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Aspectos jurídicos da VoIP.

As dificuldades para sua regulamentação

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03/12/2005 às 00:00
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6. Da definição da telefonia de voz sobre IP dentre as modalidades de serviços de telecomunicações

Nos termos do art. 69 da Lei 9.472/97, as modalidades de serviços de telecomunicações são definidas pela Anatel em função de sua finalidade, âmbito de prestação, forma, meio de transmissão, tecnologia empregada e outros atributos. Discute-se se a exploração da prestação de serviços VoIP pode ser realizada através de licenças e outorgas previstas para modalidades de serviços de telecomunicações já regulamentadas ou se, ao contrário, a Anatel deve tratá-la como uma nova modalidade, com regulamentação inteiramente nova e específica.

Acreditamos que, pela importância, disseminação e caráter estratégico que a VoIP já tem e vai passar a ter ainda mais nos próximos anos, talvez não escape de uma regulamentação mais estrita, especialmente criada tendo em vista suas características técnicas e importância sócio-econômica. O desenvolvimento tecnológico do setor telecomunicações implica em novos condicionamentos impostos por lei e pela regulamentação da agência reguladora. Nesse sentido, certamente a VoIP será tratada em breve como nova modalidade de serviço de telecomunicações, objeto de licença distinta, com clara determinação dos direitos e deveres da empresa exploradora e dos direitos dos usuários, além de ser objeto de uma estrutura tarifária também nova e distinta.

Em artigo publicado no site do IBDI [16], as advogadas Marcela W. Ejnisman e Fernanda B. Casella França apontam que a Anatel apenas está indicando de maneira informal, que os interessados em explorar serviços VoIP devem requerer a mesma licença conferida para a prestação do Serviço de Comunicação Multimídia (SCM) [17]. Pensamos que tal posição do órgão regulador deve ser encarada como uma solução paliativa e temporária, até que se possa fazer um estudo mais completo das peculiaridades técnicas da VoIP e de sua participação no mercado de telefonia. De qualquer maneira, o que não pode é a exploração de serviços de telecomunicação, sob qualquer nova modalidade tecnológica ou forma de transmissão dos sinais, deixar de estar sujeita à licença de funcionamento prévia e à fiscalização permanente (nos termos de uma regulamentação própria ou submetida aos condicionamentos gerais do setor).

No exercício do seu poder regulatório, a Anatel não poderá escapar de definir uma questão que tem a ver com política de efeitos sociais, mais especificamente se a telefonia VoIP deve ser classificada como serviço de interesse coletivo ou serviço de interesse restrito. Como se sabe, de acordo com a abrangência dos interesses que atendem, os serviços de telecomunicações podem ser classificados em serviços de interesse coletivo e serviços de interesse restrito (art. 62 da Lei 9.472/97). Dependendo da classificação que se adote, os deveres e obrigações das empresas prestadoras de telefonia VoIP serão mais ou menos extensos. Isso porque os serviços de interesse coletivo, considerados essenciais, são prestados sob o regime jurídico público (na forma de concessão ou permissão), que sofre condicionamentos bem mais severos do que aqueles reservados aos serviços prestados sob o regime jurídico privado (na forma de autorização), a exemplo das exigências de obrigações de universalização e de continuidade para a prestadora (arts. 63, par. únic., e 64) [18]. Por exemplo, as empresas que exploram o serviço telefônico fixo comutado (STFC) sofrem uma estrita regulação da Anatel sobre suas atividades, com exigências de garantia de acesso à população, deveres de expansão da rede de telecomunicações e serviços, dentre outras, por ser considerado serviço de interesse público. Os condicionamentos regulatórios são muito maiores em se tratando de serviço considerado de interesse público. As modalidades de interesse público, por serem essenciais e sujeitas a deveres de universalização e continuidade [19], não são deixadas à exploração sob o regime jurídico privado (art. 65, par. 1º.), onde os níveis de exigência são menores. As prestadoras dos serviços de telecomunicações sob o regime privado (autorizatárias) podem prover acesso somente a mercados de maior interesse econômico, sem as mesmas obrigações contratuais que as concessionárias (do regime público).

É preciso que a Anatel faça uma avaliação criteriosa antes de se decidir pelo enquadramento dos serviços VoIP em um dos regimes jurídicos. Qualquer mudança menos cuidadosa pode trazer impacto suficiente para quebrar o equilíbrio econômico-financeiro do setor de telecomunicações. Se é certo que a exigência de licenças em valores mais elevados e obrigações sociais pode dificultar ou impedir o desenvolvimento de pequenos empreendedores que começam a explorar a nova tecnologia VoIP, também não é menos certo que um nível de exigências exageradamente baixo para estas pode inviabilizar a atividade econômica das prestadoras do serviço de telefonia fixa comutado (que é prestado sob o regime jurídico público). Estas últimas fizeram altos investimentos em infra-estrutura, com expectativa de retorno de longo prazo. À Anatel caberá escolher um nível de exigências regulatórias para a telefonia VoIP que não desestimule nem um nem outro grupo de empresas. O fundamental é a garantia de um nível razoável de segurança jurídica para o setor das telecomunicações.


Conclusões:

1- As empresas que exploram o serviço telefônico fixo comutado, em vista do aparecimento e das facilidades e conveniências da telefonia Internet, não só para o usuário como para o próprio empresário, tenderão a oferecer também (ainda que sob a forma de outras pessoas jurídicas) serviços VoIP, caso a Anatel não defina ou demore a definir um novo esqueleto regulatório para esta última modalidade de serviço de telecomunicações.

2- Os serviços VoIP, pelo menos a modalidade que permite fazer chamadas entre aparelhos telefônicos, devem ser considerados serviços de telecomunicações, para fins legais.

3- Enquanto não for editada uma nova regulamentação específica para a VoIP, as empresas que pretendam explorar esse serviço deverão obter alguma forma de concessão, permissão ou autorização previstas para as outras modalidades de serviços de telecomunicações, ficando com submissão aos regulamentos e normas gerais das telecomunicações e sob a fiscalização da Anatel.

4- O poder regulamentar (ou os regulamentos já existentes sobre as modalidades de serviços de telecomunicação) da Anatel não deve alcançar a atividade dos fabricantes de softwares para soluções VoIP, que não são propriamente prestadores de serviços de telecomunicações.

5- Na regulamentação sobre a telefonia VoIP, a Anatel terá que definir se enquadra sua prestação dentro do regime público ou privado, levando em conta qual público pretende atingir com essa modalidade de telefonia, em termos de promoção da qualidade e universalização dos serviços.

6- Uma avaliação mal feita pela Anatel sobre a natureza do serviço VoIP e as obrigações decorrentes dos prestadores pode resultar em benefícios para um segmento específico do setor de serviços de telecomunicações, provocando desequilíbrio entre os competidores. O modelo de telecomunicações em vigor foi estabelecido com o objetivo de promover a universalização, a qualidade do serviço e a justa competição entre os prestadores. A evolução regulatória não pode se desprender desses valores iniciais, ligados à defesa da livre concorrência e aos princípios da ordem econômica (esculpidos na Constituição) para o setor de telecomunicações. Deve ser planejada com base em análises de sustentabilidade, do espectro de usuários a ser atingido e da obediência a políticas de interesse público, o que contribuirá positivamente para a estabilidade do setor de telecomunicações e a manutenção de conquistas sociais (em especial a da universalização dos serviços).


Notas

01 É o processo conhecido como "packet switching". O protocolo padrão de comunicação na Intenet – o TCP/IP – que permite que os milhões de computadores conectados possam interagir sob uma única linguagem, transforma a rede numa "packet switching network" (que, em português, poderia ser traduzido para rede de troca de pacotes). O protocolo TCP/IP, de fato, tem como principal característica a circunstância de possibilitar que as informações enviadas pela rede sejam decompostas em "pacotes" de informação, que trafegam por um indeterminado número de intermediários até chegar ao seu destinatário, onde são reagrupados. Os roteadores, que são os mecanismos intermediários localizados em diferentes pontos da rede, ao receberem os pacotes de dados, reencaminham a informação ao destinatário pela rota mais conveniente naquele específico momento. Além de uma mensagem enviada mais de uma vez não seguir a rota original, os pedaços ou "pacotes" de informação em que se decompõe durante o trajeto também podem não seguir uma única rota.

02Internet Protocol, que vem a ser o protocolo padrão na Internet, que possibilita que diferentes máquinas (computadores), de diferentes configurações e estilos, possam se comunicar entre si.

03 Outros preferem chamar essa terceira modalidade de telefonia pura, sendo as outras duas modalidades híbridas de telefonia Internet.

04 Um exemplo de software que permite o envio e recepção em tempo real de arquivos de sons, via Internet, é o Netmeeting da Microsoft, programa, aliás, que permite a troca de arquivos de vídeo e a realização de videoconferências. Também nessa modalidade de comunicação computador-computador, podem ser apontadas soluções como o Skype, o Google Talk, o MSN Messenger e os outros programas do gênero e comunicadores instantâneos. A característica desse tipo de comunicação é que os interlocutores precisam estar diante do computador e conectados à internet para que a conversação se estabeleça.

05 Essa segunda modalidade de VoIP conecta um computador a telefones fixos ou móveis, ou seja, enquanto em uma das pontas se usa VoIP, na outra está em ação o serviço telefônico fixo comutado (STFC) ou serviço de telefonia móvel (celular) - a rede de telefonia tradicional. Nesse grupo, enquadram-se serviços como o SkypeOut, o UOL Fone, o Net Fone e o Taho.

A maioria das opções de VoIP funciona como um serviço de telefonia pré-paga via internet. No caso do UOL Fone, por exemplo, o assinante precisa entrar na página, fornecer login e senha, criar uma conta e comprar o número de créditos que julgar mais conveniente. Depois, baixa o programa e faz as ligações para telefones fixos e celulares no Brasil e no exterior.

06 Serviços dessa categoria são fornecidos por empresas como GVT, TMais, Hip Telecom, TVA e Primeira Escolha.

07 O Serviço Telefônico Fixo Comutado (STFC) é o serviço de telecomunicações que, por meio de transmissão de voz e de outros sinais, destina-se à comunicação entre pontos fixos determinados, utilizando processos de telefonia. São modalidades do Serviço Telefônico Fixo Comutado destinado ao uso do público em geral o serviço local, o serviço de longa distância nacional e o serviço de longa distância internacional.

08 No dia 4 de setembro de 2003, foi publicado no Diário Oficial da União o Decreto Nº 4.829, de 3 de setembro de 2003, que estabelece as normas de funcionamento e atribuições do Comitê Gestor da Internet no Brasil. Entre as principais medidas está a criação do Comitê como pessoa jurídica, capaz de administrar a arrecadação de valores de registro de nomes de domínio, e uma maior democratização na escolha dos representantes. O Decreto Nº 4.829 foi complementado pelas Portarias subseqüentes.

09 A administração do "country code top level domain". br fica a cargo do Governo brasileiro, que delegou a arrecadação das taxas de registro à Fapesp.

10 A Lei 9.472, de 16 de julho de 1997, dispõe sobre a organização dos serviços de telecomunicações, a criação e funcionamento de um órgão regulador e outros aspectos institucionais, nos termos da Emenda Constitucional n. 8, de 1995.

11 Os serviços de telecomunicações prestados no serviço público

12 Interconexão é a ligação entre redes de telecomunicações funcionalmente compatíveis, de modo que os usuários de serviços de uma das redes possam comunicar-se com usuários de serviços de outra ou acessar serviços nela disponíveis.

13 Alguns provedores oferecem serviço de acesso à Internet por meio de comunicação em radiofreqüência. É o caso do provedor pernambucano Hotlink, que presta esse tipo de acesso usando uma tecnologia israelense.

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14 No original, em inglês: "Internet service providers over whose networks the information passes may not even be aware that particular customers are using IP telephony software, because IP packets carrying voice communications are indistinguishable from other types of packets… [in which case the] Internet service provider does not appear to be ‘provid[ing]’ telecommunications to its subscribers".

15 O Poder Público arrecada taxas pela concessão, permissão ou autorização para exploração de serviços de telecomunicações, bem como pela fiscalização de instalação e de funcionamento desses serviços.

16 O título do artigo é "Telefonia na Internet – A voz sobre IP e os novos desafios regulatórios", publicado no site do IBDI – www.ibdi.org.br.

17 Distinguem-se do Serviço de Comunicação Multimídia, o Serviço Telefônico Fixo Comutado destinado ao uso do público em geral (STFC) e os serviços de comunicação eletrônica de massa, tais como o Serviço de Radiodifusão, o Serviço de TV a Cabo, o Serviço de Distribuição de Sinais Multiponto Multicanal (MMDS) e o Serviço de Distribuição de Sinais de Televisão e de Áudio por Assinatura via Satélite (DTH).

18 Art. 63. Quanto ao regime jurídico de sua prestação, os serviços de telecomunicações classificam-se em públicos e privados.

Parágrafo único. Serviço de telecomunicações em regime público é o prestado mediante concessão ou permissão, com atribuição a sua prestadora de obrigações de universalização e de continuidade.

Art. 64. Comportarão prestação no regime público as modalidades de serviço de telecomunicações de interesse coletivo, cuja existência, universalização e continuidade a própria União comprometa-se a assegurar.

19 Art. 79. A Agência regulará as obrigações de universalização e de continuidade atribuídas às prestadoras de serviço no regime público.

§ 1° Obrigações de universalização são as que objetivam possibilitar o acesso de qualquer pessoa ou instituição de interesse público a serviço de telecomunicações, independentemente de sua localização e condição sócio-econômica, bem como as destinadas a permitir a utilização das telecomunicações em serviços essenciais de interesse público.

§ 2° Obrigações de continuidade são as que objetivam possibilitar aos usuários dos serviços sua fruição de forma ininterrupta, sem paralisações injustificadas, devendo os serviços estar à disposição dos usuários, em condições adequadas de uso.

Art. 80. As obrigações de universalização serão objeto de metas periódicas, conforme plano específico elaborado pela Agência e aprovado pelo Poder Executivo, que deverá referir-se, entre outros aspectos, à disponibilidade de instalações de uso coletivo ou individual, ao atendimento de deficientes físicos, de instituições de caráter público ou social, bem como de áreas rurais ou de urbanização precária e de regiões remotas.

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Sobre o autor
Demócrito Reinaldo Filho

Juiz de Direito. Doutor em Direito. Ex-Presidente do IBDI - Instituto Brasileiro de Direito da Informática.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

REINALDO FILHO, Demócrito. Aspectos jurídicos da VoIP.: As dificuldades para sua regulamentação. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 883, 3 dez. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/7630. Acesso em: 25 abr. 2024.

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