3. A DINÂMICA DOS PRECEDENTES JUDICIAIS E O SISTEMA JURÍDICO BRASILEIRO
Partindo-se da ideia de que a norma resulta da interpretação, uma vez que o texto legislativo não é suficiente para nortear o comportamento humano, os doutrinadores Marinoni, Arenhart e Mitidiero (2017, p. 640) argumentam que a decisão judicial passou a ser vista “[...] não só como um meio de solução de determinado caso concreto, mas também como um meio para promoção da unidade do direito”. Nesse passo, a teoria dos precedentes passou a receber maior destaque na tradição jurídica do civil law.
De acordo com Didier Júnior, Braga e Oliveira (2017, p. 505), precedente é “[...] a decisão judicial tomada à luz de um caso concreto, cujo elemento normativo pode servir como diretriz para o julgamento posterior de casos análogos”.
Nesse sentido, Lourenço (2012, p. 246-247) explica que o juiz, ao exercer sua atividade jurisdicional, cria uma norma jurídica para o caso concreto em si e uma norma geral decorrente desse. Conforme explana o autor, essas normas gerais criadas a partir do caso concreto, e advindas da interpretação do direito positivado, são os chamados precedentes judiciais.
No entanto, a fim de melhor compreender a definição e a dinâmica do precedente, faz-se necessário distingui-lo de outros preceitos jurídicos, bem como analisar pontos da sua aplicação prática.
3.1 DISTINÇÃO ENTRE PRECEDENTE, DECISÃO JUDICIAL, JURISPRUDÊNCIA E SÚMULA
O precedente surge a partir de uma decisão judicial, porém, nem toda decisão judicial é um precedente, não sendo esses termos equivalentes. A fim de que se caracterize esse último, é necessário que a decisão tenha potencialidade de estabelecer paradigma e, assim, oriente juízes e jurisdicionados (MARINONI; ARENHART; MITIDIERO, 2017, p. 645).
Acerca dessa distinção, elucida Marinoni (2013, p. 215-216 apud MARINONI; ARENHART; MITIDIERO, 2017, p. 645):
[...] para constituir precedente, não basta que a decisão seja a primeira a interpretar a norma. É preciso que a decisão enfrente todos os principais argumentos relacionados à questão de direito posta na moldura do caso concreto. [...] Portanto, uma decisão pode não ter os caracteres necessários à configuração de precedente, por não tratar de questão de direito ou se limitar a afirmar a letra da lei, como pode estar apenas reafirmando o precedente.
Nessa senda, destaca-se que precedentes revelam uma solução judicial acerca da matéria de direito, razão pela qual uma decisão que, por exemplo, apenas anuncia o texto legal ou simplesmente reprisa julgado anterior não constitui precedente (MARINONI, 2013, p. 215-216 apud MARINONI; ARENHART; MITIDIERO, 2017, p. 645).
No tocante à jurisprudência, essa também não é sinônimo de precedente, visto que, enquanto esse pode ser extraído de um único julgado, aquela se forma a partir de um conjunto reiterado de decisões. Assim, diz-se que um precedente se transforma em jurisprudência quando repetidamente aplicado, sendo aquele uma espécie desse grande gênero (DIDIER JÚNIOR; BRAGA; OLIVEIRA, 2017, p. 555).
De acordo com o doutrinador Gusmão (2015, p. 132), a jurisprudência “[...] é o conjunto uniforme e reiterado de decisões judiciais (julgados), sobre determinada questão jurídica, das quais se pode deduzir uma norma”. Isto é, nota-se que, a partir de uma construção de julgados, cria-se um parâmetro decisório que serve de orientação aos magistrados e à população em geral.
A súmula, por sua vez, é a condensação do entendimento dominante de um determinado tribunal, ou seja, é a norma geral extraída do precedente ou da jurisprudência majoritária (DIDIER JÚNIOR; BRAGA; OLIVEIRA, 2017, p. 555). Assim, esse instrumento, por vezes de observância obrigatória, também tem por escopo orientar o julgamento de outros casos a fim de uniformizar a aplicação do direito.
Nesse sentido, os autores Didier Júnior, Braga e Oliveira (2017, p. 555) narram a seguinte evolução entre os preceitos acima citados: “[...] a súmula é o enunciado normativo (texto) da ratio decidendi (norma geral) de uma jurisprudência dominante, que é a reiteração de um precedente”. Dessa forma, vislumbra-se que, embora se tratem de conceitos independentes, o precedente pode dar ensejo à criação de jurisprudências e súmulas.
3.2 RATIO DECIDENDI E OBITER DICTUM
Conforme já explicitado, o precedente advém de uma decisão judicial com força paradigmática. No entanto, nem todo conteúdo exposto na sua justificação possui força vinculante, de modo que não é a integralidade da decisão que constitui um precedente (MARINONI; ARENHART; MITIDIERO, 2017, p. 651).
O professor Medina (2017, p. 1148-1149) explica que a potencialidade de ser precedente está nos motivos determinantes do julgado, de maneira que o que vincula na decisão são as razões da solução jurídica encontrada. Assim, diz-se que o precedente, em sentido estrito, é identificado pela sua ratio decidendi, isto é, pela sua razão de decidir.
A ratio decidendi, consoante preconizam os autores Marinoni, Arenhart e Mitidiero (2017, p. 652, grifo do autor), “[...] constitui uma generalização das razões adotadas como passos necessários e suficientes para decidir um caso ou as questões de um caso pelo juiz”. Em outras palavras, a ratio decidendi são as análises e abstrações do direito que levam à solução jurídica do caso concreto, formando-se, assim, uma norma geral para determinada questão de direito.
Ainda, frisam os aludidos doutrinadores (2017, p. 652) que a razão de decidir não é equivalente à fundamentação da decisão. Isso pois, enquanto a fundamentação em si diz respeito à particularidade do caso concreto, a ratio decidendi volta-se para a unidade do direito. Isto é, esta última cria norma geral aplicável a quaisquer novos casos acerca da mesma questão.
Como visto, não são todas as partes de uma decisão, nem mesmo tudo o que consta na sua justificação, que são aptas a formar precedentes, dado que há várias proposições desnecessárias à solução jurídica adotada. A esses elementos judiciais dispensáveis dá-se o nome de obiter dictum (MARINONI; ARENHART; MITIDIERO, 2017, p. 652-653).
De acordo com os juristas Didier Júnior, Braga e Oliveira (2017, p. 508), o obiter dictum é “[...] o argumento jurídico [...] exposto apenas de passagem na motivação da decisão, que se convola em juízo normativo acessório [...] ou qualquer outro elemento jurídico-hermenêutico que não tenha influência relevante e substancial para a decisão”.
Porém, salienta-se que, apesar do obiter dictum não constituir precedente, ele não é descartável. Posto que esse material jurídico, por exemplo, pode apontar futuras orientações do tribunal ou, no caso de votos vencidos (exemplo de obiter dictum), pode ter eficácia persuasiva para uma eventual e futura superação do entendimento anteriormente consolidado (DIDIER JÚNIOR; BRAGA; OLIVEIRA, 2017, p. 509-510).
Ante ao exposto, Marinoni, Arenhart e Mitidiero (2017, p. 653) argumentam que é necessária a atividade interpretativa do conteúdo da decisão judicial para identificar e aplicar o precedente. Nessa vereda, com base na previsão do artigo 489, § 1º, do Código de Processo Civil brasileiro, nota-se que devem ser observados o direito ao contraditório e o dever de fundamentação analítica pelos magistrados no momento da invocação do aludido instrumento. Isso pois, enfatizam os autores que se deve evitar a transformação do magistrado em mero “boca da jurisprudência”.
3.3 MECANISMOS DE APLICAÇÃO E SUPERAÇÃO DOS PRECEDENTES
Além de identificar a parte da decisão judicial que adquire força de precedente, é preciso compreender o uso e a dinâmica desse, isto é, de que maneira se aplicam e, eventualmente, se superam essas normas gerais consolidadas. Para isso, fala-se nas técnicas de confronto, interpretação, aplicação e superação do referido instituto, as quais se resumem, basicamente, às expressões chamadas de distinguishing e overruling (MARINONI; ARENHART; MITIDIERO, 2017, p. 659).
Didier Júnior, Braga e Oliveira (2017, p. 559) explicam que, a fim de se empregar o precedente, é necessário verificar se o caso em julgamento é condizente com aquele que gerou a norma jurídica abstrata. Ou seja, deve ser feito um juízo de comparação entre os elementos objetivos da demanda em apreço e os elementos caracterizadores da demanda paradigmática. Sendo semelhantes os aludidos casos, analisa-se a ratio decidendi do modelo decisório.
A essa técnica de distinção entre o caso concreto em julgamento e o paradigma, dá-se o nome de distinguishing. Nessa senda, esclarecem Marinoni, Arenhart e Mitidiero (2017, p. 659, grifo do autor):
[...] Se a questão que deve ser resolvida já conta com um precedente – se é a mesma questão ou se é semelhante, o precedente aplica-se ao caso. O raciocínio é eminentemente analógico. Todavia, se a questão não for idêntica ou não for semelhante, isto é, se existirem particularidades fático-jurídicas não presentes – e por isso não consideradas – no precedente, então é caso de distinguir o caso do precedente, recusando-lhe aplicação. É o caso de realizar uma distinção (distinguishing).
Portanto, não sendo coincidentes os fatos fundamentais da demanda a ser solucionada e aqueles que deram ensejo à ratio decidendi, ou, sendo semelhantes os casos, mas existindo particularidades que os afastam, há distinção entre as demandas. Assim sendo, a aplicação do precedente é repelida (DIDIER JÚNIOR; BRAGA; OLIVEIRA, 2017, p. 559).
De outro viés, conhecendo-se a mutabilidade do direito e a necessidade de sua adequação às realidades sociais, há técnicas para superação – total ou parcial – dos precedentes. A superação total do precedente é conhecida como overruling, método pelo qual, diante da perda da força vinculante de determinado entendimento, adota-se uma nova orientação, substituindo-se um precedente por outro (DIDIER JÚNIOR; BRAGA; OLIVEIRA, 2017, p. 563).
Desnecessária a superação integral de um entendimento, é possível a sua alteração parcial, a qual pode se dar mediante transformação (transformation) ou reescrita (overriding). A primeira ocorre quando não se vislumbra um erro na norma constituinte do paradigma, porém, levando-se em conta situações fático-jurídicas anteriormente não consideradas relevantes, faz-se necessário transformar o precedente frente às novas circunstâncias. O overriding, por sua vez, apenas restringe o alcance do modelo paradigmático, diminuindo o seu espaço de incidência (MARINONI; ARENHART; MITIDIERO, 2017, p. 660-661).
Segundo Marinoni, Arenhart e Mitidiero (2017, p. 660-661) a possibilidade de superar um precedente deve zelar pela confiança jurídica por ele construída, bem como pelo preceito da igualdade aos jurisdicionados. Ou seja, a mudança da aludida norma jurídica não pode causar surpresa injusta ou implicar em um tratamento desigual àqueles que, em um mesmo período de tempo, vivenciaram a mesma ou semelhante situação.
Assim sendo, nota-se que, para que seja respeitada a segurança jurídica, deve-se indicar a possibilidade de alteração do entendimento judicial previamente, sinalizando-se a sua mudança. Acerca dessa medida, esclarecem os doutrinadores retro mencionados (2017, p. 661, grifo do autor): “Pela sinalização, a corte não distingue o caso nem revoga o precedente no todo ou em parte, mas manifesta sua preocupação com a justiça da solução nele expressa”.
Também com o intuito de assegurar a estabilidade do direito, há a possibilidade de modular os efeitos temporais da decisão revogadora do precedente. Nessa senda, Marinoni, Arenhart e Mitidiero (2017, p. 663) defendem que a ratio decidendi revogada deve continuar vigente para aquelas situações em que há confiança justificada no preceito anterior, quer dizer, naqueles casos em que o precedente de fato merecia confiança à época que ocorreram os eventos. Para tanto, vislumbra-se que, além do direito se adequar à realidade da sociedade – alterando-se os precedentes –, as dinâmicas mencionadas evitam a surpresa maléfica e injusta aos indivíduos.
3.4 OS PRECEDENTES NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO
No Brasil, a ideia fundante de precedente – no sentido de se estabelecer paradigma para resolução de questões futuras análogas – existe há bastante tempo. Ademais, a previsão de mecanismos que visam suprir lacunas e evitar divergências das ordens jurídicas fazem parte da história do direito brasileiro desde as primeiras disposições legais acerca da organização judiciária e do processo civil (TUCCI, 2004).
No entanto, a maior relevância a esse tema se deu especialmente após a Segunda Guerra Mundial. Isso porque, conforme já mencionado outrora, no período do regime nazista inúmeras atrocidades foram perpetradas sob o manto da legitimidade conferida pelas legislações positivadas. Ante aos fatos, enfatizou-se a compreensão de que direito não é meramente extraído de um preceito legal, mas construído por elementos sociais, políticos, econômicos e outros, razão pela qual a teoria dos precedentes passou a ter maior influência sobre a tradição do civil law (MARINONI, 2009, p. 40-41).
O atual Código de Processo Civil brasileiro, haja vista sua preocupação com a isonomia das decisões dos magistrados, unidade e uniformização do direito, previu expressamente o respeito aos precedentes judiciais. Porém, conforme explicam Wambier e Talamini (2016, p. 695), a aludida legislação não inaugurou uma nova fonte de direito ou revolucionou paradigmas, mas simplesmente refletiu padrões que foram gradativamente se alterando nos últimos sessenta anos.
A legislação brasileira emprega por diversas vezes o termo “precedente”, porém, tendo em vista que não há uma clareza acerca das funções de cada corte judiciária, esse termo acaba se confundindo com a ideia de jurisprudência e súmula (MARINONI; ARENHART; MITIDIERO, 2017, p. 643).
De acordo com Marinoni, Arenhart e Mitidiero (2017, p. 642-644), apenas o Supremo Tribunal Federal e o Superior Tribunal de Justiça criam precedentes. Já, os Tribunais Regionais Federais e os Tribunais de Justiça formam jurisprudências. Isso pois, segundo os aludidos autores, as Cortes Supremas (STF e STJ) têm a função de dar unidade ao direito, interpretando-o e dizendo aos demais órgãos como esse deve ser entendido no nosso país. As chamadas Cortes de Justiça (TRF’s e TJ’s), por sua vez, destinam-se à justiça ao caso concreto, de modo que interpretam o caso e o direito a ele relativo, fomentando a discussão acerca das possíveis soluções jurídicas por meio da jurisprudência.
Tocante à dinâmica do precedente no ordenamento brasileiro, esse segue os mecanismos de aplicação, distinção e interpretação anteriormente explicitados, porém, dentro das realidades e moldes fixados pela legislação positivada. Sobremais, vislumbra-se que o Brasil confere a tais preceitos uma série de efeitos jurídicos, os quais podem ser obrigatórios ou não.
3.4.1 A força normativa dos precedentes
Conforme ensinamentos dos juristas Didier Júnior, Braga e Oliveira (2017, p. 517-518), o precedente é um fato; assim, independentemente da localidade geográfica, existindo decisão judicial o aludido fato ocorrerá. Porém, o seu tratamento jurídico depende do respectivo direito positivo – o qual advém produção cultural –, razão pela qual o precedente não tem a mesma relevância em todos os países, sendo ora desprezado ora posto no centro do sistema jurídico.
Ainda, explica-se que, por ser fato, os efeitos do precedente surgem independentemente da vontade do julgador, sendo esses anexos à decisão judicial, e, determinados pelo legislador. No Brasil, os aludidos preceitos podem ter uma série de efeitos jurídicos, dentre eles o obrigatório, o persuasivo e o impeditivo (DIDIER JUNIOR; BRAGA; OLIVEIRA, 2017, p. 518).
Os precedentes vinculantes são aqueles que obrigam a observância e aplicação da ratio decidendi em decisões posteriores acerca de casos análogos. Assim sendo, os magistrados deverão conhecê-los de ofício, sob pena de denegação da justiça, além de oportunizar a manifestação das partes quanto àquele, consoante previsão dos artigos 927, § 1º, e 10, caput, ambos do Código de Processo Civil.
No Brasil, o artigo 927 do Código de Processo Civil estabeleceu um rol não exaustivo de precedentes obrigatórios, os quais devem ser observados pelos juízes e tribunais em uma ordem de hierarquia vertical e/ou horizontal, a depender do caso. Acerca dessa vinculação, salientam Marinoni, Arenhart e Mitidiero (2017, p. 639-640) que cada vez mais há uma interpenetração do common law no civil law.
A eficácia persuasiva do precedente, conforme preconizam Wambier e Talamini (2016, p. 696), é a regra do sistema jurídico brasileiro e da tradição civil law em geral. Nesse caso o magistrado não está obrigado a seguir a ratio decidendi, tendo essa apenas o condão de influir nos julgamentos posteriores, servindo de base argumentativa.
Quanto à dimensão persuasiva, frisa-se que essa não deve ser subestimada, haja vista sua função de harmonizar e dar coerência às decisões. Nessa linha, o legislador pode conferir autoridade a esses precedentes, de modo que, por exemplo, uniformize-se a jurisprudência por meio de recursos que aleguem a divergência de decisões, conforme previsão do artigo 1.029, § 1º, do Código de Processo Civil.
Por fim, o efeito impeditivo tem o intuito de obstar a revisão, por quaisquer meios recursais, de decisões que julgaram o caso com base em um precedente. Por exemplo, a previsão legal do artigo 932, inciso IV, do Código Processual Civil, que estabelece que deverá ser negado provimento ao recurso que seja contrário à súmula do Supremo Tribunal Federal.
Destarte, ressalta-se que, apesar do ideal de eficácia e observância acima exposto, os precedentes muitas vezes nem se quer são analisados sob a égide da eficácia persuasiva. Segundo Marinoni (2009, p. 52-53), muitos juízes de primeira instância não se sentem na obrigação de respeitarem os precedentes, bem como, por vezes, não fundamentam a sua não aplicação diante de pedidos das partes. Acerca dessa atitude, frisa o autor que resta eliminada a possibilidade de se vislumbrar os efeitos dos precedentes.