O crime de tortura em face à omissão legislativa e ao princípio da dignidade da pessoa humana

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21/07/2019 às 19:14
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Nesse artigo será feita breve análise acerca das nuances que revestem o tão famigerado crime de tortura, tipificado no ordenamento pátrio (embora que de forma deficiente), com pretexto de tutelar a dignidade da pessoa humana.

1  INTRODUÇÃO

Equiparado ao rol de crimes hediondos, a definição do crime de tortura possui suma importância no ordenamento jurídico brasileiro, constituindo legislação própria com especial tratamento aos delitos que afrontam a incolumidade física e mental do indivíduo e sua dignidade humana. Desta forma, há de se fazer um trabalho árduo em sua interpretação para poder transpor sua aplicação ao caso concreto.

Em uma breve síntese jurídica, percebe-se que o supracitado crime não é imune a falhas legislativas, não sendo abrangente o suficiente, nem mesmo para aplicações corriqueiras. 

Há de se analisar em que contexto histórico o crime de tortura foi legislado no Direito Brasileiro, assim como devem ser verificados os elementos subjetivos que são abrangidos pelo citado delito.

Entender o momento histórico e o aspecto teleológico utilizado pelo legislador é importante para compreender a tipificação do delito. Conhecendo os problemas sociais à época da elaboração de determinada lei, passa-se a uma análise crítica, sendo mencionadas e dissecadas as supostas falhas estabelecidas na legislação do Crime de Tortura.

Data vênia, a opinião de renomados legisladores merece uma reavaliação, não podendo ser aceitas como a única vertente de pensamento e assim tomadas como verdade absoluta. Afinal, nosso Estado Democrático de Direito nos dá ampla margem de questionamento e reflexo sobre as mais diversas situações, sejam elas oriundas da ciência criminal ou de outras áreas do direito.


2 O CRIME DE TORTURA NO CENÁRIO INTERNACIONAL

No início do que seria a sociedade moderna, a tortura era empregada como um meio para obtenção de prova daqueles que eram considerados criminosos, encontrando seu auge no período da Idade Média, sendo sua prática resguardada e permitida pela Igreja e pelo Direito Canônico, inserida pela via da Bula Ad Extirpanda, do Papa Inocêncio IV (BIERRENBACH; LIMA, 2006).

A ideia de tal atrocidade deu início ao que conhecemos como Sistema Processual Penal Inquisitório. Na essência do Sistema Inquisitório, o acusado era conceituado como mero objeto do processo. Não era visto como uma pessoa detentora de direitos e garantias, não lhe sendo assegurados os princípios do contraditório e da ampla defesa. Como consequência, tal concepção jurídica (se é que assim podemos chamar) justificava o emprego da tortura para obter a confissão do réu (RANGEL, 2016).  

Em um período posterior, a Segunda Grande Guerra, ou Segunda Guerra Mundial, que foi iniciada em 1939 e concluída em meados de 1945, tornou-se conhecida pela grande violência desenfreada e exterminações em massa, nas quais a tortura sempre esteve presente.

Diversas barbáries foram cometidas (em sua grande parte pelos comandados de Hitler contra as minorias perseguidas), nas quais estão incluídos homicídios de crianças e mulheres, roubos, estupros, experimentos forçados, assim como também a já mencionada prática da tortura, utilizada em soldados e civis com o objetivo de obter informações ou redenção de regimentos. Confirmando suas repercussões negativas, cita-se o grande número de mortos, que ultrapassa a marca dos 20 milhões inicialmente divulgados (MAGNOLI, 2009).

Com a Alemanha Nazista derrotada e finda a guerra, os países remanescentes precisavam reunir-se e apagar a imagem de destruição deixada como lembrança para o mundo. Assim, com o intuito de proteger os direitos inerentes à pessoa humana e evitar uma nova crise fundada no conflito de diferentes crenças e ideologias, preservando assim a liberdade individual, civil e política, foi instituída a Declaração Universal dos Direitos Humanos, datada de 10 de dezembro de 1948.

A Declaração Universal dos Direitos Humanos trouxe uma visão diferente, ampliada e unificante aos olhos da população mundial. O respeito e proteção aos direitos e garantias fundamentais estavam em mais obviedade do que nunca. É nesse ponto que primeiramente surge o objeto de nosso estudo.

A Declaração Universal dos Direitos Humanos prevê em seu art. V que “Ninguém será submetido à tortura nem a tratamento ou castigo cruel, desumano ou degradante”. Este foi o primeiro conceito de tortura tipificado para o mundo moderno. Analisadas as origens justificativas para a instituição e caracterização do delito de tortura, chega-se à conclusão que este se baseia, entre outros, no Princípio Constitucional da Dignidade da Pessoa Humana.


3 O CRIME DE TORTURA E O PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA

Em um Estado Democrático de Direito, é inegável e inafastável a estrita relação que existe entre Ordem Jurídica Constitucional e o Direito Penal. É a Constituição Federal que forma as diretrizes garantistas que o legislador infraconstitucional deverá observar ao tipificar as condutas delituosas e a fixação de penas aplicáveis (BARROSO, 2015). No âmago dessas garantias a serem observadas, está o princípio da Dignidade da Pessoa Humana.

O Princípio da Dignidade da Pessoa Humana, constitucionalmente previsto (Art. 1, inciso III, CRFB de 1988) é um dos princípios basilares de qualquer Estado Liberal de Direito, assumindo “valor supremo de toda sociedade para o qual se reconduzem todos os direitos fundamentais da pessoa humana” (CUNHA JÚNIOR, 2016, p. 475).

Não obstante a interminável discussão doutrinária no que tange o caráter conceitual e basilar para definir o que seriam os Direitos e Garantias Fundamentais, determinados juristas defendem a ideia de que o instituto a fundamentar a caracterização dos supramencionados direitos seria o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana:

Não obstante a inevitável subjetividade envolvida nas tentativas de discernir a nota de fundamentalidade em um direito, e embora haja direitos formalmente incluídos na classe dos direitos fundamentais que não apresentam ligação direta e imediata com o princípio da dignidade da pessoa humana, é esse princípio que inspira os típicos direitos fundamentais, atendendo à exigência do respeito à vida, à liberdade, à integridade física e íntima de cada ser humano, ao postulado da igualdade em dignidade de todos os homens e à segurança (MENDES; BRANCO, 2016, p.138)

Em uma conceituação feita de forma analítica, poderíamos definir a Dignidade da Pessoa Humana da seguinte maneira:

A qualidade intrínseca e distintiva de cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, nesse sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e corresponsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos (SARLET, 2002, p. 62).

Atendendo as ideias explícitas e implícitas que cercam o supracitado princípio, foi finalmente constituída, em 10 de dezembro de 1984, a Convenção Contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes. A retromencionada convenção definiu o crime de tortura em seu art. 1º: (BRASIL, 1991, p. 2)

Para fins da presente Convenção, o termo “tortura” designa qualquer acto pelo qual dores ou sofrimentos agudos, físicos ou mentais, são infligidos intencionalmente a uma pessoa a fim de obter, dela ou de terceira pessoa, informações ou confissões; de castiga-la por ato que ela ou terceira pessoa tenha cometido ou seja suspeita de ter cometido; de intimidar ou coagir essa pessoa ou outras pessoas; ou por qualquer motivo baseado em discriminação de qualquer natureza. 

De caráter equiparado a hediondo, e de síntese inafiançável, o embate entre as consequências provenientes do crime de tortura e o Princípio Constitucional da Dignidade da Pessoa Humana é claramente inevitável. Desde os hematomas e lesões corporais infligidos às vítimas, até o mais perturbador trauma psicológico que possa ser constatado em um laudo médico pericial, são incontáveis as barreiras de dignidade e bem-estar que são transpostas pela conduta delituosa, seja no momento da efetiva prática do ilícito, seja dos inúmeros desconsolos e sequelas que são enraizados com o decurso do tempo.

Nesse ponto, o desamparo emocional causado pelo sofrimento ao qual a vítima é submetida, vem a suprimir momentaneamente qualquer noção que essa possa ter dos direitos que lhe são assegurados, sujeitando-a a todo tipo de tratamento humilhante e que deteriore sua honra. Assim, tal delito impõe ao padecente subjugado a obrigação de tomar determinadas condutas que não adotaria em caso de uma situação normal, apenas para se ver livre da dor e do sofrimento:

Todos os atos da nossa vontade são proporcionais à força das impressões sensíveis que os causam, e a sensibilidade de todo homem é limitada. Ora, se a impressão da dor se torna muito forte para ocupar todo o poder da alma, ela não deixa a quem a sofre nenhuma outra atividade que exercer senão tomar, no momento, a via mais curta para evitar os tormentos atuais (BECCARIA, 2015, p. 42).

Como se não bastasse nossa atual constatação, precisamos ainda levantar a suposição de a vítima ser acometida ao supramencionado delito nas hipóteses que escapam ao acobertamento legal. Imaginemos uma vítima da conduta delituosa torturante (aqui compreendida em sentido amplo) cometida pelo bel prazer ou vingança do agressor. O abalo emocional da vítima vem a ser inimaginável ao descobrir que, a atrocidade a que foi acometida não é enquadrada na hipótese legal por mero erro técnico, que será aprofundado nesse artigo, que assim permite ao torturador ser julgado por um delito de menor gravidade.

  Em suma, o crime de tortura viola quase que todas as garantias fundamentais da pessoa humana, ferindo a dignidade física e psicológica do indivíduo, assim como também lacera o aspecto social ao falhar em proteger o bem jurídico tutelado, uma vez que não é amplo suficiente para enquadrar as condutas delituosas que lhe são essencialmente correlatas.


4  O CRIME DE TORTURA NO DIREITO PENAL PÁTRIO

Sendo um País que adotou em seu seio o disposto nas convenções mencionadas, o Brasil decidiu por meio do Congresso Nacional aprovar a então nova Convenção por meio do decreto legislativo n.04, de 23 de maio de 1989. (ALENCAR; ARAÚJO; TÁVORA, 2016).

No direito brasileiro, o crime de tortura teve um início controverso e de pouco destaque, pois desde o começo havia a falta de tipificação congruente, que por sua vez dificultava a aplicabilidade do tipo penal.

O primeiro dispositivo legal que tipificou o crime de tortura no ordenamento pátrio foi o art. 233 do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei n. 8.069/90): “submeter criança ou adolescente sob sua autoridade, guarda ou vigilância a tortura”.

Como o tipo penal em questão consagrava um tipo penal aberto, sem definir expressamente o que seria tortura, nem tampouco indicava os diversos meios de execução do delito, houve questionamentos acerca de uma possível violação do princípio da legalidade, em sua garantia da taxatividade. (LIMA, 2016, p.57).

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Devidos aos recorrentes problemas de enquadrar o tipo penal, posteriormente foi editada a Lei 9.455/97, que simultaneamente revogava o art. 233 da Lei n. 8069/90, e tipifica o crime de tortura no ordenamento jurídico pátrio. (LIMA, 2016).

Porém, mesmo com a tipificação formal do delito, não se passam despercebidas as falhas constantes no processo de legislativo.

Observação: A Lei n. 9.455/97 não descreveu, no crime de tortura, as hipóteses de a motivação do agente ser vingança, maldade ou simples sadismo (prazer de ver a vítima sofrer). Por isso, em face da ausência de previsão legal, as condutas não poderão ser enquadradas nessa lei, restando, apenas, eventual responsabilização por crime de lesões corporais, constrangimento ilegal, abuso de autoridade etc. (GONÇALVES; BALTAZAR JUNIOR, 2016, p. 168).

Para podermos nos aprofundar em nosso estudo, é importante realizar uma análise sobre o Princípio da Legalidade no âmbito penal e do Dolo em geral, a fim de realizar uma íntima correlação dos institutos com o dolo exigido para o crime de tortura.

O Princípio da Legalidade é uma das ideias basilares do Direito Penal e está constitucionalmente previsto, no art. 5, XXXIX e XL da Constituição Federal de 1988, estando entre os direitos e garantias fundamentais. Em uma breve conceituação:

O princípio da legalidade, segundo o qual nenhum fato pode ser considerado crime e nenhuma pena criminal pode ser aplicada, sem que antes desse mesmo fato tenham sido instituídos por lei o tipo delitivo e a pena respectiva, constitui uma real limitação ao poder estatal de interferir na esfera das liberdades dos direitos individuais (TOLEDO, 2015, p. 21).

Estamos diante, portanto, de uma real garantia, consolidada e reconhecida, inclusive, por tratados e convenções internacionais. Podemos citar como exemplo o Convênio para a Proteção dos Direitos Humanos e Liberdades Fundamentais (Roma, 1950), da Convenção Americana de Direitos Humanos (San José da Costa Rica, 1969) e Estatuto de Roma (CUNHA, 2016).

Localizado e brevemente conceituado o Princípio da Legalidade, passaremos à análise do dolo seguindo a ótica das ciências penais. Segundo JESUS (2005, p. 287), “Dolo é a vontade de concretizar as características objetivas do tipo. Constitui elemento subjetivo do tipo (implícito)”. Já nas palavras de GRECO (2016, p. 285) dolo seria “a vontade e consciência dirigidas a realizar a conduta prevista no tipo penal incriminador”.

Em um segundo momento, devemos fazer a distinção entre o dolo genérico e o dolo específico. Podemos diferenciar os institutos da seguinte maneira:

Dolo genérico era aquele em que no tipo penal não havia indicativo algum do elemento subjetivo do agente ou, melhor dizendo, não havia indicação alguma da finalidade da conduta do agente. Dolo específico, a seu turno, era aquele em que no tipo penal podia ser identificado o que denominamos de especial fim de agir (GRECO, 2016, p. 293).

Após a averiguação de ambos os institutos, Princípio da Legalidade e Dolo, chegamos à seguinte análise conclusiva: caso o tipo penal não preveja que o crime em apreço não vislumbre o dolo genérico, precisando que o agente o cometa com dolo específico para o seu enquadramento, praticando o agente o crime com dolo genérico, tal conduta não poderá ser considerada como crime (pelo menos não o crime do exemplo) pela aplicação do Princípio da Legalidade.

Pois bem. Após aplicarmos tais conceitos e distinções, passemos ao estudo crítico do crime de tortura.


5  ANÁLISE CRÍTICA DO CRIME DE TORTURA

O crime de tortura está disposto na Lei n. 9455/97, prevendo que:

Art. 1º Constitui crime de tortura:

I - constranger alguém com emprego de violência ou grave ameaça, causando-lhe sofrimento físico ou mental:

a) com o fim de obter informação, declaração ou confissão da vítima ou de terceira pessoa;

b) para provocar ação ou omissão de natureza criminosa;

c) em razão de discriminação racial ou religiosa;

II - submeter alguém, sob sua guarda, poder ou autoridade, com emprego de violência ou grave ameaça, a intenso sofrimento físico ou mental, como forma de aplicar castigo pessoal ou medida de caráter preventivo.

Pena - reclusão, de dois a oito anos.

§ 1º Na mesma pena incorre quem submete pessoa presa ou sujeita a medida de segurança a sofrimento físico ou mental, por intermédio da prática de ato não previsto em lei ou não resultante de medida legal.

§ 2º Aquele que se omite em face dessas condutas, quando tinha o dever de evitá-las ou apurá-las, incorre na pena de detenção de um a quatro anos.

Inquirindo em uma análise minuciosa da tipificação do crime em apreço, iremos verificar uma a uma as condutas enquadradas neste tipo penal.

a) com o fim de obter informação, declaração ou confissão da vítima ou de terceira pessoa.

Na conduta, descrita, a natureza da informação não faz diferença para a concretização do delito. O que tipificará o crime será a vontade do agente de obter algum dado da vítima, empregando violência ou grave ameaça (GONÇALVES; BALTAZAR JÚNIOR, 2016).

Como já mencionado anteriormente, esta modalidade de tortura foi amplamente utilizada na Idade Média, com o objetivo de obter informações daqueles que supostamente teriam cometido algum delito. O dolo específico descrito aqui é aquele que é dotado de um falso moralismo exacerbado, onde muitas vezes o agente estatal, ou aquele que se diz estar ao serviço da justiça, utiliza-se de tal atrocidade para arrancar uma confissão do acusado, ferindo assim os direitos e garantias que, em tese, deveriam ser a essência de um processo justo e hígido:

A tortura é, muitas vezes, um meio seguro de condenar o inocente fraco e absolver o celerado robusto. É esse, de ordinário, o resultado terrível dessa barbárie que se julga capaz de produzir a verdade, desse uso digno dos canibais, e que os romanos, malgrado a dureza dos seus costumes, reservaram exclusivamente aos escravos, vítimas infelizes de um povo cuja feroz virtude tanto se tem gabado (BECCARIA, 2015, pag. 42).

b) para provocar ação ou omissão de natureza criminosa

A conduta aludida se enquadra na situação em que o agente emprega a tortura para que a vítima pratique ação ou omissão de natureza criminosa. Nesse caso, caso a vítima concretize de fato o crime a que foi obrigada a cometer, está não responderá por nenhum crime, que recairá sobre a responsabilidade do criminoso, respondendo por crime material pela tortura e o delito praticado pela vítima (ALENCAR; ARAÚJO; TÁVORA, 2016).

c) em razão de discriminação racial ou religiosa

Conhecida como “tortura discriminatória” ou “tortura-preconceito”, se concretiza quando o autor emprega violência ou grave ameaça para torturar a vítima em razão de discriminação racial ou religiosa.

Nesse ponto, já podemos verificar outra grande falha legislativa que merece observação. A indevida restrição é constatada no tipo penal quando este deixa de ser amplo e fica vinculado a apenas dois tipos dos inúmeros possíveis de preconceito ou discriminação. Exemplificando, caso o agente venha a torturar a vítima em virtude de discriminação que esteja relacionada à idade, orientação sexual, ideologia, classe social, dentre outras, não ficará caracterizado o crime de tortura (ALENCAR; ARAÚJO; TÁVORA, 2016).

O tipo penal é extremamente vago, o que pode levar até mesmo levar a inaplicabilidade do dispositivo:

A terceira figura prevê a conduta praticada em razão de discriminação racial ou religiosa, concluindo-se que nesse passo a redação afigura-se imprecisa, pois a expressão constranger, núcleo do tipo, significa coagir ou obrigar a determinada ação ou omissão. Da análise do texto, extrai-se um constrangimento vago, sem qualquer conduta imposta à vítima (BORGES, 2004, pag. 176).

A falha está constatada no âmbito extremamente restritivo que o legislador decidiu adotar ao tipificar o crime.

Sendo o delito cometido por um sádico, alguém que tenha puro prazer em torturar, ou mesmo alguém tomando vingança contra o assassino de um ente querido, não sendo constatado o dolo específico já mencionado, o agente não incorrerá no crime de tortura. Na verdade, o agente será enquadrado no delito que sobrevier à tortura sem motivação prevista em lei:

Ausentes os elementos anímicos que constam dos dois primeiros tipos (finalidade de obter informação, declaração ou confissão da vítima ou de terceira pessoa ou intuito de provocar ação ou omissão de natureza criminosa), o crime de tortura não se configurará. Tal atipicidade, contudo, não será absoluta, mas relativa, surgindo como crimes subsidiários a lesão corporal, o abuso de autoridade ou o constrangimento ilegal (BIERRENBACH; LIMA, 2006, pag. 57).

Nota-se ainda a árdua tarefa de definir e precisar o sofrimento de outrem, principalmente em respeito ao aspecto psicológico. O instituto é demasiadamente vago, impreciso, carente de clareza, correndo o risco de ser inoperante em face ao Princípio da Legalidade.

Isto nos leva a um ponto de indagação: como será possível uma pessoa, a vítima, sofrer tal evento traumático, passando por grande pressão psicológica e física, e, acabando que o agente incorra em crime muito mais brando do que as provações que a vítima experimentou? Qual a idealização utilizada para tipificar um crime tão importante, que deveria proteger a integridade física e mental da pessoa humana, ter um campo de incidência tão pequeno?

Apesar de todo o exposto, devemos admitir que a lei em apreço não seria um caso de aplicação do Controle de Constitucionalidade das Normas. Afinal, a lei é formalmente válida (obedeceu a todos os trâmites legislativos), assim como também é materialmente legítima (pois está de acordo com a Constituição Federal, apesar das falhas já apontadas).

Também não enxergamos que seria o caso de Inconstitucionalidade por Omissão, que pode ser entendida da seguinte maneira:

A omissão inconstitucional pressupõe a inobservância do dever constitucional de legislar, que resulta tanto de comandos explícitos da Lei Magna, como de decisões fundamentais da Constituição identificadas no processo de interpretação. (MENDES, 2012, pag. 393).

Há inúmeros exemplos que mostram como o nosso Poder Legislativo tem trabalhado às pressas, muitas vezes sem critério, somente copiando o que está disposto na legislação alienígena. É necessária cautela e averiguação, devendo tais falhas ser criticadas e levadas ao conhecimento da população, pois esta é quem deve estar protegida dos inúmeros males que a rondam.

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Sobre o autor
Thiago da Penha Lima

Mestre em Constitucionalismo e Direitos na Amazônia pela Universidade Federal do Amazonas. Especialista em Direito Tributário e em Direito Processual Civil Aplicado. Assessor Jurídico no Tribunal de Justiça do Estado do Amazonas. Professor Universitário. Advogado.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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