5. HIPÓTESES LEGAIS QUE PERMITAM A APLICAÇÃO DO PROGRAMA JUSTIÇA TERAPÊUTICA
5.1. Princípio da reserva legal
O Código Penal brasileiro, por meio do artigo 1º, enuncia o princípio considerado por muitos como basilar do Direito, o da reserva legal. Trata-se de uma garantia fundamental do indivíduo descrita na Constituição Federal do Brasil, no qual “não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal”.
Tal norma da Carta Magna leva-nos a entender que serão puníveis apenas condutas posteriores às tipificadas como crime e a ela cominada alguma pena. Sem que uma lei anterior tipifique uma conduta como ilícita, esta será impunível, ainda que a mesma seja imoral, antissocial ou danosa.
Segundo DELMANTO:
Trata-se de um princípio indispensável a segurança jurídica e à garantia da liberdade de todas as pessoas, impedindo que alguém seja punido por um comportamento que não era considerado delituoso à época de sua prática (DELMANTO, 2002, p. 4)
Mencionado princípio é visto como sendo uma dupla garantia: de ordem criminal e penal, pois, seu significado abrange não só a conduta, mas também a pena aplicada, vez que, somente poderá ser imposta ao criminoso pena que esteja prevista anteriormente na lei como aplicável ao autor do ilícito, resguardando assim a segurança jurídica dos cidadãos brasileiros.
Neste sentido é que concluímos que a Justiça Terapêutica para ser aplicada aos dependentes químicos, autores de delitos, é imprescindível a existência de norma permissiva no ordenamento jurídico penal.
Desta forma, serão expostas as previsões legais, explícitas e implícitas, que permitem a aplicação deste instituto.
5.2. Normas permissivas explícitas
O ordenamento jurídico penal brasileiro apresenta normas que autorizam a imposição do programa Justiça Terapêutica como tratamento ao dependente químico que comete delitos.
Tal autorização está presente em duas lei específicas: o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei. nº 8.069/1990) e a Lei de Tóxicos (Lei nº 11.343/2006).
O Estatuto da Criança e do Adolescente serviu de base e incentivo a criação do programa Justiça Terapêutica no país, uma vez que, de forma direta, possibilita submeter o cidadão dependente químico, que comete delitos, a um tratamento de saúde.
Especificamente por meio do artigo 101, inciso VI, descreve como medida especial de proteção à criança e o adolescente a inclusão em programa oficial ou comunitário de auxílio, orientação e tratamento a alcoólatras e toxicômanos.
Ricardo de Oliveira Silva cita o Estatuto da Criança e do Adolescente como sendo “o diploma legal pátrio que possui a melhor previsão sobre a matéria, já que estabelece expressamente a possibilidade de a criança e o adolescente serem submetidos a tratamento contra as drogas”31.
Desta forma, não há barreiras que impeçam a concretização do programa face ao menor infrator, visto que sua aplicabilidade é autorizada pela legislação vigente.
Neste sentido, o Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, quando constata a presença da droga como influenciadora do ato infracional, determina a medida protetiva de tratamento de dependência química ao menor.
Jurisprudência a respeito afirma:
ECA. ATO INFRACIONAL. ROUBO. ADEQUAÇÃO DA MEDIDA SOCIOEDUCATIVA DE INTERNAÇÃO. 1. Sendo incontroversas a autoria e também a materialidade do ato infracional, é imperiosa a procedência da representação, com a imposição de medida socieducativa. 2. Tratando-se de ato infracional tipificado como roubo, com emprego de arma branca, a medida de internação se mostra adequada, sendo que o infrator apresenta antecedentes e é uma pessoa profundamente desajustada, que faz uso de drogas desde tenra idade, necessitando de tratamento, proteção e orientação. 3. O caráter expiatório da medida de internação tem também marcante alcance terapêutico e será útil à formação do adolescente, pois mostrará a ele, de forma indelével, a reprovabilidade social que pesa sobre a conduta desonesta que desenvolveu, assegurando-lhe o apoio psicológico e pedagógico de que necessita, além de garantir a eficácia do tratamento para drogadição. Recurso desprovido. (SEGREDO DE JUSTIÇA)
(Apelação Cível Nº 70044928760, Sétima Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Sérgio Fernando de Vasconcellos Chaves, Julgado em 19/10/2011).
Neste diapasão insere-se a Lei de Tóxicos, ou seja, uma vez constatado o envolvimento dos delinquentes com drogas, é apresentado como uma das penalidades, a medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo.
Conforme reza o artigo 28 da referida lei:
Quem adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, para consumo pessoal, drogas sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar será submetido às seguintes penas:
[...]
III – medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo.
[...]32
É importante destacar que a Lei nº 11.343/2006 não descriminalizou a conduta de porte de drogas, tão somente amenizou a punição, não sendo aplicada mais ao crime a pena de reclusão.
A respeito ainda do artigo 28, Ricardo Rodrigues Gama, declara que na verdade:
(...) todas as penas citadas são medidas educativas, com as funções pedagógicas e de ressocialização bem evidenciadas, sendo dirigidas ao usuário e ao dependente de drogas.
No caso da pena de medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo, a funções de educar sobre os males decorrentes do uso das drogas e a instrução para se vencer as adversidades da vida.( GAMA, 2009, p. 47).
Vistas as previsões legais que expressamente permitem a aplicação da Justiça Terapêutica, há também aquelas que autorizam de forma implícita a aplicação do instituto em tela.
5.3. Normas permissivas implícitas
5.3.1. Previsões legais na Lei nº 9.099/1995 (Juizado Especial Criminal)
5.3.1.1. Transação Penal
Nas palavras de Alexandre de Moraes:
A transação penal é um instrumento de política criminal de que dispõe o ministério público para, entendendo conveniente ou oportuna a resolução rápida do litígio penal, propor ao autor da infração de menor potencial ofensivo a aplicação sem denúncia e instauração de processo, de pena não privativa de liberdade (MORAES, 2007, p. 257).
Presente no âmbito dos Juizados Especiais Criminais, Lei nº 9.099/1995, a transação penal consiste em um acordo entre o promotor de justiça e o autor do fato. Nos termos da lei, pode ser conduzida também pelo juiz ou pelo conciliador.
Trata-se de um instrumento decorrente do princípio da oportunidade da propositura da ação penal, em que o Ministério Público, propõe ao autor da infração de menor potencial ofensivo a aplicação de penas restritivas de direito, evitando, desta forma, a imposição de uma pena privativa de liberdade.
O delinquente para fazer jus à transação penal deverá preencher os requisitos previstos no artigo 76 da Lei nº 9.099/1995, ou seja, não poderá ter sido condenado anteriormente a pena privativa de liberdade por sentença irrecorrível, bem como não ter sido beneficiado, no período de 5 (cinco) anos, com o referido benefício. Além disso, os antecedentes criminais, a conduta, a personalidade do agente, os motivos e as circunstâncias do crime devem demonstrar ser suficiente a adoção da medida.
Uma vez proposto pelo Representante do Ministério Público e aceito pelo infrator, cabe ao magistrado homologar o acordo e aplicá-lo, e, sendo estas devidamente cumpridas, não será instaurado o processo, sendo, tão somente, registrado a concessão do benefício, inexistindo assim quaisquer antecedentes criminais.
Ricardo de Oliveira Silva ensina que:
A imposição dessa sanção não constará de certidão de antecedentes criminais do agente, pois, acolhendo a proposta do Ministério Público aceita pelo autor da infração, o Juiz aplicará a pena restritiva de direitos ou multa, que não importará em reincidência, sendo registrada apenas para impedir novamente o mesmo benefício no prazo de 5 (cinco) anos.33
A pena de limitação de fim de semana é a que se mostra mais vantajosa na aplicação do Programa Justiça Terapêutica, uma vez que o delinquente dependente químico não será privado de sua liberdade e ainda será submetido a tratamento médico. Deste modo a pena alcança sua finalidade, a reinserção social do delinquente.
Neste sentido Ricardo de Oliveira Silva manifesta-se dizendo que “dentre as penas restritivas de direitos, a que melhor se adequa é a limitação de fim de semana, pois permite a imposição de tratamento sob a forma de cursos, palestras e atividades específicas” 34.
5.3.1.2. Suspensão Condicional do Processo
O instituto da suspensão condicional do processo, denominado sursis processual, é também aplicado na esfera do Juizado Especial Criminal e consistente na suspensão dos autos, pelo período de 2 (dois) a 4 (quatro) anos.
O Ministério Público ao oferecer a denúncia poderá propor o benefício, se o infrator enquadrar-se nos requisitos previstos no artigo 89 da Lei nº 9.099/1995.
Tais requisitos autorizadores têm aplicação geral, alcançando todo o sistema normativo penal e consistem em ter a pena mínima cominada no tipo penal, de qualquer legislação criminal, igual ou inferior a 1 (um) ano, não estar o acusado respondendo a outro processo-crime, muito menos já ter sido condenado e não ser aplicável a suspensão condicional da pena (art. 77. do Código Penal).
Necessário se faz compreender que o instituto em tela se diferencia do sursis da pena, uma vez que aquele, aceita a proposta e cumprida as condições impostas, não ocorre o prosseguindo dos autos, enquanto que no segundo, é proferida a sentença condenatória, ocorrendo a possibilidade de suspender o cumprindo da pena.
O Programa Justiça Terapêutica é cabível nesta modalidade no momento em que for autorizado pelo legislador, aplicar outras condições ao infrator (§2º, artigo 89).
5.3.2. Previsões legais do Código Penal
5.3.2.1. Limitação de fim de semana
Conforme anteriormente citado, a pena de limitação de fim de semana é uma das modalidades de penas restritivas de direito presentes na legislação penal brasileira. Disposta no artigo 48 do Código Penal, a limitação de fim de semana consiste na obrigação de permanecer aos sábados e domingos por 5 (cinco) horas diárias, em casa de albergado ou outro estabelecimento adequado.
Faz-se mister salientar que a aplicação desta pena só poderá ocorrer caso o sentenciado enquadre-se nos requisitos mínimos elencados no artigo 44 do Código Penal, quais sejam: ser primário, condenado a pena privativa de liberdade não superior a 4 (quatro) anos e autor de crime praticado sem violência ou grave ameaça à pessoa ou ainda qualquer crime na modalidade culposa. Além disso, a culpabilidade, os antecedentes, a conduta social e a personalidade do condenado devem indicar que a aplicação da pena restritiva de direito é viável.
Augusto Martinez Perez citado na obra de Julio Fabbrini Mirabete elenca as vantagens obtidas quando da aplicação deste tipo de pena:
A permanência do condenado junto da família, ocorrendo seu afastamento apenas nos dias dedicados ao repouso semanal; a possibilidade de reflexão sobre o ato cometido, no isolamento a que é mantido o condenado; a permanência do apenado em seu trabalho, evitando, assim, dificuldades materiais para a família, decorrentes da ausência do chefe; ausência de malefícios advindos do contato do apenado com condenados mais perigosos, o que fatalmente ocorreria, na hipótese de execução da pena de forma contínua em isolamento celular; o abrandamento da pena acessória de ‘rejeição social’ que normalmente marca o condenado recolhido a um estabelecimento penitenciário (MIRABETE, 2011, p. 266).
Segundo Ricardo de Oliveira Silva “o tratamento compulsório, nessa hipótese de limitação de fim de semana, se dará sob a forma de cursos específicos e palestras sobre o uso e consumo de drogas e seus malefícios, que o agente deverá frequentar obrigatoriamente”35.
O mais importante na aplicação desta modalidade de pena em relação à Justiça Terapêutica é a possibilidade de serem ministradas palestras ou atribuídas atividades educativas ao condenado, tornando esta modalidade de pena uma medida eficaz na recuperação do dependente químico autor de delitos.
5.3.2.2. Suspensão Condicional da Pena
Outra modalidade prevista no Código Penal que permite a aplicação do programa Justiça Terapêutica é suspensão condicional da pena, também conhecida como sursis.
Consiste basicamente no fato do sentenciado para ser beneficiado com o sursis, ou seja, para que sua pena fique suspensa pelo prazo de 2 (dois) a 4 (quatro) anos, deverá preencher os requisitos dispostos no art. 77. do Código Penal. Assim, a pena privativa de liberdade submetida ao condenado não poderá ser superior a 2 (dois) anos, bem como este deverá ser primário.
Além disto, a culpabilidade, os antecedentes, a conduta social a personalidade do agente, bem como os motivos e as circunstâncias do crime, deverão indicar ser a concessão da suspensão aplicável ao caso concreto e, por fim, deverá ser incabível a substituição da pena privativa de liberdade, descrita do art. 44. do Código Penal.
O mesmo artigo, em seu § 2º, autoriza a suspensão da pena não superior a 4 (quatro) anos, pelo prazo de 4 (quatro) a 6 (seis) anos, ao sentenciado que possua idade acima de 70 (setenta) anos ou razões de saúde que justifiquem a suspensão.
O rol de condições presentes no artigo 78 não é taxativo, assim, a legislação penal autoriza ao juiz a aplicação de quaisquer outras condições diferentes das elencadas para o cumprimento do sursis, devendo apenas ser observado o fato e a situação pessoal do condenado (art. 79. do Código Penal).
O Código de Processo Penal, em seu art. 698, § 2º, IV autoriza que seja estipulado como condição a cumprir, quando da suspensão condicional da pena, a submissão a tratamento de desintoxicação.36
É aí que nos deparamos com a possibilidade da aplicação da Justiça Terapêutica, pois, constatado a dependência química do acusado, poderá o Juiz impor a suspensão da pena ao condenado, com o objetivo de tratar sua enfermidade.
Ricardo de Oliveira Silva, a respeito, afirma: “Pois bem. Se o condenado praticou o crime envolvido com drogas, é de todo recomendável que a condição judicial a ser estabelecida deva ser a obrigatoriedade de o agente se submeter a tratamento, sujeito a fiscalização judicial.”37
5.3.2.3. Livramento Condicional
O instituto do livramento condicional consiste na antecipação provisória da liberdade do condenado, devendo este satisfazer os requisitos dispostos na legislação penal.
Segundo o renomado doutrinador Mirabete, tal instituto destina a “colocar de novo no convívio social o criminosos que já apresenta índice suficiente de regeneração, permitindo-se que complete o tempo da pena em liberdade, embora submetido a certas condições” (MIRABETE, 2011, p. 322). Declara ainda ser “O livramento condicional, portanto, a concessão, pelo jurisdicional, da liberdade antecipada ao condenado, mediante a existência de pressupostos, e condicionada a determinadas exigências durante o restante da pena que deveria cumprir preso” (MIRABETE, 2011, p. 322).
Noutro sentido, Luiz Regis Prado define o livramento condicional em:
Não se tratar de libertação antecipada, mas de um estágio do sistema penitenciário, que importa na progressiva adaptação do condenando a uma existência dentro do Direito e termina por esse momento de passagem entre a prisão e a liberdade (PRADO, 2010, p. 609).
O instituto em tela é aplicado ao sentenciado que está inserido no sistema penitenciário, por isso, em nosso entendimento, é o instituto mais importante na legislação penal para a aplicação do programa Justiça Terapêutica, uma vez que permite submeter os condenados que apresentam maior periculosidade ao tratamento de saúde.
Há requisitos para o sentenciado ser beneficiado com o livramento condicional. Ele deverá ter sido condenado a uma pena igual ou superior a 2 (dois) anos e preencher os requisitos previstos no artigo 83 do Código Penal, além de apresentar bom comportamento carcerário, durante a execução da pena, bom desempenho no trabalho que lhe foi atribuído e aptidão para prover a própria subsistência através de trabalho honesto.
Deverá também, se possível, reparar o dano causado pela infração que cometeu.
Preenchendo os requisitos para a concessão do benefício, o Juiz especificará as condições a serem cumpridas pelo sentenciado (art. 85, do Código Penal).
Nota-se que há liberdade por parte do aplicador das condições, fixá-las da forma que julgar pertinentes ao caso do concreto, podendo inclusive, decidir pela aplicação da Justiça Terapêutica, impondo tratamento de dependência química ao condenado que mostra-se influenciável por drogas e/ou outras substâncias análogas.