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Loteria judicial.

Uma análise dos precedentes no ordenamento jurídico brasileiro

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4. OS PRECEDENTES JUDICIAIS COMO FONTE DE SEGURANÇA JURÍDICA

Atualmente há uma aproximação recíproca entre as tradições do common law e do civil law. Haja vista a existência de certas lacunas, bem como da exigência de soluções que amparem as brechas atuais das aludidas culturas jurídicas, nota-se que uma complementa a outra frente as suas necessidades. Isto é, enquanto o common law adota cada vez mais a legislação positivada, o civil law se volta cada vez mais para a problemática dos precedentes (MARINONI; ARENHART; MITIDIERO, 2017, p. 640).

A sociedade está em constante modificação, razão pela qual há contínua transformação das diretrizes de cunho social. Frente à essa realidade, Donizetti (2015, p. 4) argumenta que o legislador não consegue acompanhar tais mudanças, tornando-se a legislação muitas vezes ineficiente perante as demandas hodiernas. Sobremais, acrescenta-se que a lei positivada não é capaz de prever soluções para todos os casos concretos e futuros.

Nessa esteira, Donizetti (2015, p. 4) defende a impossibilidade de se gerir um Estado apenas com base em um sistema legalista, visto que é imprescindível a interpretação e a aplicação da lei de modo a concretizar os direitos e deveres por ela estabelecidos. Desse modo, a inserção da teoria dos precedentes na cultura civil law corresponde a uma resposta aos impasses por essa enfrentados.

De acordo com Marinoni, Arenhart e Mitidiero (2017, p. 639-640) o atual sistema do civil law tem grande preocupação em assegurar a liberdade e a igualdade de todos perante o direito, devendo-se zelar, assim, pela segurança jurídica. Para esse fim, porém, deve-se ter em mente que o texto legislativo é um signo desprovido de significado, revelando-se a norma jurídica apenas quando a lei é inserida em um contexto e então interpretada. Nesse encalço, os referidos doutrinadores concluem que ou se assume a normatividade das decisões paradigmáticas ou então os aludidos princípios não passarão de uma abstração diante de um sistema que permite evidentes discrepâncias nos julgamentos de casos idênticos.

No tocante a situação atual do sistema jurisdicional brasileiro, conforme enfatizado na exposição de motivos do anteprojeto do atual Código de Processo Civil, redigido pela respectiva Comissão de Juristas (2010, p. 21-37), verifica-se que há grande dispersão de entendimentos judiciais – proferindo-se decisões variadas em casos semelhantes –, fator esse que, diante da evidente insegurança jurídica, gera intranquilidade social e descrédito ao Poder Judiciário.

Quanto a essa fatídica realidade, Medina (2017, p. 1155-1156) explica que os textos legislativos nacionais e, em especial, a Constituição Federal de 1988 são permeados por cláusulas gerais e conceitos vagos e indeterminados, razão pela qual surgem entendimentos diversos acerca de uma mesma questão.

Para tanto, não se pode fechar os olhos diante do problema da interpretação judicial do direito e para a ideia dos precedentes daí decorrentes. Inobservada a falha do sistema, os juristas Marinoni, Arenhart e Mitidiero (2017, p. 641) argumentam metaforicamente que o direito brasileiro corre o risco de ser apenas um “dog law”. Isto é, tal como se espera que um cachorro faça algo de errado para só depois repreendê-lo, o ordenamento jurídico brasileiro não estaria avisando a população acerca do que não se deve fazer e as consequências desses atos, mas estaria esperando a pessoa fazer o que não se deve para só então revelar a punição diante da infração.

Destarte, em se tratando de um sistema indiferente com a realidade acima exposta, vislumbra-se um direito que não respeita a igualdade, a liberdade e a necessária segurança na tutela jurídica. Nessa vereda, a adoção de um mecanismo que visa tornar uniforme, íntegro e coerente o direito, tal como é o objetivo da teoria dos precedentes judiciais, revela um instrumento apto a auxiliar na solução da atual “loteria judiciária” presente no Brasil, e, portanto, na garantia da segurança jurídica (MARINONI; ARENHART; MITIDIERO, 2017, p. 640-641).

4.1 A FUNÇÃO DOS PRECEDENTES JUDICIAIS: DEVER DE INTEGRIDADE, ESTABILIDADE E COERÊNCIA DAS DECISÕES

O artigo 926 do Código de Processo Civil brasileiro estabeleceu que “os tribunais devem uniformizar sua jurisprudência e mantê-la estável, íntegra e coerente”. Diante dessa premissa, nota-se que os órgãos colegiados jurisdicionais têm o dever uniformizar os entendimentos e de assegurar a estabilidade, a integridade e a coerência das decisões a fim de se concretizar um sistema de precedentes. Sendo essa, pois, a função e a finalidade desse mecanismo (DIDIER JUNIOR; BRAGA; OLIVEIRA, 2017, p. 540).

Com relação à uniformização do direito, diz-se que o Poder Judiciário não pode ser omisso frente às divergências de decisões dentro de um mesmo tribunal acerca de uma mesma questão jurídica. Esse ideal de julgamentos uniformes e seguros, conforme preconizam Wambier e Talamini (2016, p. 699), representa um indicativo da eficiente interpretação do direito e uma clareza à sociedade quanto ao que se espera de suas condutas.

O dever de estabilidade alude a ideia de se evitar a mudança brusca de entendimento dos tribunais ou, quando for o caso, justificar adequadamente as eventuais alterações. Nessa senda, conforme já explicitado em momentos anteriores, os magistrados devem se utilizar dos mecanismos de sinalização da transformação dos paradigmas, bem como da prerrogativa de modulação dos efeitos da decisão, a fim de se garantir o respeito à segurança jurídica (DIDIER JUNIOR; BRAGA; OLIVEIRA, 2017, p. 541).

A integridade quanto às decisões diz respeito à unidade do direito. Quer dizer, deve-se analisar o ordenamento jurídico como um todo, de modo a observar todas as normas sistemática e hierarquicamente organizadas, a fim de se decidir uma questão. Ademais, esse dever também aponta para observância de todo o contexto dos casos em apreço, exigindo o enfrentamento de todos os argumentos favoráveis e desfavoráveis ao uso do precedente (WAMBIER; TALAMINI, 2016, p. 700-701).

A coerência, por sua vez, refere-se a ideia de não contradição. Essa premissa exige o diálogo com as decisões paradigmáticas anteriores, as quais devem sempre ser observadas, seja para sua aplicação, distinção ou superação. Ou seja, deve haver uma congruência entre os julgamentos. Outrossim, frisa-se que a coerência e a integralidade têm o condão de zelar pela consistência da jurisprudência (DIDIER JUNIOR; BRAGA; OLIVEIRA, 2017, p. 546-551).

Nessa vereda, os doutrinadores Marinoni, Arenhart e Mitidiero (2017, p. 646) afirmam que a imposição legislativa quanto ao dever de proteger a unidade do direito, bem como de fazê-lo seguro, determinaram o respeito aos precedentes. Com efeito, verifica-se que, por meio desse sistema de decisões paradigmáticas e da observância do sistema processual como um todo, é possível garantir maior efetividade ao princípio da isonomia e da segurança jurídica, tornando o direito cognoscível, estável e confiável.

4.2 OS PRECEDENTES SOB A ÉGIDE DOS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS

O dissenso de decisões judiciais em casos idênticos, a grande demanda judicial e a insegurança jurídica daí proveniente, são alguns dos elementos responsáveis pela atual crise do Poder Judiciário; crise essa que, inclusive, afasta o aludido poder do Estado Democrático de Direito. Sobre o assunto, narra a Comissão de Juristas do Anteprojeto do Código de Processo Civil (2010, p. 21):

Um sistema processual civil que não proporcione à sociedade o reconhecimento e a realização dos direitos, ameaçados ou violados, que têm cada um dos jurisdicionados, não se harmoniza com as garantias constitucionais de um Estado Democrático de Direito. Sendo ineficiente o sistema processual, todo o ordenamento jurídico passa a carecer de real efetividade. De fato, as normas de direito material se transformam em pura ilusão, sem a garantia de sua correlata realização [...] por meio do processo.

Diante desse cenário, o desenvolvimento de um sistema precedentalista se revela como uma alternativa capaz de sanar, ou ao menos melhorar, tais máculas. Nesse sentido, faz-se necessário compreender o tratamento desse mecanismo frente aos princípios constitucionais, bem como os benefícios que a vinculação das decisões visa proporcionar ao ordenamento jurídico nacional.

4.2.1 Princípio da legalidade

O artigo 5º, inciso II, da Constituição Federal do Brasil, estabelece que “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude da lei”. Desse dispositivo vislumbra-se o princípio da legalidade, o qual tem o condão de limitar a atividade do Estado perante o indivíduo, legitimando apenas os atos previamente estabelecidos pelas normas legais, bem como delimita a própria atividade jurisdicional (DONIZETTI, 2015, p. 3).

Também, o artigo 8º do Código de Processo Civil brasileiro prevê que “ao aplicar o ordenamento jurídico, o juiz atenderá aos fins sociais e às exigências do bem comum, resguardando e promovendo a dignidade da pessoa humana e observando [...] a legalidade [...]”. Diante dessa previsão, constata-se que o juiz tem o dever de observar o princípio da legalidade, não podendo, assim, com ou sem a ideia de um sistema de precedentes, decidir demandas judiciais a sua bel vontade sem a observância do ordenamento jurídico pátrio.

Os doutrinadores Didier Junior, Braga e Oliveira (2017, p. 533) explicam que o primado da legalidade obriga o magistrado a decidir as ações judiciais em conformidade com o direito, e não puramente em respeito à legislação. Isto é, tal como preconiza o dever da integridade, deve-se compreender que a “legalidade” abrange o ordenamento jurídico como um todo, sendo a lei apenas uma de suas fontes. Ademais, a própria legislação exige a observância dos precedentes judiciais, consoante previsão do artigo 926, caput, do Código de Processo Civil.

De acordo com o autor Marinoni (2009, p. 38), o movimento do constitucionalismo deu causa à modificação da ideia do aludido princípio do sentido meramente formal para o sentido material; isso porque a própria lei passou a encontrar limites nos princípios constitucionais, deixando de ter apenas legitimação formal. Nessa senda, explica-se que a legalidade fora direcionada ao conteúdo amarrado à lei e aos direitos fundamentais dela decorrentes.

Ciente de que o tratamento diferenciado de situações jurídicas análogas destrói o ideal de consistência e de unidade do direito, um sistema que é indiferente a essa realidade rechaça o princípio da legalidade. Desse modo, faz-se necessário empregar mecanismos que promovam a integridade do ordenamento legal. Portanto, conclui-se que a teoria dos precedentes, além de respeitar o primado da legalidade, contribui para a sua concretização (WAMBIER; TALAMINI, 2016, p. 701-702).

4.2.2 Princípio da isonomia

O ideal de isonomia das decisões é um forte argumento a favor da utilização dos precedentes judiciais. Isso porque, conforme já fora mencionado, o tratamento desigual de casos idênticos perante o Judiciário é inadmissível, uma vez que viola direitos constitucionais e ocasiona uma grande instabilidade jurídica.

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Do mesmo modo que o princípio da legalidade, a igualdade deve ser analisada frente ao direito, e não apenas frente à legislação positivada. Nessa seara, Marinoni (2012, p. 1-2) afirma que é obrigatória a observância da igualdade não apenas no momento da elaboração das leis, mas também quando é realizada a função jurisdicional. Caso contrário, tal preceito corresponderia apenas a uma abstração intangível.

Ainda conforme preconiza Marinoni (2012, p. 4-5), a isonomia no âmbito do Poder Judiciário vai além da paridade de tratamento das partes no processo e da igual possibilidade de acesso à justiça e a técnicas processuais, devendo se concretizar também perante as decisões judiciais. Ou seja, é imprescindível a manutenção de um direito íntegro, estável e coerente; a qual é objeto de garantia pela sistemática precedentalista.

No mais, advertem Didier Junior, Braga e Oliveira (2017, p. 534-535) que a isonomia pode restar violada se não forem observadas as particularidades de cada caso, razão pela qual o uso indiscriminado de decisões paradigmáticas teria o efeito inverso do ora pretendido. Isso porque os indivíduos devem ser tratados de modo distinto na medida da sua desigualdade. No entanto, a fim de se evitar esse resultado, os artigos 489, § 1º, inciso V e VI, e 927, § 1º, do Código de Processo Civil, exigem que o magistrado analise as peculiaridades de cada caso, fazendo a adequada distinção do paradigma com o caso em julgamento no momento de aplicar ou afastar um precedente.

Em derradeiro, verifica-se que a uniformização dos entendimentos judiciais, bem como a estabilidade e consistência do direito, perfectibiliza a isonomia nos casos concretos. Desse modo, a necessidade de um direito estável, íntegro e coerente se harmoniza com a noção de igualdade e justifica o respeito ao precedente (DIDIER JUNIOR; BRAGA; OLIVEIRA, 2017, p. 534).

4.2.3 Princípio da segurança jurídica

Diferentemente do que se pensou no início da cultura do civil law, a segurança jurídica não é alcançada tão somente com a estrita aplicação da lei, nem a certeza do direito está puramente garantida na legislação positivada (MARINONI, 2009, p. 34). Isso porque, além de ser inevitável a atividade interpretativa do magistrado, a atualidade é munida de textos legislativos vagos e indeterminados que deixam grande margem para interpretações (MEDINA, 2017, p. 1155-1156). Desse modo, a previsibilidade do direito deve se atentar para a atividade jurisdicional, isto é, para a problemática da sua interpretação.

O princípio em comento está previsto no artigo 5º, inciso XXXVI, da Constituição Federal, o qual dispõe: “a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada”. A partir desse dispositivo, entende-se que atos normativos do Estado não poderão atingir situações já consolidadas.

Porém, também é necessário garantir a estabilidade do direito com relação ao presente. Quer dizer, sabendo que os cidadãos agem com base no comportamento de seus semelhantes e do Estado, devem ser coerentes e uniformes as atitudes desse último a fim de se estabelecer uma relação de confiança entre a sociedade e o direito que a rege. Dessa forma, o ordenamento jurídico estará munido de previsibilidade, mantendo-se confiável, coerente e seguro (DIDIER JUNIOR; BRAGA; OLIVEIRA, 2017, p. 535).

Acerca do papel dos precedentes na garantia da segurança jurídica estabelecem os autores Didier Junior, Braga e Oliveira (2017, p. 536):

O respeito aos precedentes garante ao jurisdicionado a segurança de que a conduta por ele adotada com base na jurisprudência já consolidada não será juridicamente qualificada de modo distinto do que se vem fazendo; a uniformidade da jurisprudência garante ao jurisdicionado um modelo seguro de conduta presente, na medida em que resolve as divergências existentes acerca da tese jurídica aplicável a situações de fato semelhantes.

Nesse liame, e conforme já explicitado no decorrer deste artigo, nota-se que o sistema de precedentes judiciais, respeitado em toda a sua teoria e mecanismos de aplicação, distinção e superação, é um meio apto a assegurar não só a previsibilidade do direito, mas também a sua estabilidade, integridade, unidade, uniformidade e coerência, elementos esses essenciais para a garantia da segurança necessária a um sistema jurídico.

4.3 ARGUMENTOS DESFAVORÁVEIS À TEORIA DOS PRECEDENTES JUDICIAIS

A implementação da sistemática precedentalista na cultura do civil law, em especial quanto a teoria do stare decisis (referente aos precedentes com força vinculante), gera certa resistência e controvérsias frente às fortes raízes da tradição romano-germânica.

Sob o olhar mais conservador do sistema romanista, vislumbram-se que os argumentos contrários mais comuns à utilização dos precedentes são a violação ao princípio da separação dos poderes, o engessamento do direito e a violação ao princípio do livre convencimento motivado do juiz. Nessa senda, seguem as análises pertinentes aos temas.

4.3.1 Princípio da separação dos poderes

Diante dos argumentos de Montesquieu e da ideologia da Revolução Francesa, conforme já estudado, enraizou-se a ideia de uma estrita separação dos poderes e uma clara distinção entre as funções dos poderes Legislativo e Judiciário. Todavia, a rígida concepção da época foi sendo modificada em decorrência de eventos históricos e sociais, em especial com o advento do constitucionalismo (MARINONI, 2009, p. 22).

A realidade da sociedade francesa nos séculos XVIII e XIX, exigia a limitação da atividade do juiz como mero “boca da lei”, pois, se à época o poder de julgar não estivesse separado das demais funções do Estado não existiria liberdade (MARINONI, 2009, p. 28-29). Sob esse prisma, não seria impossível dizer que a adoção de um sistema de precedentes judiciais, diante de uma ideia de criação do direito pelo magistrado, estaria violando o primado da separação dos poderes (MARQUES, 2014, p. 5).

No entanto, conforme esclarece Marinoni (2009, p. 55) houve certa mutação na figura do juiz e no ideal de separação dos poderes no sistema civil law, o qual não tem o condão de vincular a atividade jurisdicional puramente aos ditames positivados, isso porque, conforme já visto, o magistrado deve analisar e interpretar a lei dentro de todo o contexto do ordenamento jurídico.

Nessa seara, o doutrinador Medina (2017, p. 1143) ressalta que o precedente não ignora a lei, bem como não “cria” uma solução jurídica a partir do nada, quer dizer, o julgador interpreta as bases do ordenamento legal e fundamenta a sua decisão na norma que o embasa.

Ademais, é inegável a aproximação entre as tradições do common law e do civil law, de modo que, apesar deste último ter como primado a legislação positivada, as decisões judiciais não se limitam a declarar a lei. Isso pois, consoante ensinamentos dos juristas Wambier e Talamini (2016, p. 695), o texto legal pouco representa quanto ao significado do direito, razão pela qual esse não é simplesmente extraído das escrituras, mas construído e interpretado a partir da legislação e, mais que isso, a partir de uma série de valores sociais que formam o nosso ordenamento jurídico.

Diante do exposto, compreendendo-se a separação dos poderes como a harmonização e independência entre eles, nota-se que a ideia de que os precedentes estariam violando tal primado está enraizada na sua concepção originária do civil law, não se verificando tal violação na sistemática estatal atual.

4.3.2 Engessamento do direito

Outra arguição contrária a adoção de um sistema de precedentes é a ideia do engessamento do direito. Com relação a essa, entende-se que o ideal de decisões paradigmáticas acabaria perpetuando entendimentos obsoletos e em desacordo com as realidades vigentes. No entanto, conforme se verá, essa premissa não é verdadeira.

Segundo Wambier e Talamini (2016, p. 701), o objetivo dos precedentes não é o de fossilizar teses que se revelam superadas no contexto social de seu tempo. Pelo contrário, afirmam os aludidos juristas que “a produção jurisprudencial deve revestir-se de dinamismo que acompanhe as mutações que ocorram no cenário social, político, cultural [...]”. Desse modo, verifica-se que pode ocorrer tanto uma mudança de entendimento ante a uma evolução ocorrida no âmbito sociocultural, quanto uma oscilação na interpretação de uma questão pelos próprios tribunais.

De fato, o precedente tem o condão de evitar a instabilidade das decisões judiciais, mas isso não quer dizer que se deva manter uma uniformidade jurisprudencial a qualquer custo, não se atentando às mutações sociais e ao próprio ideal de justiça. Caso contrário, estar-se-ia negando a proteção aos próprios valores que o mecanismo em questão visa assegurar. Assim, diz-se que o sistema precedentalista não é inexorável, sendo admitida a revogação do paradigma – a qual, diante do contexto, é justificada e, por vezes, necessária (MEDINA, 2017, p. 1157).

Posto isso, verifica-se que o argumento a respeito do engessamento do direito é um mito, pois a teoria precedentalista é munida de mecanismos de superação parcial ou total dos entendimentos fixados, a fim de primordialmente restar assegurada a justiça frente às realidades fáticas.

4.3.3 Princípio do livre convencimento motivado do juiz

Inicialmente, destaca-se que a independência jurisdicional é uma das premissas para a manutenção de um Estado Democrático de Direito. O reconhecimento da independência do magistrado busca garantir o julgamento imparcial das demandas. No entanto, o que se vislumbra no contexto jurídico atual é que essa liberdade assumiu uma proporção de ordem pessoal, onde os julgadores parecem não se sujeitar às demais ordens estatais e às decisões provenientes de colegas hierarquicamente superiores (SOUTO MAIOR; FAVA, 2006, p. 67-68 apud SOUZA, 2014, p. 50). Razão pela qual o sistema precedentalista surge para proporcionar maior estabilidade e coerência entre as decisões.

Porém, independentemente da realidade apontada, do mesmo modo que ocorre com o mundo das leis, os precedentes não surgem como meio de suprimir a livre apreciação das circunstâncias fáticas e das provas a fim de que se exerça o livre convencimento fundamentado. Isso porque, conforme já fora explicitado no decorrer deste artigo, o juiz pode não seguir o precedente quando, de modo fundamentado, demonstrar que o caso em apreço, diante das suas peculiaridades, não se amolda ao paradigma (DONIZETTI, 2015, p. 20).

Acerca dessa suposta violação da autonomia jurisdicional pela teoria dos precedentes, argumenta o processualista Donizetti (2015, p. 19):

De início pode-se pensar que o NCPC está afastando a independência do juízo e o princípio da persuasão racional, que habilita o magistrado a valer-se do seu convencimento para julgar a causa. Entretanto, ontologicamente, não há diferença entre a aplicação da lei ou do precedente [...]. Tal como no sistema positivado, também no stare decisis o livre convencimento do juiz incide sobre a definição da norma a ser aplicada – aqui por meio do confronto da ratio decidendi extraída do paradigma com os fundamentos do caso sob julgamento – sobre a valoração das provas e finalmente sobre a valoração dos fatos pelo paradigma escolhido, levando-se em conta as circunstâncias peculiares da hipótese sob julgamento.

Ante ao exposto, nota-se que o sentido de hierarquia e vinculação incutido ao precedente não tem por escopo ferir a independência jurisdicional, mas tão somente busca garantir a consistência das decisões; a qual só será alcançada se houver o devido respeito à hierarquia organizacional do Poder Judiciário.

4.5 PRECEDENTES JUDICIAIS: SOLUÇÃO OU FALÁCIA JURÍDICA?

Conforme sintetiza Donizetti (2014, p. 5), a coerência, a isonomia, a segurança jurídica e a previsibilidade das decisões judiciais são algumas das principais justificativas para a implementação do sistema de precedentes no ordenamento jurídico brasileiro. Em outras palavras, recorre-se a esse instrumento a fim de se amparar a atual crise do quadro jurisdicional pátrio.

Acerca da adoção desse mecanismo, apesar de conhecidos os benefícios que ele pretende garantir, questiona-se se essa teoria de fato virá a concretizar os fins prometidos, ou se, na verdade, terá o mesmo efeito que a legislação positivada. Nesse sentido, Raatz (2013, p. 227) argumenta que o precedente representa um retorno ao exegetismo, quer dizer, do mesmo modo que o juiz deve se ater a observância da lei, agora o terá que fazer com o paradigma, correndo o risco de se tornar, no lugar de “boca da lei”, “boca de precedente”.

Seguindo essa linha, Donizetti (2015, p. 7) argumenta que não são incomuns as decisões judiciais que, defendendo-se o julgador no princípio da celeridade processual, são fundamentadas em ementas de jurisprudências sem relação real com a causa que está sendo julgada. Para tanto, o autor enfatiza que de nada adianta adotar o sistema de precedentes se ele não é aplicado da maneira adequada.

Porém, caso utilizada a teoria dos precedentes em todo o seu ânimo e finalidade, percebe-se que essa, diferentemente de se averiguar tão somente a produção legislativa – a qual muitas vezes não fornece uma resposta clara ao problema –, consegue atingir os casos concretos de modo mais justo – atento às particularidades do caso –, bem como conduz à sensação de uma justiça igual para todos, uma vez que o paradigma se aplica para os demais casos semelhantes (RADBRUCH, 2010, p. 34-35).

Em defesa à solução apresentada pelo sistema de força obrigatória dos precedentes, Marinoni enfatiza (2016):

Um sistema judicial caracterizado pelo respeito aos precedentes está longe de ser um sistema dotado de uma mera característica técnica. Respeitar precedentes é uma maneira de preservar valores indispensáveis ao Estado de Direito assim como de viabilizar um modo de viver em que o direito assume a sua devida dignidade na medida em que, além de ser aplicado de modo igualitário, pode determinar condutas e gerar um modo de vida marcado pela responsabilidade pessoal.

A respeito do exposto, complementa-se que, assim como qualquer coisa inanimada, a extensão dos benefícios que a teoria dos precedentes judiciais pode trazer à jurisdição pátria depende da atividade responsável de toda a sociedade – tanto daqueles que trabalham para providenciar a tutela jurisdicional quanto daqueles que buscam por ela. Isto é, é imprescindível a reunião de esforços e comprometimento dos operadores de direito para esse fim (LAITANO, 2002, p. 187).

Conforme os ensinamentos de Laitano (2002, p. 189-190), verifica-se que não basta a existência de um mecanismo que, apenas na teoria e na folha de papel, seja capaz de solucionar os impasses da atual cultura do civil law, quando não há uma atividade humana colaborativa que o sustente. Nessa seara, ciente o Poder Judiciário do papel que lhe foi designado, compete aos seus integrantes a atividade atenciosa quanto a concretização dos ideais arquitetados pelo ordenamento legal, fazendo-se cumprir na íntegra os objetivos do sistema de precedentes.

Por fim, tendo em vista a aplicação adequada dos precedentes, compreende-se que o sistema precedentalista proporcionará a mudança esperada pelo ordenamento jurídico brasileiro, tratando situações iguais do mesmo modo e, consequentemente, concretizando a segurança jurídica necessário ao direito.

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Sobre as autoras
Fernanda Trentin

Mestre em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina. Professora no Curso de Direito na UNOESC, Campus de São Miguel do Oeste.

Priscila Finkler

Bacharel em Direito pela Unoesc, campus São Miguel do Oeste

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

TRENTIN, Fernanda ; FINKLER, Priscila. Loteria judicial.: Uma análise dos precedentes no ordenamento jurídico brasileiro. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 28, n. 7424, 29 out. 2023. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/75861. Acesso em: 24 dez. 2024.

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