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A propriedade em Locke:

o conceito liberal de propriedade

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Resumo:


  • O direito de propriedade é uma instituição jurídica fundamental que se manifesta em diversas culturas e épocas, tendo sua origem perdida no tempo e sendo considerada um direito natural, inalienável e imprescritível.

  • John Locke é um filósofo que defende a propriedade como um direito natural, resultante do trabalho do indivíduo, e argumenta que a propriedade privada é essencial para a estrutura da sociedade e para a constituição do governo civil.

  • A filosofia política de Locke influenciou o liberalismo, enfatizando a importância da propriedade para a felicidade e o bem-estar dos indivíduos, e justificando a limitação do poder estatal para proteger os direitos naturais, incluindo a propriedade.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

Sumário: 1. Considerações iniciais. 2. O Direito Natural. 3. A filosofia política jusnaturalista liberal de Locke. 4. Locke e o direito de propriedade. 5. Referências bibliográficas.


1. Considerações iniciais.

            Em qualquer que seja a cultura, em todos os tempos, a propriedade marcou presença em alguma de suas formas de manifestação. O direito de propriedade constitui a base de nossa vida social. Nas palavras de Rodrigo Baptista Martins, constitui "o mais internacional e o menos regionalista dos direitos" [01].

            Perdem-se no tempo suas origens. No século XV a.C. Moisés escreveu (recebeu) a advertência: "Não cobiçarás a casa do teu próximo. Não cobiçarás a mulher do teu próximo, nem o seu servo, nem a sua serva, nem o seu boi, nem o seu jumento, nem cousa alguma que pertença ao teu próximo" (Ex. 20:17) [02].

            A Grécia antiga também admitia a propriedade privada, que foi se consolidando a partir do fim do século VII a.C.. [03]

            Apesar dos romanos não nos terem legado nenhum conceito de propriedade [04], é deles que se originou o mais próximo do que temos hoje. Na Roma arcaica (século II a.C.) a propriedade imobiliária era presumida como coletiva, pertencentes às gens. [05] Somente na época de Justiniano os vários aspectos da propriedade foram concentrados no ius utendi et abutendi re sua, definição inspirada numa das lei das Pandectas [06].

            Na Idade Média, sob o regime feudal, houve uma fragmentação da propriedade como era entendida no Direito Romano, quando o titular do domínio direto, o proprietário do imóvel, cedia a um vassalo, que poderia explorá-lo como melhor lhe conviesse, em troca de uma contraprestação determinada. Antes de valor econômico, a propriedade era sinônimo de poder. [07]

            A Revolução Francesa deu à propriedade o status de pilar estrutural da sociedade, juntamente com a liberdade e a igualdade. De poder, a propriedade passou a ser considerada um direito inerente à natureza humana, consagrado no art. 17 da Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão de 1789. [08]

            A propriedade assim concebida, um direito natural, inalienável e imprescritível, livre de quaisquer ônus e encargos, foi confirmada no Código Civil francês de 1804, Código de Napoleão, que serviu de inspiração para várias outras legislações civis ocidentais no século XIX e início do século XX. [09]

            A propriedade privada foi muito criticada no século XIX. Karl Marx defendia que o processo histórico da propriedade nada mais era que um processo de espoliação. Para Proudhon, todas as formas de propriedade constituem roubo. [10]

            Desses ideais contestatários erigiu-se a revolução comunista russa, de 1917. O art. 4° da Constituição da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas estabelecia:

            A base econômica da URSS é constituída pelo sistema socialista de economia e pela propriedade socialista sobre os instrumentos e meios de produção, firmemente assentados como resultado da liquidação do sistema capitalista de economia, da abolição da propriedade privada sobre os instrumentos e meios de produção e da supressão da exploração do homem pelo homem. [11]

            A tendência desse século é aceitar o direito à propriedade privada, desde que exercido à luz da função social que lhe é inerente. Não que essa idéia seja nova. Remonta aos ensinamentos de São Tomás de Aquino, formadores da doutrina social da Igreja Católica, expressa pelas encíclicas papais. [12]

            Limitar o direito de propriedade ao interesse público, impondo-lhe o cumprimento de sua função social, implica em verdadeira propriedade vinculada, [13] de conteúdo "voltado para a dignidade humana e para a igualdade com terceiros não proprietários" [14].

            Muitos tentaram explicar quais seriam os fundamentos desse direito. Alguns, em especial os doutrinadores católicos, defendiam que o direito de propriedade constitui um direito natural de todo indivíduo. Hobbes e Rousseau advogam a teoria de um pacto social, ainda que por motivos diversos.

            Embora Locke defendesse o contrato social como criador do governo civil, aliás, quase um século antes da célebre obra de Jean-Jacques Rousseau, não concebia esse contrato como, por si só, título justificativo de propriedade.

            O estudo em tela busca tratar o conceito de propriedade na visão de John Locke, seus fundamentos e sua contribuição para a concepção atual de tão importante instituto jurídico.


2.O Direito Natural.

            Para entender o pensamento de Locke, primeiramente faz-se necessária uma breve reflexão sobre o Direito Natural.

            Na definição de Régis Jolivet, a lei natural "é a lei que o homem conhece pela luz natural de sua razão, enquanto implícita na natureza das coisas" [15]. Continuando: "é uma participação da lei eterna na criatura racional, uma impressão em nós da luz divina, pela qual podemos discernir o bem e o mal" [16].

            Assim, o Direito Natural se constitui num conjunto de juízos práticos universais, dos quais não podemos fugir sem incorrer na censura de nossa consciência.

            Há, nas leis naturais, uma imutabilidade intrínseca, em si mesmas, além da extrínseca, pela qual é ilícito transgredi-las e impossível renunciá-las. É princípio primeiro da lei natural que é necessário fazer o bem e evitar o mal.

            Numa análise histórica verificamos que o Direito Natural viveu períodos de ascensão e declínio, sem nunca, todavia, podermos dizer que em alguma época tenha ele morrido. Bobbio cita Brecht, para quem houve um grande período de esplendor jusnaturalista na Grécia Antiga até os juristas romanos, decaindo na era patrística (Santo Agostinho), para reerguer-se na escolástica (Santo Tomás), vindo a declinar-se novamente no período de Bodin a Hobbes. Com Locke houve nova ascensão, com o chamado jusnaturalismo moderno, que durou até o período do empirismo inglês, de Hume, Bentham e Mill. O idealismo alemão, de Kant a Hegel, elevou o Direito Natural ao auge de seu esplendor, que veio a declínio com o positivismo do século XIX. [17]

            O jusnaturalismo surgiu na Grécia, numa sociedade onde o direito era essencialmente consuetudinário, cuja principal característica é ser aceito como se sempre houvesse existido.

            Aristóteles fala sobre a distinção entre direito natural e direito positivo:

            Da justiça política, uma parte é natural, a outra é legal. A natural tem em qualquer lugar a mesma eficácia, e não depende das nossas opiniões; a legal é, em sua origem, indiferente que se faça assim ou de outro modo; mas, uma vez estabelecida, deixa de ser indiferente. [18]

            Para o filósofo, o direito natural tem duas características principais: a primeira é gozar de validade universal; a segunda é valorar que regra é justa ou injusta em si mesma. Segundo Aristóteles, como nem todas as ações são reguladas pelo direito natural, existem as leis positivas para disciplinar aquilo que para o direito natural é indiferente.

            Como podemos notar, para ele o direito positivo começa apenas onde termina o direito natural, evidenciando a superioridade deste em relação ao primeiro. Em caso de conflito, prevalece a lei natural, como evidenciado nessa passagem da Retórica:

            A lei pode ser própria e comum. Própria é a que cada um impõe a si mesmo; e esta tanto pode ser escrita, como não escrita. Comum é a lei de acordo com a natureza. Existe de fato o justo e o injusto comuns pela natureza, que todos proclamam, ainda que não se tenham posto de acordo ou de alguma forma pactuado todos os que a aceitam. [19]

            Apesar de ter Aristóteles por base principal, o direito natural foi consolidado por Santo Tomás, para quem a lei natural é a lei de Deus, identificada com os Dez Mandamentos e com os preceitos pregados por Jesus. Em sua Summa theologica distingue quatro formas de lei: aeterna, naturalis, humana e divina [20].

            A lei eterna é a razão divina que governa o mundo. Lei natural é como essa lei eterna se manifesta no homem, tido como criatura dotada de razão. Consiste na máxima bonum faciendum, male vitandum.

            Lei humana são todos os preceitos particulares criados pela razão para normatizar a convivência social. É a lei positiva, ou humanitus positiva, que para Santo Tomás constitui um desenvolvimento interno da lei natural, visando adaptá-la à situação concreta. Como tal, a lei natural constitui condição de validade da lei positiva, como demonstra suas clássicas palavras:

            Omnis lex humanitus posita intantum habet de ratione legis inquantum a lege naturae derivatur: si vero in aliquo a lege naturali discordet, iam non erit lex, sed legis corruptio. [21]

            A reformulação jusnaturalista de Locke, Rousseau e Grotius teve por principal fim desligar dos seus fundamentos religiosos, marcando o fim do chamado jusnaturalismo teológico.

            Hobbes adota a doutrina do direito natural de modo diverso, para reforçar o poder do Estado. Não se pode dizer que foi um jusnaturalista, mas sim um positivista que usou de meios jusnaturalistas para explicar suas idéias. Para o pensamento hobbesiano, constitui lei natural o dever de obediência às leis civis. Estas deveriam sempre ser atendidas, independentemente de qualquer análise valorativa.

            A Escola do Direito Racional, por sua vez, representada na Alemanha e na Áustria por Zeiller, Rotteck e outros, depois de Kant e Fichte, sustenta a validade do direito natural na razão.

            Os positivistas modernos tentaram destruir a noção de um direito natural, chegando a ponto de considerar pleonasmo a expressão "direito positivo". O Código italiano de 1865, por exemplo, admitia, em seu art. 3º, o recurso aos "princípios gerais do direito", fórmula substituída pelo Código de 1942 por "princípios gerais do ordenamento jurídico do Estado", tentando coibir a função do direito natural.

            Alguns positivistas admitem um certo direito natural. R. Ardigò, chefe do positivismo italiano, o concebeu no sentido de fato psicológico que prepararia o direito positivo do futuro. [22] Hebert Spencer admitiu uma justiça absoluta acima da relativa, além de enunciar uma série de "direitos naturais" do indivíduo em relação ao Estado. [23]

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            Fala-se muito em um ressurgimento do direito natural neste século, após a Segunda Guerra Mundial. Não há como renascer aquilo que nunca morreu, pois sempre houve aqueles que advogaram um direito acima das leis.

            A idéia do direito natural está intimamente ligada aos ideais de justiça. Não há como se conceber o Direito divorciado da justiça. Giorgio del Vecchio explicitou bem essa situação, ao dizer:

            Renunciar a tal avaliação, isto é, a uma consideração autônoma do justo e do injusto, independentemente das disposições sempre mutáveis das leis positivas significa renegar a uma das essenciais prerrogativas da consciência humana. [24]

            Para del Vecchio, cabe ao direito natural "não só promover o progresso jurídico em geral, mas também colmar as lacunas inevitáveis do direito positivo". [25]


3. A filosofia política jusnaturalista liberal de Locke.

            Antes, ainda, de partimos para o conceito de propriedade em Locke, analisemos de um modo geral sua filosofia.

            Indubitavelmente, John Locke era um jusnaturalista, pois todo seu pensamento parte da idéia de uma lei natural fundamentada não mais num poder divino ou transcendental, mas na razão. E, como tal, defendia a limitação do poder estatal, cujo princípio e fim haveria de ser o respeito a essas leis naturais.

            Apesar de cristão, criticou os escolásticos, e até mesmo Descartes e Platão, sendo considerado o fundador do empirismo, nossa teoria do conhecimento, defendendo que não há idéias ou princípios inatos. [26]

            No Primeiro Tratado, Locke atém-se a refutar o Patriaicha, de Sir Robert Filmer, escritor absolutista que fundamentava o direito divino dos reis nos direitos de Adão e dos patriarcas.

            O Segundo Tratado, intitulado Segundo Tratado do Governo Civil: ensaio concernente à verdadeira origem, extensão e fim do Governo Civil, expunha sua teoria do Estado, os fundamentos do governo civil, dentre outros.

            É considerado o pai do liberalismo, combatendo a concepção paternalista de governo. Critica o despotismo, o governo baseado na força, o que, numa clara alusão a Hobbes, reconhece servir para manter a ordem ou a paz, mas se mostra uma ameaça quando o fim é a proteção da liberdade ou a conservação dos bens.

            Para Locke, nada era mais importante que a felicidade, e pregava que o interesse particular de modo algum anulava o interesse público, concepção caracteristicamente liberal. Exaltava a prudência, diretamente relacionada com os interesses capitalistas.

            O próprio Locke se auto-intitulava um "reformador da política", e de fato seus Tratados sobre o Governo Civil representaram um marco no combate ao absolutismo, as bases da democracia liberal, de essência individualista, cujas Declarações de Direitos das colônias americanas insurretas, depois da França revolucionária, constituíram a magna carta. [27]

            Locke parte também de um estado de natureza, em princípio concebido de modo diferente de Hobbes, não como um estado de guerra, mas de paz, liberdade e bem-estar. Todavia, com o desenrolar de seu pensamento, foi-se mostrando mais hobbesiano que gostaria, e o seu estado de natureza foi se tornando cada vez mais um estado de guerra, fazendo-se necessário o estado civil, os direitos nascidos no direito natural, como a liberdade, a igualdade e a propriedade.

            Da análise dos dois pensadores, deduz-se que, para Hobbes, o estado de natureza era mera premissa hipotética, enquanto para Locke consistia em uma situação histórica real. Também, ao contrário de Hobbes, não via o governo civil como o fim dos direitos naturais, mas pregava que estes subsistiam para limitar o poder social e fundar a liberdade.

            Não foge à teoria da precedência de um contrato social, tido como pacto de consentimento, e não pacto de submissão como concebido por Hobbes, que representa a passagem ao estado civil, cujo governo tem por fim a proteção da propriedade. Ressaltamos, ainda, que Locke defendia a supremacia do Poder Legislativo, e legitimava o direito de resistência no caso de atentado à lei estabelecida e à propriedade.


4. Locke e o direito de propriedade.

            Ao depararmos com trechos isolados do capítulo do Segundo Tratado que trata da propriedade, vislumbramos teorias essencialmente capitalistas coexistindo com idéias aparentemente comunistas.

            Desconsiderando algumas passagens tomasianas, pode-se dizer que Locke foi o precursor da teoria do valor do trabalho, ou seja, o valor de um produto depende do trabalho empregado nele, posteriormente melhor desenvolvida por Marx e Ricardo.

            Enquanto os escolásticos defendiam a teoria do valor do trabalho contrapondo-se aos judeus, Ricardo a defendia em oposição aos grandes proprietários rurais, e Marx em combate aos capitalistas, Locke a priori a defendia sem visar classe alguma, embora ousamos dizer que, ironicamente, a utilizava para defender os interesses da burguesia ascendente, em detrimento da monarquia.

            Partindo da premissa de que o homem é seu próprio proprietário, aquilo que ele trabalhou é também sua propriedade, oponível a todos os demais. Em suas próprias palavras:

            Sempre que ele tira um objeto do estado em que a natureza o colocou e deixou, mistura nisso o seu trabalho e a isso acrescenta algo que lhe pertence, por isso o tornando sua propriedade. Ao remover este objeto do estado comum em que a natureza o colocou, através do seu trabalho adiciona-lhe algo que excluiu o direito comum dos outros homens. Sendo este trabalho uma propriedade inquestionável do trabalhador, nenhum homem, exceto ele, pode ter o direito ao que o trabalho lhe acrescentou, pelo menos quando o que resta é suficiente aos outros, em quantidade e qualidade. [28]

            Mais especificamente, para Locke o fundamento da propriedade está no próprio homem, em sua capacidade de transformar em seu benefício o mundo externo, com sua energia pessoal. [29]

            O cerne do conceito de propriedade em Locke é que ela é um direito natural, ou seja, já existia no estado de natureza. Com essa concepção, refuta, apesar de sem mencionar diretamente, duas outras teorias: a doutrina de Hobbes e a de Pufendorf.

            Ambos negam que a propriedade é um direito natural. Para Hobbes, só a vida é direito natural, e o direito de propriedade com eficácia erga omnes só nasceu com o direito positivo.

            Pufendorf defendia o direito de propriedade como um direito natural convencional, categoria entre o direito natural e o direito positivo, que consistia num produto da sociedade natural fundado na vontade. "O momento da emergência da propriedade estava entre o estado natural e o estado civil: era o momento do direito convencional, nascido de acordos recíprocos". [30]

            Nem a teoria de Hobbes, nem a de Pufendorf, condizia com os interesses defendidos por Locke. Na defesa da alta burguesia, Locke protegia quem já tinha propriedade ou meios de adquiri-la, lutando contra a espoliação arbitrária pelo soberano, a qual era justificada por Hobbes.

            Pufendorf, por sua vez, ao exigir a concordância de todos os que participaram do contrato social, acaba inevitavelmente levando à existência do Estado. No estado de natureza, defendido por Locke, os "outros" são todos os homens, o que torna a concordância impossível. Se a origem e o fundamento da propriedade estão no estado de natureza, a vontade do soberano e de todos os demais tem valor meramente declaratório de um direito já constituído.

            A doutrina de Locke era, também, incompatível com a doutrina da ocupação, pois esta última pressupunha uma res nullius, e a primeira defendia que as coisas no estado de natureza eram res communes, ou seja, "a situação original do estado de natureza se caracterizava não mais pela ausência da propriedade, mas pela sua universalidade". [31]

            Para Locke, a aquisição da propriedade individual não se dava mediante apropriação, mas por individuação:

            Deus, que deu o mundo aos homens em comum, deu-lhes também a razão, para que se servissem dele para o maior benefício de sua vida e de suas conveniências. A terra e tudo o que ela contém foi dada aos homens para o sustento e o conforto de sua existência. (...) O trabalho de removê-los daquele estado comum em que estavam fixou meu direito de propriedade sobre eles. [32]

            Locke também refutava a teoria da ocupação porque esta atendia a uma sociedade agrícola e estática, condizente com a aristocracia rural que tinha por base econômica a terra, em detrimento da burguesia em expansão.

            Ao dizer que o homem só podia ter a terra que pudesse cultivar, mas que poderia ter quanto ouro e prata quisesse, beneficiava os interesses burgueses, prejudicando a aristocracia rural.

            Esses interesses defendidos por Locke ficam ainda mais claros nas diversas passagens em que ele mostra preocupação com a expansão colonial inglesa.

            Ao dizer que o direito de propriedade está limitado à capacidade de consumo do proprietário, Locke parece estar munido de ideais socializantes, o que está longe da doutrina em si. Tudo fica esclarecido quando ele defende que a terra e os bens perecíveis sujeitam-se ao limite, mas metais, dinheiro, ou qualquer outro bem que não se deteriore podem ser indiscriminadamente acumulados, mais uma vez advogando em proveito da burguesia em ascensão.

            Na filosofia política de Locke a propriedade aparece como destaque, sendo inclusive a principal razão para a instituição do governo civil, o fim principal da união dos homens em comunidades. Era tão grande a importância conferida à propriedade que chegava ao ponto de apenas considerar cidadão o proprietário. Ao escrever o Ensaio sobre a tolerância, Locke chega a dizer que "o magistrado não deve fazer nada a não ser com o objetivo de assegurar a paz civil e a propriedade de seus súditos". [33]

            Nem mesmo ele considerava o direito de propriedade como o único direito natural, embora é evidente que o via em um patamar superior aos demais. Russell cita a surpreendente afirmação de que, embora os comandantes militares tenham poder de vida e morte sobre seus soldados, não têm o poder para lhes tirar dinheiro. [34] Por várias vezes percebemos, ainda, que Locke utiliza o termo propriedade para designar também a vida e a liberdade.

            A propriedade para Locke tinha feições absolutas. Nem mesmo a taxação ele admitia sem o consentimento dos contribuintes. No Segundo Tratado, Locke afirma que nenhum governo pode tirar toda ou parte da propriedade de seus súditos sem o seu consentimento. [35] Justifica dizendo que "se qualquer um reivindicar o poder de estabelecer impostos e impô-los ao povo por sua própria autoridade e sem tal consentimento do povo, está assim invadindo a lei fundamental da propriedade e subvertendo a finalidade do governo". [36]

            Aparentemente, Locke estabelece limites ao direito de propriedade. Um primeiro limite consiste em uma obrigação moral em relação aos demais, pela qual se deve deixar aos outros o suficiente para sobreviverem. Mas, de fato, isso não implica em limite algum, pois inúmeras vezes ele se refere às vastas extensões territoriais e alega que há terra o suficiente para todos.

            Outro suposto limite diz respeito a não se apropriar daquilo que não se pode gozar. Mais uma vez a advertência torna-se inócua, pois, de acordo com sua teoria, com o surgimento da moeda isso não consiste mais em problema algum, pois esta não é perecível e pode ser acumulada e guardada indefinidamente.

            Uma terceira limitação se refere ao papel do trabalho na aquisição de propriedade. À primeira vista, pode parecer que a legitimidade da apreensão se adstringe àquilo que o trabalho do seu corpo pode executar. Todavia, Locke admitia a alienação do trabalho, como ficou claro na passagem descrita a seguir:

            Sobre as terras comuns que assim permanecem por convenção, vemos que o fato gerador do direito de propriedade, sem o qual essas terras não servem para nada, é o ato de tomar uma parte qualquer dos bens e retirá-la do estado em que a natureza a deixou. E este ato de tomar esta ou aquela parte não depende do consentimento expresso de todos. Assim, a grama que meu cavalo pastou, a relva que meu criado cortou, e o ouro que eu extraí em qualquer lugar onde eu tinha direito a eles em comum com outros, tornaram-se minha propriedade sem a cessão ou o consentimento de ninguém. O trabalho de removê-los daquele estado comum fixou meu direito de propriedade sobre eles. [37] (grifo nosso)

            No que tange ao direito de herança, Locke reconhece o direito dos filhos, porém de forma subsidiária à livre disposição do proprietário, como registrado no Primeiro Tratado quando diz que "esta coisa, a possessão, é transmitida naturalmente aos seus filhos, se ele não determinou diferentemente, com uma concessão positiva". [38]

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Sobre a autora
Alessandra de Abreu Minadakis Barbosa

procuradora f, professora em cursos de graduação e pós-graduação em Direito

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BARBOSA, Alessandra Abreu Minadakis. A propriedade em Locke:: o conceito liberal de propriedade. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 869, 19 nov. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/7601. Acesso em: 23 dez. 2024.

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