribunais, resultantes dos vetores apontados no item 2.1 supra, constituem, indício clamoroso de que a sociedade fez do juiz representante e intérprete de uma soberania originária, não delegável ao Poder Legislativo e que diz respeito ao homem-pessoa destinatário da norma.

Eis o que sustenta ANTOINE GARAPON: [36]

Porque a legitimidade do juiz é plural – nomeação pelo poder político, reconhecimento de sua competência técnica, confirmação por sua experiência profissional – mas também, e isso é novo: interna. A legitimidade é não somente pensada em termos orgânicos, mas se prova pela exibição que faz de si mesma, dando-se a esta palavra seu significado pleno.

Assume, destarte, o magistrado, "uma tarefa não somente jurídica, mas também política, a de harmonizar a ordem jurídica de origem legislativa com as idéias dominantes sobre o que é justo em um dado meio". [37]

Tudo isso está intimamente ligado à exigência de fundamentação das decisões, que constitui importante garantia processual fundamental, na medida em que é mediante a fundamentação do julgado que o magistrado demonstrará ter observado outras garantias titularizadas pelas partes ou por terceiros.

A legitimidade das decisões judiciais – conclui-se – decorre em larga medida do devido processo legal, do processo justo, com todas as garantias decorrentes do princípio da participação democrática, entre as quais avultam o contraditório, a ampla defesa, o juiz natural, a imparcialidade e a independência do julgador. [38]


Notas

01 KLAUS STERN, O Juiz e a Aplicação do Direito In:EROS ROBERTO GRAU e WILLIS SANTIAGO GUERRA. Direito Constitucional: Estudos em homenagem a Paulo Bonavides, S.Paulo: Malheiros, 2001, p.505

02 ALEXANDRE CÂMARA, Lições de Direito Processual Civil, v.I, 12 ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005, p. 5.

03 JACQUES VAN COMPERNOLLE, Le rôle du juge dans la cité: vers un gouvernement des juges. Atas do colóquio de 12/10/2001, organizado pelo Centro de Direito Judiciário da Université catholique de Louvain e pelo Séminaire interdisciplinaire des Facultés universitaires Saint-Louis. Bruxelas: Bruillant, 2002, pp. 8-22.

04

Neste passo é de toda pertinência explicitar o que aqui se entende por crise, sob pena de comprometer-se as conclusões do estudo. Para tanto, invoca-se o magistério de CASTANHEIRA NEVES, "Entre o ‘legislador’, a ‘sociedade’ e o ‘juiz’ ou entre‘sistema’, ‘função e problema’ - os modelos atualmente alternativos de realização jurisdicional do direito". In: Boletim da Faculdade de Direito de Coimbra, v. LXXXIV. [Separata], p. 2, para quem o vocábulo "não traduz apenas o negativo substancial, a quebra anómica que se sofre e lamenta, mas sobretudo a consumação histórico cultural de um sistema, a perda contextual de sentido das referências até então regulativas - o paradigma que vigorava esgotou-se, um novo paradigma se exige." (grifou-se).

05Op.cit., p.13.

06Op.cit., p.4

07Hermenêutica e Argumentação: Uma Contribuição ao Estudo do Direito, 2ed. rev. amp. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p.260.

08La démocratie à l’épreuve de la justice. In: Ce qui a Changé dans la Justice Depuis Vingt Ans. Paris: Dalloz, 1999, p.44.

09Op.cit., p.4

10Com o final da Segunda Guerra Mundial, torna-se o Direito objeto de profundo questionamento ético. O Estado nazista mostrou de forma inequívoca a insuficiência do normativismo jurídico descolado de preocupação axiomática, de que foi vítima o próprio Kelsen, perseguido pelo Reich e suas leis anti-semitas, que o obrigaram a emigrar para os Estados Unidos (T. FERRAZ JUNIOR, Prefácio, In Fábio Ulhoa Coelho, Para Entender Kelsen, 3 ed. São Paulo: Max Limonad, 2000, p. 17). Assim é que o pensamento jusfilosófico abre-se aos valores, com inegável influência dos neokantistas alemães do início do século XX, entre os quais merece especial referência Rudolf Stammler, em virtude do reflexo de sua obra na de Larenz. A locução Direito Justo, sobre a qual trabalharia Larenz, décadas após, surge com Stammler em 1902.

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11 CASTANHEIRA NEVES, Op.cit., p.18.

12 I.M.COELHO, Interpretação Constitucional, 2 ed. rev. e aum. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2003, p. 33.

13Curso de Direito Constitucional, 10 ed. rev. at. amp.. São Paulo: Malheiros, 2000, p.232-238. Semelhante construção, aplicada aos direitos fundamentais pode-se encontrar em BOBBIO (A Era dos Direitos. Rio de Janeiro: Editora Campus, 1996, p. 28-29).

14Interpretação e aplicação da Constituição, 4 ed. rev. e atual., 2 tir.. São Paulo: Saraiva, 2002, p.246-247.

15Op. cit., p. 98.

16Veja-se, por todos, P. BONAVIDES., op.cit., pp.228-226, que apresenta inúmeras conceituações.

17Derecho Justo: fundamentos de ética jurídica, Barcelona: Civitas, 1993, Op.cit., p.34

18Op.cit., p.50-51

19Los derechos en serio, Barcelona: Ariel, 1997, p.72. A importância do pensamento de Dworkin é ainda mais notável no Direito anglo-saxônico, profundamente influenciado pelo utilitarismo. Conforme se depreende deste excerto desvia-se o foco da coletividade para assentá-lo no homem. Veja-se sobre o tema o Prefácio da obra citada, escrito por A. CASAMIGLIA.

20 Op. cit.,pp-177-208.

21Teoria de los Derechos Fundamentales, Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1993, p.86.

22 Princípio da proporcionalidade e teoria do direito. In: Eros Roberto Grau; Willis Santiago Guerra Filho [org.]. Direito Constitucional: estudos em homenagem a Paulo Bonavides. São Paulo: Malheiros, 2001, p.268.

23 Op. cit., p. 125-126.

24 Não discrepa essencialmente desse pensar LUÍS ROBERTO BARROSO (Op.cit., p.290.) que enumera como de interpretação os princípios da supremacia da Constituição, da presunção de constitucionalidade dos atos do Poder Público, da interpretação conforme a Constituição, da unidade da Constituição, da razoabilidade-proporcionalidade e da efetividade.

25 Op. cit., p. 211-215.

26 Op. cit., p. 283.

27 BONAVIDES, P. Op. cit., pp. 370-374.

28 BONAVIDES, P.. Op. cit., pp. 360-361; BARROSO, L.R.. Op. cit., pp. 222-223; COELHO, I. M., Op. cit., pp. 139-140; GUERRA FILHO, W. S.. Op. cit., p. 270

29 CASTANHEIRA NEVES, op. cit., p. 11 e BONAVIDES,P.. Op. cit., p.362.

30Op.cit., p. 396.

31 Op. cit., p.271

32Op.cit., p.112, nota 84.

33Op.cit., p. 126.

34 Op. cit., p. 225.

35 Op. cit., p. 182.

36 Op. cit., p.52.

37 CHAIM PERELMAN, Logique Juridique. Nouvelle Rhétorique, Paris: Dalloz, 1976, p.84.

38 Quanto à relação entre contraditório e democracia, NICOLÒ TROCKER, Processo civile e costituzione. Milão: Giuffrè Editori, 1974, p. 114-115, registra que uma parte autorizada da doutrina alemã (Scheuner, Simson) concebe o princípio democrático como princípio estrutural que se refere exclusivamente ao ordenamento político em sentido estrito e à forma de governo, com o que não se pode concordar, pois num Estado de Direito deve fundamentar todas as relações entre Estado e cidadão. Isso porque – diz – "sob o plano histórico e teórico o princípio democrático nasce e se desenvolve da transposição do processo judicial ao processo político (de formação da lei) e encontra no audiatur et altera pars (filtrado da exigência de representação) sua regra fundamental."

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Sobre o autor
Sergio Coelho Junior

mestre em Direito pela Universidade Gama Filho, analista judicário do TRT da 1a Região, professor da pós-graduação em Direito da Universidade Cândido Mendes

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

COELHO JUNIOR, Sergio. Reflexões sobre o Direito, o juiz e a função de julgar. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 852, 2 nov. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/7542. Acesso em: 22 nov. 2024.

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