Capa da publicação O processo de Jesus e as violações jurídicas da época
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Uma análise jurídica do julgamento de Jesus Cristo

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Resumo:

Resumo sobre o julgamento de Jesus Cristo


  • O julgamento de Jesus Cristo é um evento de significativa importância religiosa, histórica e cultural, sendo objeto de análise jurídica para entender as violações de direito material e processual ocorridas.

  • Confrontando o julgamento de Cristo com o direito romano e hebraico da época, identificam-se diversas ilegalidades na sua condução, tanto no Sinédrio quanto no Tribunal Romano, onde foi acusado de sedição e lesa-majestade.

  • A pena de crucificação, chamada crucifagium pelos romanos, foi utilizada como instrumento de poder e eliminação física de um adversário, refletindo o uso do direito e do processo como meios de afirmação de poder e interesses institucionais.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

4. Aspectos do direito romano

Segundo o critério jurídico interno, os historiadores do direito subdividem o estudo do direito romano em quatro períodos. Embora existam nomenclaturas diversas (fase régia; fase republicana; principado; dominato), adota-se aqui a periodização indicada por Bexiga (2016, p. 221): época arcaica (até 130 a.C.), época clássica (até 230 d.C.), época pós-clássica (até 530 d.C.) e época justinianéia (até 565 d.C.). É cediço que o direito romano, como um todo, exerceu influência determinante na formação do direito ocidental, tendo consolidado noções basilares como dolo e culpa (bonus e malus), imputabilidade, coação irresistível, legítima defesa e princípios penais sobre o erro. Tradicionalmente, situa-se o início do direito positivo romano com a Lei das XII Tábuas (449 a.C.), que, ao dessacralizar o direito, contemplou matérias de direito público, penal e processual, entre outras. Previu, ademais, a “lei de talião” e penas severas, como exílio, deportação, e penas capitais por flagelação, cremação, crucificação etc. Nelson Câmara sintetiza:

“Dessa lei, até o final da República o direito foi constituído por obra dos juristas. As lacunas e obscuridades dessa lei fizeram com que aparecesse, em 367 antes de Cristo, o pretor, que em seus éditos deveria indicar a ação cabível a ser intentada e instruída com provas, e julgadas por um árbitro (judex privatus). O édito adquiriu, posteriormente, força de lei, não podendo ser modificado nem pelo pretor que o estabeleceu, nem por seus sucessores. Surgiu, dessa forma, o jus praetorium, que, a pretexto de interpretar a Lei das Doze Tábuas, a ampliou e simplificou, tornando-a menos formalista e obscura. Dos éditos do pretor da cidade (praetor urbanus), competente para apreciar litígios entre cidadãos romanos, surgiu o jus civile; enquanto dos éditos do pretor dos estrangeiros (praetor peregrinus), criado em 242 a.C. e dedicado aos litígios entre estrangeiros e entre estes e os romanos, surgiu um direito novo, de cunho equitativo: o jus gentium.” (CÂMARA, 2014, p. 132)

Desta exposição infere-se que o direito romano distinguia o tratamento conferido a cidadãos romanos e a estrangeiros — aspecto crucial ao caso de Jesus de Nazaré, que não detinha cidadania romana, com implicações evidentes, como se verá adiante.

Entre as características marcantes do direito romano, destacam-se o positivismo, o conservadorismo e o individualismo. A iustitia, entendida como a firme vontade de dar a cada um o que é seu (suum cuique tribuere), figura como princípio basilar em todas as áreas; a aequitas, por sua vez, opera como vetor de correção e de adaptação equitativa do direito. Em sua dimensão positiva, o sistema articula legislação escrita e costumes.

A lei positiva mais importante desse período é, sem dúvida, a já referida Lei das XII Tábuas (449 a.C., lex duodecim tabularum), vigente muito antes da época de Cristo e preservada por séculos. Segundo Cezar Roberto Bitencourt (BITENCOURT, 2002, p. 283), trata-se do primeiro código escrito romano, marco inaugural da codificação.

No direito penal romano, as infrações dividiam-se em públicas e privadas (crimina publica e delicta privata). As primeiras eram consideradas atentatórias à segurança interna ou externa do Estado e reclamavam punição pública; os delitos privados, por sua vez, admitiam reação punitiva pelo próprio ofendido. As sanções mais usuais eram o damnum (pagamento pecuniário), a poena (indenização, p. ex., em casos de lesões) e o suplicium (execução do delinquente), além de exílio e deportação (relegatio e deportatio). O suplicium comportava modalidades variadas, daquelas mais bárbaras às de maior requinte de crueldade: timpanamento, laceração, sufocação (culleus — imersão em saco), cremação (crematio), entrega às chamas (flamis tradi), enforcamento (patibulo adfigatur), devoração por feras (damnatio ad bestias) e a odiosa crucifigium — a crucificação — usualmente reservada a crimina publica, a estrangeiros e a escravos, pena à qual foi submetido o réu Jesus Cristo. Cumpre deter-se um pouco nesta última.

É sabido que a crucificação não foi invenção romana. Praticada pelos persas — inclusive por motivos religiosos, a fim de evitar “contaminação” da terra consagrada a Ahura Mazda pelos cadáveres de criminosos —, foi posteriormente apropriada e aperfeiçoada pelos romanos. A crucificação constituía a mais temível das penas: não era mera execução, mas tortura prolongada e humilhante. Nenhum órgão vital era atingido de pronto, de modo que a agonia pudesse estender-se por horas ou dias. Frequentemente, os crucificados eram deixados à vista pública para servirem de lição e de estandarte de ignomínia. No século I, milhares de escravos, judeus e povos dominados foram crucificados, como forma de “pacificação” das províncias. Os corpos, por vezes, eram devorados por aves de rapina e deixados em decomposição na própria cruz, exalando fétido odor cadavérico (COHN, 1990).

Ao fim do julgamento, três pronunciamentos eram possíveis ao magistrado: a condenação (condemnatio), a absolvição (absolutio) — que, conforme a hipótese, podia importar na punição do acusador caluniador — e o non liquet ou ampliatio, isto é, a decisão de prosseguir com nova instrução probatória, inclusive com a utilização de tortura para obtenção de elementos adicionais.

Os governadores provinciais, a exemplo dos césares em Roma, julgavam no interior de suas residências oficiais — o pretório. A sala específica para a apresentação do réu ao governador ou ao imperador chamava-se secretarium, separada por um véu das demais dependências. Já os julgamentos perante outros magistrados, profissionais ou jurados, realizavam-se publicamente no forum, vocábulo que sobrevive até hoje.

O caráter reservado do julgamento perante o governador não contrariava o princípio de publicidade então prevalecente. Isso porque os governadores detinham o chamado ius gladii (ou ius sanguinis) — o direito de exercer a jurisdição criminal suprema, inclusive com aplicação da pena capital — sob o fundamento de tutela da ordem pública e da integridade do império, prerrogativa que, por óbvio, abria flanco a graves injustiças (COHN, 1990).

Há relatos, todavia, de que, quando desejava dar publicidade a um julgamento, o governador se dirigia ao pátio fronteiro ao palácio, levando consigo o escabelo judicial (sella curulis), cenário que corresponde, segundo as fontes, ao julgamento de Jesus. Tal manobra tinha razão prática: sem algum grau de proclamação pública, a execução da sentença suscitava desconfiança; por outro lado, a proclamação perante o povo funcionava como legitimadora do ato decisório.

Conforme Wedy (2015), o processo penal romano conheceu dois procedimentos principais. O primeiro, a cognitio ordinaria (ou sistema da ordo), muito usado na República, vinculava o juiz à legalidade estrita — não há pena sem lei anterior que a defina — e apresentava traços protoacusatórios: a iniciativa acusatória cabia ao ofendido e o julgador atuava como terceiro imparcial.

Já nas províncias imperiais — como a Palestina — e, sobretudo, após a queda da República, a cognitio ordinaria cedeu paulatinamente lugar à cognitio extra ordinem, “a primeira expressão típica do sistema processual inquisitório” (WEDY, 2015, p. 11). Nesse rito, o juiz gozava de ampla liberdade para definir qualidade e quantidade da pena (arbitrium iudicantis). Detinha, ademais, o ius gladii, isto é, a faculdade de impor a pena capital. Tratava-se de procedimento mais célere (ouviam-se acusação e interrogatório do réu, apreciavam-se provas não vinculantes e, ao final, proferia-se o decretum), e mais elástico quanto às formas, segundo o prudente arbítrio do magistrado. Não exigia acusação formal e podia ser instaurado de ofício. Tanto pela cronologia (a partir de 27 a.C.) quanto pelo locus (províncias imperiais), é seguro afirmar que Pilatos observou a cognitio extra ordinem no julgamento de Jesus.

4.1. Das (i)legalidades do julgamento de Jesus no Tribunal Romano

Após o julgamento de Jesus pelas autoridades do Sinédrio, ele foi conduzido a Pôncio Pilatos. O historiador romano Tácito (c. 55–116 d.C.) registra que um certo Cristo, “no tempo de Tibério, foi condenado à morte pelo procurador Pôncio Pilatos” (RAMOS, 2006, p. 52). Era o dia da parasceve, a preparação para a Páscoa judaica. Nesse dia, tradicionalmente, sacrifícios eram realizados ao cair da tarde para o banquete familiar noturno. Para tomar assento à mesa, exigia-se “pureza ritual”, razão pela qual os judeus evitavam qualquer contato com o que reputavam pagão, o que explica sua recusa em adentrar o pretório de Pilatos ao entregarem Jesus.

Pilatos era o representante do poder imperial na região — detinha o título de praefectus (BEXIGA, 2016, p. 253). Concentrava competências fiscais, administrativas, militares e jurisdicionais. Residindo em Cesareia Marítima, onde se situava o palácio dos governadores, deslocava-se a Jerusalém nas grandes festas, como era uso dos prefeitos romanos, para acompanhar de perto o afluxo de peregrinos e conter eventuais tumultos.

Na época de Jesus, o império dividia-se em províncias senatoriais (mais pacificadas e romanizadas) e imperiais (fronteiriças, turbulentas), caso da Palestina. Aquelas eram administradas pelo Senado; estas, diretamente pelo imperador, por meio de seus mandatários. Nas províncias imperiais, Roma costumava delegar a gestão cotidiana às aristocracias locais leais ao império. Assim, na Galileia, governava Herodes Antipas.

Herodes reinava na Galileia, enquanto Pilatos administrava como prefeito a Judeia — sub-regiões da Palestina.

Quanto ao perfil de Pilatos, a tradição o descreve como figura de notória dureza. O Evangelho de Lucas registra episódio em que ele mandou executar certos judeus, “misturando seu sangue ao dos sacrifícios”. Flávio Josefo narra tanto repressões impiedosas a protestos no pretório quanto uma ocasião em que Pilatos recuou por receio de levante (JOSEFO apud CÂMARA, 2014, p. 32). Depreende-se, pois, um governante cruel, porém impressionável à pressão popular — chave interpretativa para compreender sua conduta diante de um réu que reputava inocente, mas que entrega à crucificação por temor de insurreição em região de recorrentes sublevações. Some-se a isso o sonho de sua esposa — a tradição apócrifa a chama de Cláudia Prócula —, que “sofreu muito por causa de Jesus”; em cultura religiosa e politeísta, tais presságios tinham peso psicológico, sobretudo quando o próprio juiz já inclinava pela inocência do acusado.

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Quanto ao procedimento, a literatura converge: tratou-se de cognitio extra ordinem. Nas províncias não vigorava o rito ordinário (ordo), dadas as exigências de simplicidade e celeridade. O processo extraordinário consistia em ouvir a acusação, interrogar o acusado, avaliar a culpabilidade e proferir a sentença.

“Pelo que podemos saber, ele recorre, pelo contrário, à cognitio extra ordinem, prática usual na Judeia pelos governadores romanos: forma ágil de administrar justiça, sem os passos exigidos nos processos ordinários. Basta ater-se ao essencial: ouvir acusação, interrogar o acusado, avaliar a culpabilidade e editar a sentença. Parece que Pilatos age com grande liberdade, desenvolvendo a cognitio de maneira muito pessoal. Ouve os relatores, dá a palavra ao acusado e, prescindindo de mais provas e pesquisas, centra a questão no que realmente lhe interessa: o possível perigo de agitação ou insurreição que esse homem pode representar.” (PAGOLA apud CÂMARA, 2014, p. 190)

Diferentemente do procedimento ordo — com denúncia formal, qualificação jurídica e fática prévias que cingiam o magistrado à moldura legal —, o rito extra ordinem convertia o juiz em verdadeiro “juiz-ator”: recebia a notícia delituosa como mera descrição do fato e de seu autor, enquadrando-a no tipo que reputasse adequado e qualificando juridicamente como entendesse, a exemplo do que Pilatos fez com as imputações a Jesus. Como anota Bexiga (2016), o processo extra ordinem relativizava o princípio da reserva legal (nullum crimen, nulla poena sine lege praevia) próprio do procedimento ordinário, pois a tipificação ficava, em grande medida, nas mãos do magistrado (pretor, prefeito). Dispensava-se a figura do querelante privado; o governador, detentor do imperium/ius gladii, julgava segundo conveniências de ordem pública e segurança do Estado. Eram características desse sistema: cumulação de acusações de natureza diversa; condução e julgamento por uma única autoridade (magistratus), a quem cabia, em seu arbitrium iudicantis, graduar e escolher a forma da pena.

Estruturalmente, a cognitio extra ordinem compreendia as seguintes fases: postulatio (pedido de autorização para introduzir a causa), nominis delatio (descrição da acusação), quaestio (interrogatório do acusado), nomen recipere (recebimento), altercatio (audição das alegações) e decretum (sentença). Considerando que os evangelistas não perseguem estrita exatidão jurídico-processual — o que se explica pelo propósito religioso —, é plausível propor, com a necessária cautela, o seguinte paralelismo no caso de Jesus: postulatio: Pilatos indaga a natureza da acusação (Jo 18,29); nominis delatio: apresentação da denúncia (Lc 23,2–5); nomen recipere: o prosseguimento indica o recebimento; altercatio: Pilatos interroga Jesus (Mt 27,12–13); decretum: entrega para crucificação (Jo 19,16).

Quanto ao objeto da acusação: o que, afinal, alegaram sacerdotes e anciãos? Todas as fontes biográficas são uníssonas: Jesus foi acusado de declarar-se “rei dos judeus”.

Os evangelhos corroboram que a imputação submetida a Pilatos era essencialmente política: usurpação de título régio — prerrogativa de César —, ofensa à lei romana. Notadamente distinta, portanto, da acusação de blasfêmia ventilada no Sinédrio.

Há, desse modo, uma mutação do libelo: perante Pilatos, abandonam-se as imputações religiosas (blasfêmia, atentado ao templo), porquanto o fórum romano não julgava delitos estritamente confessionais — interesse de Pilatos cingia-se ao eventual crime político subjacente a uma pretensão régia.

Ouvidas as acusações, Pilatos replica: “Tomai-o vós e julgai-o segundo a vossa lei” (Jo 18,31). Trata-se de típico declínio de competência. Pretendeu o prefeito remeter a causa ao Sinédrio, sem êxito, pois àquele faltava o poder de aplicar a pena capital (ius gladii).

No curso da inquirição, os judeus acrescentam que Jesus “subleva o povo, ensinando por toda a Judeia, desde a Galileia até aqui”. Ao saber da origem galileia do réu, Pilatos remete-o a Herodes, então em Jerusalém. A referência territorial oferece ao prefeito um expediente para “livrar-se” do caso e da turba que exigia a crucificação:

“Mas eles insistiam ainda mais: Ele agita o povo, ensinando por toda a Judeia, desde a Galileia, onde começou, até aqui. 6 Pilatos, ouvindo isso, perguntou se o homem era galileu. 7 Quando soube que era da jurisdição de Herodes, enviou-o a Herodes, que, naqueles dias, se achava em Jerusalém.” (Lc 23,5–7)

Tem-se, aqui, um incidente de conflito de competência ratione loci, quando dois juízes se reputam competentes (ou incompetentes) para a mesma causa. A Galileia seria, para Jesus, o forum originis (CÂMARA, 2014, p. 182). Contudo, segundo Lucas (Lc 23,11), Herodes também não vislumbra crime a justificar crucificação e devolve o réu a Pilatos. Resulta o conhecido “jogo de empurra” jurisdicional entre dois julgadores que, sem coragem para declarar a inocência, cedem à pressão popular: um julgamento moldado pela opinião da turba, com renúncia ao poder-dever de julgar — o direito eclipseado pela prevaricação.

Em sentido oposto, Valério Bexiga sustenta que o direito processual penal romano exigia o julgamento “no lugar em que a ação criminosa foi praticada e denunciada” (forum delicti) (BEXIGA, 2016, p. 373). Argumenta, ainda, que a competência para aplicar a pena de morte (ius gladii) era exclusiva e intransferível — entendimento corroborado por Cohn (1990) —, de modo que a remessa a Herodes seria evasiva e ilegal à luz do direito romano. Ademais, como o episódio só se encontra em Lucas, Bexiga (2016) questiona sua historicidade.

Para escapar ao impasse, Pilatos recorre a um expediente jurídico: a indulgentia criminum, perdão soberano mediante o qual o Estado renuncia à pretensão punitiva por razões de oportunidade política — causa de extinção de punibilidade. Sabendo ser Páscoa, festa central do calendário judaico, e havendo, segundo a tradição, o costume de libertar um preso na ocasião (privilegium paschale), oferece à multidão libertar Jesus. O grupo, porém, exige a soltura de Barrabás, preso por sedição. Mateus o chama de “preso famoso”; Marcos o descreve “preso com sediciosos, os quais, num motim, haviam cometido homicídio”; Lucas afirma que estava “preso por causa de sedição na cidade e por homicídio”. Bento XVI (Ratzinger) recorda, com base em Orígenes, que manuscritos até o séc. III registram “Jesus Barrabás”, o que sugere que, assim como Jesus de Nazaré, teria sido detido sob a sombra de messianismo e sedição (RATZINGER apud CÂMARA, 2014, p. 50–51). Daí compreender por que a massa preferiu a indulgência a Barrabás: Jesus de Nazaré encarnava um messianismo de resistência não violenta; Barrabás simbolizava resistência armada. Em todo caso, Pilatos não logra extinguir o processo pela indulgentia criminum.

Neste contexto, Cohn (1990) lembra a existência de lei romana — vigente à época e preservada no Corpus Iuris de Justiniano — que vedava execuções impostas por suborno ou pressão externa:

“Não apenas do ponto de vista legal estava proibido a um governador condenar um homem à pena de morte rendendo-se a pressões dessa natureza; ao fazê-lo, poderia ele mesmo, no futuro, ser julgado por homicídio. Uma lei de 59 a.C. impunha a juízes e governadores a obrigação de devolver dinheiro ou suborno recebidos para julgar iniquamente e estabelecia responsabilidade criminal por qualquer condenação à morte segundo o desejo ou a influência de fatores externos.” (COHN, 1990, p. 156)

Por sua vez, Bexiga (2016) entende que Pilatos julgava duas pessoas, condenando Jesus por lesa-majestade e absolvendo Barrabás, e nega a influência da multidão, ante o regime legal que submetia governadores à pena capital por condenarem inocentes (Lei Júlia de Lesa-Majestade e a lei de 59 a.C., Digesto XLVIII, 11,3), bem como diante do princípio da continuidade da diligência judicial durante o julgamento (correlato, hoje, ao princípio da concentração dos atos). Observa que Mc 15,7 apenas informa que “Havia um chamado Barrabás, preso com outros sediciosos, os quais, em um motim, haviam cometido homicídio”, o que não prova, inequivocamente, sua própria participação homicida. Embora admita que a Mishná permita entrever o privilegium paschale (cf. Pesachim VII, 6: “alguém libertado da prisão [...] pode-se imolar o cordeiro para que coma”) (BEXIGA, 2016, p. 322), o autor inclina-se a crer que, no caso de Barrabás, teria havido indulto (indulgentia) ou extinção do processo antes da condenação (intercessio). De todo modo, nega a historicidade da sujeição de Pilatos ao populacho e sustenta que, à míngua de evidência do privilegium paschale, Jesus e Barrabás foram julgados conjuntamente, resultando condenação do primeiro e absolvição do segundo.

Nessa linha, há juristas que veem nos relatos evangélicos uma construção “conciliadora” de Pilatos — a imagem de um governador benévolo, inclinado a absolver Jesus, mas coagido pela massa a soltar Barrabás. Argumentam que, escritos em meio à perseguição romana aos cristãos, os evangelhos tenderiam a atenuar o protagonismo romano na morte de Jesus, transferindo maior responsabilidade aos líderes judaicos. Para esses autores, o ocorrido teria sido, em essência, um ato de Estado: a execução de um judeu cuja pretensão messiânica soava politicamente perigosa.

O processo de Jesus contemplou a fase da altercatio do rito extraordinário: do diálogo entre Pilatos e o réu infere-se a faculdade de autodefesa. Pode-se dizer, pois, que, sob a perspectiva do contraditório, a defesa pessoal foi, ao menos, oportunizada — ainda que Jesus, por vezes, tenha silenciado.

Logo de início, Pilatos formula a questão central: “És tu o rei dos judeus?”. A própria pergunta revela a acusação, à semelhança do rito contemporâneo, em que o interrogatório principia pela imputação nuclear.

A prova definitiva de que a acusação versava sobre a pretensão régia está na inscrição trilíngue (grego, hebraico e latim) aposta à cruz: “Jesus, o Nazareno, Rei dos Judeus” (Jo 19,19). Segundo Cohn (1990), a lei romana exigia a indicação do delito no patíbulo. O titulus — amiúde com matiz jocoso — era parte do aparato punitivo, precisamente para explicitar a razão da condenação.

Do ponto de vista do direito penal romano, a autoproclamação régia em território sob domínio de Roma configurava, em regra, o crime de lesa-majestade (crimen laesae maiestatis). Sem nomeação imperial, ninguém poderia se declarar rei; fazê-lo equivalia a conspiração e traição. Cohn esclarece:

“O delito de menosprezo ao Império Romano foi definido em lei de 46 a.C., por Júlio César, e reafirmado por Augusto em 8 a.C. Prevê pena de morte, não apenas para traição real a César, mas também para ofensa, rebelião, deserção, usurpação de autoridade e qualquer conduta contra a segurança e a integridade do Estado ou contra a autoridade de César e de seus governadores, em Roma ou nas colônias. A definição era tão ampla e elástica que se tornou hábito agregar a acusação de lesa-majestade a outras imputações, tanto por ser de mais fácil demonstração quanto para franquear o uso de tortura, admissível apenas quando a pena de morte era possível.” (COHN, 1990, p. 245)

  • À pergunta de Pilatos — “És tu o rei dos judeus?” — Jesus responde: “Tu o dizes / Tu dizes que sou rei”. Vejamos o trecho do interrogatório:

“Pilatos tornou a entrar no Pretório, chamou Jesus e perguntou-lhe: És tu o Rei dos Judeus? 34 Respondeu Jesus: Dizes tu isso por ti mesmo, ou foram outros que to disseram de mim? 35 Replicou Pilatos: Porventura sou eu judeu? A tua própria nação e os principais sacerdotes entregaram-te a mim. Que fizeste? 36 Respondeu Jesus: O meu reino não é deste mundo. Se o meu reino fosse deste mundo, os meus servos pelejariam, para que eu não fosse entregue aos judeus; mas agora o meu reino não é daqui. 37 Perguntou-lhe, pois, Pilatos: Logo, tu és rei? Respondeu Jesus: Tu dizes que sou rei.” (Jo 18,33–37)

Discute-se, na literatura, se a resposta de Jesus configurou confissão. Há quem sustente que expressões como “tu o dizes” (ou “tu o disseste”) equivaleriam, no contexto semítico, a uma confirmação tácita — “já está dito; não preciso repeti-lo”. É a leitura de Cohn (1990), para quem, se Jesus pretendesse negar, bastaria dizê-lo. De todo modo, em interrogatório judicial, menos importa a intenção subjetiva do réu do que o sentido que o julgador atribui às palavras. E os elementos indicam que Pilatos interpretou a fala como reivindicação real, de feição politicamente sediciosa.

Marcos designa Jesus como “Rei dos Judeus” seis vezes — quatro pela boca do próprio Pilatos. Em todos os evangelhos, a acusação régia aparece, e o titulus confirma a tese. As zombarias dos presentes (“Ele é o Rei de Israel; desça agora da cruz, e creremos!”, Mt 27,42) reforçam o quadro. Ademais, há fatos que poderiam ter sido coligidos em prova testemunhal: a entrada triunfal em Jerusalém (Mc 11,1–11); o anúncio angélico de um reinado perpétuo (Lc 1,30–33); a afirmação “antes que Abraão fosse, eu sou” (Jo 8,58); e a assunção explícita do messianismo perante o Sinédrio (Mc 14,62). É crucial lembrar que, para muitos judeus, “Messias” supunha sucessão davídica com conotação régio-política.

É verdade que Jesus qualifica seu reino como “não deste mundo” — fórmula de poder teológico-moral, não militar. Autores como Haim Cohn e Frank Powell leem aí uma confissão qualificada: “é verdade que sou rei, mas o meu reino não se confunde com o político; logo, não há ameaça à ordem romana”.

Todavia, na ideologia imperial, a legitimação do poder tinha cunho divino: imperadores eram deuses, e negar sua divindade equivalia a negar os deuses. Assim, afirmar um reino de verdade e de origem divina confrontava, ao mesmo tempo, a teologia política de Roma e seu fundamento de autoridade.

Para Silva (2011), o culto à divindade imperial explica, inclusive, a perseguição aos cristãos entre os séculos I e IV, dada a recusa monoteísta a qualquer outra divindade. Ana Tereza Marques Gonçalves acrescenta:

“O poder político e a legitimidade não se apoiavam somente em impostos e exércitos, mas também em concepções e crenças humanas. Era necessária uma mistificação que alçasse o Imperador acima dos demais. (...) Todos os momentos de fusão entre Imperador e divindades eram aproveitados, por possibilitarem a coalizão da ordem moral com a ordem política.” (GONÇALVES, 2008)

De todas as acusações, apenas à de se declarar rei Jesus responde — “tu o disseste” —, o que reforça a conclusão de que a condenação tenha se dado sob o crimen laesae maiestatis, cuja positivação será retomada nas conclusões.

Essa leitura harmoniza-se com João, que menciona destacamento romano na prisão (Jo 18,3) e deixa transparecer que Pilatos já aguardava o réu pela manhã. Bexiga (2016) esclarece que, quando Roma solicitava extradição de judeu por motivo político, convinha entregá-lo para evitar retaliações, em consonância com o dito do sumo sacerdote: “É preferível que um só homem morra pelo povo do que pereça a nação inteira” (Jo 12,50). Tudo isso sugere interesse romano prévio na prisão e condenação, plausível apenas se o caso fosse percebido como sedição.

Filho (2013) noticia a descoberta, no século XIX, de uma suposta sentença de Pilatos, hoje no Museu de Madri, condenando Jesus por blasfêmia e infâmia à crucificação. Autores como Ehrman (2013) e Bexiga (2016) não reconhecem autenticidade ao documento; ainda assim, por ressoar a compreensão de subversão política como fundamento da crucifixão e por circular desde a Antiguidade, vale transcrever sua parte final:

“[...] julgo, condeno e sentencio à morte Jesus, chamado pela plebe Cristo Nazareno, galileu de nação, homem sedicioso, contrário à Lei Romana e ao Imperador Tibério César. Determino que se lhe dê morte na cruz, sendo pregado com cravos, porque, congregando ricos e pobres, não cessa de promover tumultos por toda a Judeia, dizendo-se Filho de Deus e Rei de Israel, ameaçando a ruína de Jerusalém e do Templo, negando tributo a César e entrando com ramos em triunfo na cidade. Que seja açoitado, vestido de púrpura, coroado de espinhos e leve a própria cruz, para exemplo dos malfeitores, acompanhado de dois ladrões homicidas, saindo pela Porta Antoniana, ao monte do Calvário, onde ficará seu corpo na cruz, como espetáculo, com o título: ‘Jesus Nazareno, Rex Iudaeorum’. Proíbo qualquer tentativa de impedir a justiça mandada executar, sob penas de rebelião contra o Imperador.” (FILHO, 2013)

Analisando a sentença à luz dos pressupostos de existência e validade processual no direito romano, reitera-se: nas províncias, aplicava-se a cognitio extra ordinem. Quanto à legitimidade passiva, o direito romano admitia que qualquer pessoa — inclusive, curiosamente, animais — fosse processada por crimes definidos em lei (BEXIGA, 2016). No tocante à legitimidade ativa, eram excluídos escravos, libertos recém-emancipados, condenados e incapazes; mas, para lesa-majestade, a Lex Iulia ampliava legitimidade a qualquer pessoa, dada a gravidade do delito. Não havia Ministério Público; vigoravam as figuras do postulare pro se e do postulare pro alio. A competência do governador era amplíssima, ressalvados delitos religiosos próprios do Sinédrio e hipóteses em que cidadãos romanos podiam apelar ao imperador.

Quanto ao mérito, tanto a forma executória (crucificação) quanto o titulus (“Rei dos Judeus”) indicam condenação por sedição e lesa-majestade (Lei das XII Tábuas — sedição; Lex Iulia de vi publica). A matéria de fato considerou, com alta probabilidade, a entrada triunfal em Jerusalém (Mc 11,1–11), ressonante do caráter régio do messianismo, então entendido com viés político-militar. O anúncio angélico (Lc 1,32–33) reforça a coloração régia. Acresce que acusações de incitação à sonegação de tributos poderiam apoiar-se em certas passagens (Mt 17,24–27). O episódio da expulsão dos vendilhões agravou a animosidade dos chefes do templo, que “procuravam um modo de matá-lo” (Mc 11,18; Lc 19,47). João menciona reiteradas tramas homicidas. Embora, no julgamento, não haja menção direta ao episódio do Templo, é plausível que tenha sido subsumido na rubrica de “agitação da nação” (Lc 23,2). O conjunto desses fatos, em seu contexto, pode ter sido interpretado como rebelião. Suetônio, no início do séc. II, menciona “tumultos instigados por Chrestus” em Roma, que levaram Cláudio a expulsar judeus (RAMOS, 2006, p. 53) — testemunho do modo como a autoridade romana lia movimentos associados ao nome de Cristo. De resto, julgar a sentença de Pilatos pelos cânones atuais é anacrônico: o prefeito dispôs de elementos e depoimentos que não nos chegaram. Diante da escassez de fontes, a análise aqui proposta é a que se mostra possível.

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Sobre o autor
Lucas Araújo de Oliveira Júnio

Advogado, atua em vários ramos do direito, com ênfase em prática cível e criminal. Aficionado e curioso estudante de ciências humanas. Trabalha também como tradutor e intérprete

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