ANÁLISE DA VALIDADE DA LEI ESTADUAL N.º 17.736/2019
Uma vez demonstrado, brevemente, os possíveis equívocos nas premissas adotadas pelo PL n.º 00055.5/2019, cumpre tecer, ainda, comentários acerca da validade da Lei Estadual nº 17.736, de 18 de junho de 2019, conquanto não seja, em prol da verdadeira investigação que o tema requer, a intenção de exaurir a análise da norma como um todo.
Assim sendo, selecionamos dois principais pontos que merecem melhor análise, quais sejam:
- A (im)possibilidade de a Lei Estadual Ordinária instituir ICMS sobre operações com software (nova hipótese de incidência);
- A materialidade do ICMS e a hipótese de incidência criada pela Lei n.º 17.736, de 18 jun. 2019;
Passemos, então, à análise desses pontos.
Análise da norma a partir da interpretação do artigo 146 da CF/88
A Lei Estadual n.º 17.736, de 18 de junho de 2019, incluiu, na Lei Estadual n.º 10.297, de 26 dez. 1996 (Lei do ICMS de Santa Catarina), a previsão do ICMS sobre a disponibilização de bens digitais.
Embora seja competência constitucional do Estados (art. 155, II da CF/88) instituir o ICMS e até esteja “respaldado” no Convênio ICMS 106/2017[13], fica nítido o descumprimento da regra do art. 146 da mesma CF/88, em sua inteireza, pois o mesmo determina ser tarefa da Lei Complementar (nacional):
I - dispor sobre conflitos de competência, em matéria tributária, entre a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios;
II - regular as limitações constitucionais ao poder de tributar;
III - estabelecer normas gerais em matéria de legislação tributária, especialmente sobre:
a) definição de tributos e de suas espécies, bem como, em relação aos impostos discriminados nesta Constituição, a dos respectivos fatos geradores, bases de cálculo e contribuintes;
b) obrigação, lançamento, crédito, prescrição e decadência tributários;
Ou seja, em que pese a competência constitucional típica dos entes federados em instituir o ICMS, tal competência sempre será relativa em vista da problemática de nosso pacto federativo com 27 entes distintos, da segurança jurídica, do equilíbrio e da neutralidade fiscal, sob pena, inclusive de se colocar em cheque o próprio pacto federativo de forma a permitir que cada ente tenha liberdade para estabelecer suas próprias regras em um sistema sui generis em que temos um tributo de âmbito nacional, mas com 27 donos distintos, gerando um legítimo trauma de infância como sugere Octávio Campos Fischer[14], e impondo estrita observância à harmonização, equilíbrio e neutralidade do tributo, e por essa razão, tal tarefa seria afeita à Lei Complementar de caráter nacional.
Heleno Taveira Torres, aliás, ao dispor sobre conflitos de fontes, observou que a jurisprudência do STF vem se firmando no sentido de que só se exigiria lei complementar para matérias para cuja disciplina a Constituição assim determinou, como nos parece claro no artigo 146 da mesma, quando, em síntese, estaria se discutindo, não só o conflito de competência (inciso I) com o ISS, com outras UFs (em vista da EC 87/2015), limitações constitucionais de tributar ao definir enfim o que seria mercadoria sujeita ao ICMS (inciso II), bem como as regras gerais do tributo, em especial o fato gerador (inciso III, “a”, in fine), assim se pronunciando[15]:
A jurisprudência desta Corte se firmou no sentido de que só se exige lei complementar para as matérias para cuja disciplina a Constituição expressamente faz tal exigência, e, se porventura a matéria, disciplinada por lei cujo processo legislativo observado tenha sido o da lei complementar, não daquelas para que a Carta Magna exige essa modalidade legislativa, os dispositivos que tratam dela se têm como dispositivos de lei ordinária”. No citado julgamento, o STF, em decisão com eficácia erga onmes e efeitos vinculantes, decidiu que a Lei Complementar nº 70/91, que instituiu a COFINS, não teria força passiva de lei complementar. No entanto, o STJ vem considerando que a lei ordinária (art. 56 da Lei nº 9.430/96) não poderia ter revogado o artigo 6º da referida lei complementar, que concedeu isenção da contribuição para as sociedades civis de prestação de serviços, por violação da hierarquia das leis (Súmula 276 – “As sociedades civis de prestação de serviços profissionais são isentas da COFINS, irrelevante o regime tributário adotado”). Contudo, o Plenário do STF superou o entendimento do STJ e, referendando a sua posição na ADC nº 1-1/DF, considerou que a isenção de COFINS prevista na LC nº 70/91, pode ser revogada por lei ordinária (STF, Pleno, RE nº 377.457-PR e RE nº 381.694/MG, Rel. Min. Gilmar Mendes, que no momento apresenta oito votos favoráveis à constitucionalidade da revogação da isenção, dos Ministros Gilmar Mendes, Cármen Lúcia, Ricardo Lewandowski, Joaquim Barbosa, Carlos Britto, Cezar Peluso, Sepúlveda Pertence e Celso de Mello, e um contra, do Ministro Eros Grau, tendo os referidos julgamentos sido suspensos em virtude do pedido de vista do Ministro Marco Aurélio).
Não bastasse isso, em linha semelhante, demonstrando haver invasão de competência do Estado, e evidenciando a relatividade e alcance de sua competência, o retro comentado Convênio ICMS 106/2017 é, atualmente, objeto da ADI 5958-DF[16], promovida pela Associação Brasileira das Empresas de Tecnologia da Informação e Comunicação (BRASSCOM), que aguarda julgamento no âmbito do STF[17]. Sendo um dos argumentos utilizados pela entidade é que o Convênio 106/2017, do CONFAZ, desrespeitou à exigência constitucional de lei complementar para tratar da matéria.
Sob nossa ótica, o referido convênio também afronta a própria segurança jurídica como sobreprincípio constitucional, como observarmos em nosso livro acerca da substituição tributária[18] ao referenciarmos o Prof. Paulo de Barros Carvalho[19] e outros autores que o entendem como tal e cada vez mais presente em julgamentos tributários deste jaez como o da ADI 5866/DF[20], pela Ministra Cármen Lúcia quando da concessão de limitar em Tutela Provisória quando da análise do Convênio ICMS 52/2017[21], [22].
Reforçando o entendimento da prevalência da Lei Complementar, Ricardo Lodi Ribeiro[23], ao tratar do Federalismo fiscal, observa que a sua razão nem sempre foi, como na Constituição vigente, de garantir direitos fundamentais, sendo inclusive um fruto dos regimes constitucionais autoritários, mas que atualmente, em que pese tal origem, a sua importância se dá para que não haja subordinação aos “caprichos das apertadas maiorias parlamentares”, prevalecendo, em nosso entendimento, o mesmo raciocínio, mutatis mutandis, aos entendimentos diversos de nosso problemático e curioso federalismo fiscal.
O autor, acerca do tema, complementa dizendo[24]:
[…] o constituinte de 1988, a exemplo dos anteriores, não estabeleceu uma categoria de normas a serem, a priori, reservadas à lei complementar, mas adotou um critério casuístico. Deste modo, somente são reservadas à lei complementar as matérias expressamente indicadas no texto constitucional, podendo as demais ser tratadas por lei ordinária.
Neste sentido, parece-nos, de forma clara, que o texto constitucional vigente estabeleceu de forma clara os limites de atuação das ditas leis ordinárias (leia-se, da competência estadual in casu) e das leis complementares de caráter nacional como é o caso da Lei Kandir e que, salvo melhor juízo, não nos parece ser o caso da legislação catarinense ora observada, pois conforme observamos em outro trabalho[25] sobre os limites dos Convênios no âmbito do ICMS, há uma força axiológica muito grande estabelecida por tais vetores, de forma a estabelecer limites ao poder de tributar:
As normas constitucionais possuem enorme força axiológica, representando vetores capazes de guiar a adequada aplicação da norma jurídica, representando a essência e a identidade da Constituição, irradiando seus efeitos por todo o ordenamento jurídico e tratados aqui de forma a delinear, em última instância, os limites dos próprios Convênios no contexto do ICMS, o que explica, a importância dos princípios ora tratados no tema em exame, razão pela qual se inicia pela ponderação dos mesmos.
Por fim, Luciano Amaro[26] dispõe que, com a promulgação da Constituição de 1988, a lei complementar ganhou um novo fundamento, que a reconecta com a sua origem francesa, estabelecendo, ao seu tempo, normas que são dotadas de importância suficiente para não ficarem subordinadas aos caprichos das apertadas maiorias parlamentares, mas que não precisariam estar contidas no contexto constitucional.
Sendo assim, conclui-se que é questionável a constitucionalidade da Lei Estadual ora analisada, uma vez que cabe a Lei Complementar Nacional tratar, originalmente, sobre conflito de competência e estabelecer normas gerais em matéria de legislação tributária, razão pela qual não poderia o Estado de Santa Catarina legislar sobre a incidência do ICMS sobre bens digitais originalmente.
A materialidade do ICMS e a (im)possibilidade de incidência sobre software
O ICMS, constitucionalmente previsto no inciso II do artigo 155 da CF/88, é um tributo de competência estadual que incide sobre “operações relativas à circulação de mercadorias e sobre prestações de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação, ainda que as operações e as prestações se iniciem no exterior”.
A pretexto da preocupação de se definir os softwares como bens imateriais, observamos, de acordo com a doutrina e a jurisprudência, que o termo mercadoria constante no texto constitucional (derivado do direito privado) pode ser conceituado, em suma, como bem móvel, corpóreo e que está sujeito a comercialização/mercancia, o que, por si só sugere uma investigação mais ampla sobre tal problemática.
Nestes termos, Hugo de Brito Machado leciona que:
Mercadorias são coisas móveis. São coisas porque bens corpóreos, que valem por si só e não pelo que representam. Coisas, portanto, em sentido restrito, no qual não se incluem os bens tais como créditos, as ações, o dinheiro, entre outros. E coisas móveis porque em nosso ordenamento jurídico os imóveis recebem disciplinamento legal diverso, o que os exclui do conceito de mercadorias[27].
Já a Ministra Regina Helena Costa, em sua lavra, considera que, “Mercadoria, por sua vez, é o conceito extraído do direito comercial, a significar bem móvel sujeito a mercancia”[28].
José Eduardo Soares de Melo, por sua feita, em obra dedicada ao estudo do ICMS, enquadra mercadoria como “bem corpóreo (ou virtual) da atividade empresarial do produtor, industrial, e comerciante, tendo por objeto a sua distribuição para consumo, compreendendo-se no estoque da empresa, e distinguindo-se das coisas que tenha qualificação diversa, segundo a ciência contábil” (...). Todavia, “este bem “digital” não consubstancia as características de âmbito legal e constitucional (art. 155, II e § 3º), de mercadoria, além do que o respectivo ‘software’ representa um produto intelectual, objeto de cessão de direito, de distinta natureza jurídica, o que tornaria imprescindível alteração normativa”[29].
No mesmo sentido, Paulo de Barros Carvalho entende que:
“O étimo do termo ‘mercadoria’ está no latim mercatura, significando tudo aquilo susceptível de ser objeto de compra e venda, isto é, o que se comprou para pôr à venda. Evoluiu de merx, mercis (sobretudo no plural: merces, mercium), referindo-se ao que é objeto de comércio, adquirindo, na atualidade, o sentido de “qualquer objeto natural ou manufaturado que se possa trocar e que, além dos requisitos comuns a qualquer bem econômico, reúna outro requisito extrínseco, a destinação ao comércio. Não se presta o vocábulo para designar, nas províncias do direito, senão coisa móvel, corpórea, que está no comércio”[30].
Em consonância com a doutrina acima referendada, destaca-se o conceito de mercadoria constante no próprio RE n.º 176.626-SP, utilizado pela exposição de motivos da Lei Estadual ora analisada: “mercadoria é bem corpóreo objeto de atos de comercio ou destinado a sê-lo”. Ou seja, é fato incontroverso que tanto a doutrina como a jurisprudência do STF exigem a existência de um bem corpóreo para ser considerado mercadoria tributável pelo ICMS.
Em contrapartida ao entendimento acima, a Lei Estadual nº 17.736, de 18 de junho de 2019, arvorando-se de lei complementar, determina a incidência do ICMS sobre a disponibilização de bens digitais, mediante transferência eletrônica de dados (download), por entende-los em tal contexto.
Os bens digitais, que a referida lei pretende incluir no campo de incidência do ICMS, são conceituados, como anteriormente comentado, e regulamentados pela Lei nº 9.609, de 19 de fevereiro de 1998, como se observa do teor do seu artigo 1º ipsis litteris:
Art. 1º Programa de computador é a expressão de um conjunto organizado de instruções em linguagem natural ou codificada, contida em suporte físico de qualquer natureza, de emprego necessário em máquinas automáticas de tratamento da informação, dispositivos, instrumentos ou equipamentos periféricos, baseados em técnica digital ou análoga, para fazê-los funcionar de modo e para fins determinados.
Conforme se extrai da definição legal, software não é um bem corpóreo, mas sim um conjunto intangível de instruções em linguagem natural ou codificada. É a reunião de programas e procedimentos que realizam processamento de dados. Tanto o software não é um bem corpóreo que a própria Lei n.º 9.610, de 19 de fevereiro de 1998, que dispõe sobre os direitos autorais, assim dispõe:
Art. 7º São obras intelectuais protegidas as criações do espírito, expressas por qualquer meio ou fixadas em qualquer suporte, tangível ou intangível, conhecido ou que se invente no futuro, tais como:
[...]
XII - os programas de computador;
Ou seja, as obras intelectuais – in casu, o software – podem ser expressas em suporte tangível ou intangível, o que reforça o fato de que o software em si não pode ser considerado, em hipótese alguma, como bem corpóreo para fins de incidência do ICMS[31].
Wellington Antunes da Maia[32], em um artigo sobre o tema, utiliza-se do conceito de Elisabeth Dias Kanthack para enquadrar software como “reunião de programas e procedimentos que efetuam o processamento de dados no computador, dá o direcionamento e a forma a qual esses procedimentos serão desenrolados, de acordo com a vontade do usuário”. E complementa:
“É o conjunto de procedimentos necessários ao processamento dos dados no computador, indispensável ao seu funcionamento, depende de programas elaborados por especialistas e transmitidos ao computador em linguagem de máquina como comandos, em sequência lógica de instruções e dados destinados a informar o usuário. A essência do software é algo intangível, pois decorre do exercício da criatividade humana”[33].
Corroborando com o entendimento de que software não pode ser considerado como mercadoria para fins de incidência do ICMS, a própria Receita Federal do Brasil, por meio da Solução de Consulta nº 98.182/18, já se manifestou expressamente que software não é mercadoria, inclusive para fins de classificação fiscal:
11. A posição 85.23 abarca os suportes (meios físicos) mesmo gravados, conforme definido no texto da posição (os discos, fitas, dispositivos de armazenamento de dados, “cartões inteligentes” e outros suportes para gravação de som ou para gravações semelhantes, mesmo gravados). O produto em análise não se trata de um suporte (meio físico) para gravação de som ou gravações semelhantes, mas tão somente uma informação ou seja apenas um programa de computador (software).
12. No caso de software transferido por meio eletrônico, sem a utilização de suporte físico, inexiste um bem material que possa ser entendido como mercadoria.
13. Os softwares se dividem em duas grandes categorias: os softwares de prateleira (que são produzidos não para um usuário específico e sim em larga escala) e os softwares de cópia única (aqueles produzidos para atender às necessidades específicas do encomendante). É possível dizer, portanto, que ao obter o direito de uso de um programa de computador está se adquirindo a possibilidade de fruir de um trabalho humano (bem intangível) e não propriamente de uma coisa, algo corpóreo (bem tangível).
14. O Sistema Harmonizado de Designação e de Codificação de Mercadorias foi desenvolvido para codificar artigos tangíveis. Cabe registrar que a energia elétrica é uma exceção digna de ser mencionada.
15. Portanto, o software em análise não é passível de classificação na NCM, pois inexiste código que abarque este bem intangível.
Como se observa, o que pode ser considerado mercadoria, enfim, é tão somente o suporte físico, entendimento este que vai na linha do acórdão proferido no RE nº 176.626-SP, o que, a título de observação, está cada vez mais em desuso por conta do conceito de nuvem e download que hoje se tornou habitual por conta da evolução tecnológica.
E mais, na referida solução de consulta a Receita Federal do Brasil levou em consideração as Regras Gerais para a Interpretação do Sistema Harmonizado (RGI/SH)[34] da Convenção Internacional sobre o Sistema Harmonizado de Designação e de Codificação de Mercadorias, nas Regras Gerais Complementares do Mercosul (RGC/NCM), as Regras Gerais Complementares da Tipi (RGC/Tipi), os pareceres de classificação do Comitê do Sistema Harmonizado da Organização Mundial das Aduanas (OMA), os ditames do Mercosul e, por fim, as Notas Explicativas do Sistema Harmonizado (NESH), o que reforça o conceito de mercadoria do direito privado.
Do mesmo modo, software é considerado pela Lei n.º 6.404, de 15de dezembro de 1976 (Lei das Sociedades Anônimas) como bem incorpóreo, possuindo, inclusive, conta específica no ativo no balanço patrimonial:
Art. 179. As contas serão classificadas do seguinte modo:
[...]
VI – no intangível: os direitos que tenham por objeto bens incorpóreos destinados à manutenção da companhia ou exercidos com essa finalidade, inclusive o fundo de comércio adquirido.
Por sua vez, na linha dos posicionamentos contábeis, necessários à atividade tributária e útil à discussão apresentada, observa-se que o Comitê de Pronunciamentos Contábeis (CPC)[35], em seu pronunciamento técnico nº 4[36], regulamenta o ativo intangível visando à centralização e uniformização do seu processo de produção, levando sempre em conta a convergência da Contabilidade Brasileira aos padrões internacionais.
Da leitura do referido pronunciamento, confirma-se que o software é considerado pela ciência da contabilidade como um bem incorpóreo, senão vejamos:
4. Alguns ativos intangíveis podem estar contidos em elementos que possuem substância física, como um disco (como no caso de software), documentação jurídica (no caso de licença ou patente) ou em um filme. Para saber se um ativo que contém elementos intangíveis e tangíveis deve ser tratado como ativo imobilizado de acordo com o Pronunciamento Técnico CPC 27 – Ativo Imobilizado ou como ativo intangível, nos termos do presente Pronunciamento, a entidade avalia qual elemento é mais significativo. Por exemplo, um software de uma máquina-ferramenta controlada por computador que não funciona sem esse software específico é parte integrante do referido equipamento, devendo ser tratado como ativo imobilizado. O mesmo se aplica ao sistema operacional de um computador. Quando o software não é parte integrante do respectivo hardware, ele deve ser tratado como ativo intangível.
[...]
7. (...) Entretanto, este Pronunciamento aplica-se a outros ativos intangíveis utilizados (caso do software) e a outros gastos incorridos (como os gastos pré-operacionais) por indústrias extrativas ou seguradoras.
[...]
9. As entidades frequentemente despendem recursos ou contraem obrigações com a aquisição, o desenvolvimento, a manutenção ou o aprimoramento de recursos intangíveis como conhecimento científico ou técnico, projeto e implantação de novos processos ou sistemas, licenças, propriedade intelectual, conhecimento mercadológico, nome, reputação, imagem e marcas registradas (incluindo nomes comerciais e títulos de publicações). Exemplos de itens que se enquadram nessas categorias amplas são: softwares, patentes, direitos autorais, direitos sobre filmes cinematográficos, listas de clientes, direitos sobre hipotecas, licenças de pesca, quotas de importação, franquias, relacionamentos com clientes ou fornecedores, fidelidade de clientes, participação no mercado e direitos de comercialização.
Essa também é a conclusão apresentada pela Fundação Instituto de Pesquisas Contábeis, Autorais e Financeiras - FIPECAF, no Manual de Contabilidade Societária[37], ao enquadrar o ativo intangível como algo sem substância física, como, por exemplo, as marcas, patentes e direitos autorais, como é o caso do software.
Para José Carlos Marion[38], saliente-se, “a palavra intangível vem do latim tangere, ou ‘tocar’. Os bens intangíveis, portanto, são bens que não podem ser tocados, porque não têm corpo. Na linguagem contábil um termo que se aproxima do intangível é Godwill. (...) Podem existir diversos tipos e categorias de ativos intangíveis como, por exemplo: software, patentes, direitos autorais, direitos sobre filmes cinematográficos...”.
Frise-se, ainda, que o CPC 04, tratando do ativo intangível e de eventual tratativa mais específica sobre o mesmo, a pretexto de uma superveniência do CPC 16 (que trata dos estoques de mercadorias), dispõe o que se segue e deve ser considerado no atual contexto:
Se outro pronunciamento estabelecer o tratamento contábil para um tipo específico de ativo intangível, a entidade deve aplicar o referido pronunciamento específico em vez deste. Por exemplo, este pronunciamento não deve ser aplicado nos seguintes casos: a) ativos intangíveis mantidos pela entidade para venda no curso ordinário dos negócios (ver CPC 16 – Estoques);
Por sua vez, o CPC 16, ao tratar de estoques, dispõe que:
Estoques são ativos: (a) mantidos para venda no curso normal dos negócios; (b) em processo de produção para venda; ou (c) na forma de materiais ou suprimentos a serem consumidos ou transformados no processo de produção ou na prestação de serviços.”. E mais: “Os estoques compreendem bens adquiridos e destinados à venda, incluindo, por exemplo, mercadorias compradas por varejista para revenda ou terrenos e outros imóveis para revenda. Os estoques também compreendem produtos acabados e produtos em processo de produção pela entidade e incluem matérias-primas e materiais, aguardando utilização no processo de produção, tais como: componentes, embalagens e material de consumo. Os custos incorridos para cumprir o contrato com o cliente, que não resultam em estoques (ou ativos dentro do alcance de outro pronunciamento), devem ser contabilizados de acordo com o CPC 47 – Receita de Contrato com cliente.
Em que pese o FIPECAF mencione que os bens intangíveis também são considerados estoques, é taxativo ao afirmar que são aqueles com o objetivo de venda. Veja que o momento da contabilização de compras e venda de itens do estoque tem relação direta com a transferência da propriedade. Por esse motivo, entendemos, por essa análise preliminar, que se o software não for objeto de venda (com a transferência do código fonte) não há que ser considerado como estoque.
Além disso, via de regra os estoques são contabilizados no ativo circulante, ao passo que software, ativo intangível, deve ser contabilizado no ativo não circulante.
Por sua vez, o ativo intangível é uma subconta do imobilizado, o qual se entende “todo ativo de natureza relativamente permanente que se utiliza na operação dos negócios de uma empresa e que não se destina à venda. A própria Lei das S/A dispõe que “os direitos que tenham por objeto bens incorpóreos destinados à manutenção da companhia ou exercidos com essa finalidade”.
Outrossim, importante atentar para a posição de José Carlos Marion[39], sobre o conceito, bem como a amplitude do significado adequado para a expressão “estoques”, fazendo-o nos seguintes termos:
Como já vimos no capítulo anterior, os estoques assumem diferentes significados conforme o tipo da empresa onde sejam considerados, mas sempre trazem a conotação de algo à disposição, seja de vendas (como as mercadorias nas empresas comerciais ou os produtos acabados nas empresas industriais), seja de transformação (como as matérias-primas ou materiais em processo), seja de consumo (o estoque de material de consumo pode acontecer tanto em empresas comercial, industrial, como na de serviços.
Diante dessas considerações, é possível concluir-se que a Lei Estadual n.º 17.736/2019 desconsidera, à luz do art. 110 do CTN , o fato de que não cabe à lei tributária estabelecer conceitos ou alterar definições e alcance de institutos de direito privado para definir competências tributárias, notadamente porque a nova lei de software (Lei n.º 9.609/09), em atendimento ao art. 109 do mesmo CTN, acaba por estabelecer um marco regulatório claro que considera que os programas de computador, além de ser um conjunto de instruções imateriais em sua essência (bens intangíveis segundo a melhor classificação contábil), não se confundiriam com o conceito percebido pela Lei Kandir e pelo escopo do ICMS pela simples e absoluta falta de previsão legal.
À guisa de tal preocupação quanto ao uso dos citados artigos 109 e 110 do CTN, nunca é demais rememorar o entendimento esposado por Hugo de Brito Machado Segundo[40] quanto à prevalência dos conceitos e formas previstas no direito privado, para uso na mais adequada exegese do Direito Tributário, fazendo-o, de forma pontual, nos seguintes termos:
1. Utilidade dos princípios de direito privado – Sempre que a lei tributária utilizar institutos, conceitos ou formas de direito privado (v. g., referindo-se a “contrato”, “sociedade”, “empregado”, “transmissão”), os princípios de direito privado serão úteis para determinar o significado de tais expressões; mas não terão o condão, naturalmente, de lhes determinar os efeitos tributários, os quais serão definidos pela legislação tributária. Luciano Amaro, a propósito, fornece o interessante do empregado: se a lei tributária reporta-se a “empregado”, a interpretação desse termo deverá ser feita à luz dos princípios de direito do trabalho (v. g., deve-se definir quem é, ou quem não é empregado, considerando-se a natureza de “contrato realidade” do contrato de trabalho etc.), mas “o empregado, hipossuficiente na relação trabalhista, não pode invocar essa condição na relação tributária cujo pólo venha a ocupar. A definição dos efeitos tributários oriundos daquelas situações faz-se com abstração de considerações privatísticas, cuja aplicação se esgota na definição da categoria jurídica de direito privado, não obstante seja ela ‘importada’ pelo direito tributário e venha a irradiar, nesse setor, outros efeitos, além dos que possam ser produzidos na sua província de origem” (Direito Tributário Brasileiro, 4. ed., São Paulo: Saraiva, 1999, p. 209).
(...)
O art. 110 do CTN, embora tenha inegável importância didática, é mera afirmação do óbvio. Afinal, como já afirmou o Min. Luiz Gallotti, (RTJ 66/65), “se a lei pudesse chamar de compra o que não é compra, de importação o que não é importação, de exportação o que não é exportação, de renda o que não é renda, ruiria todo o sistema tributário inscrito na Constituição”. Ele afirma o óbvio, todavia, no que tange à impossibilidade de a lei alterar a Constituição. No que tange ao fato de a Constituição ter acolhido conceitos de Direito Privado, a afirmação não ostenta a mesma obviedade. Ao empregar uma palavra em seu texto, por que ela deveria ser entendida com o significado que lhe é usualmente atribuído pelo Direito Privado? Dizer que assim deve ser “porque previsto no art. 110 do CTN” implicaria interpretar a Constituição à luz do CTN, o que não parece adequado. Por outro lado, se a palavra empregada pela Constituição possui significado claro previamente atribuído pela legislação anterior, seja ela de Direito Privado ou não, por que recorrer a outros significados, não jurídicos, na interpretação constitucional?
Por sua vez, Guilherme Broto Follador[41], ao entender a prevalência dos conceitos de direito privado e avançar sobre sua importância, assim se pronunciou:
Conquanto o CTN estabeleça, no seu art. 110, a impossibilidade de alteração dos conceitos de direito privado utilizados pela Constituição para conferir competências tributárias, é certo que o legislador não poderá subverter quaisquer dos conceitos por meio dos quais a Constituição lhe haja outorgado competência, independentemente de se tratar ou não de um conceito “de direito privado”.
Assim também, José Julberto Meira Junior[42], ao observar o citado art. 109, vaticina observando “em outras palavras, existindo regra específica, no direito civil, direito administrativo ou outro qualquer, que estabeleça os limites de conceitos, institutos e formas, eles devem prevalecer.”
Já quanto ao 110, o referido autor complementa dizendo:
Neste dispositivo, que é nítido complemento do anterior, por sua vez, fica patente que nem a lei e tampouco o seu intérprete poderão alterar a definição, o conteúdo e o alcance dos institutos, conceitos e formas de direito privado, que sejam implícita ou explicitamente utilizados pelas Constituições Federal, Estaduais ou pelas Leis Orgânicas dos Municípios, não podendo haver invasão de competência neste mister.
Como argumento fatal, em linha com o que se disse até o momento quanto ao uso adequado dos dois dispositivos do CTN, bem como o devido cuidado quanto a ampliação conceitual do que viria a ser “mercadoria”, nunca é demais emprestar o entendimento esposado por Hugo de Brito Machado[43], para quem, à luz do teto constitucional, quando se definiu competências às UFs para instituir e cobrar o ICMS, o conceito de mercadorias há de ser o existente no Direito Comercial, o que nos permite compreender uma analogia extremamente perigosa por parte do legislativo catarinense no tema em comento.
Esta, pois, seria uma razão pela qual se reforça o vício de origem da lei estadual em pretender estabelecer regras gerais e limites legais ao tema, notadamente porque, por puro exercício de analogia (art. 108, I do CTN), não permitido pelo § 1º do mesmo artigo, se estaria exigindo tributo não previsto em lei (complementar nacional, frise-se).
Portanto, conclui-se que, diferente do que dispõe a Lei Estadual nº 17.736/2019[44], a doutrina (do direito e da contabilidade), a jurisprudência e a legislação específica do direito privado enquadram software como bem incorpóreo, razão pela qual não é possível enquadra-lo na hipótese de incidência prevista no inciso II do artigo 155 da CF/88.