5. Considerações acerca da condenação a partir da noção de pena-suplício
Ao analisar o julgamento de Jesus, examinando exaustivamente o contexto histórico, religioso e jurídico que culminou em sua crucificação, é possível elencar proposições sobre a função que o Direito — entendido como sistema coativo de normas — desempenhou naquele cenário, isto é, os objetivos a que serviu e foi instrumentalizado. A seguir, esboçam-se considerações sobre o significado político da pena e do Direito nesse julgamento, a partir do referencial foucaultiano de pena-suplício, brevemente apresentado.
Em primeiro lugar, pode-se afirmar que a pena foi utilizada como tática política na luta pelo poder. O filósofo francês Michel Foucault, em Vigiar e Punir, ao analisar o processo de desaparecimento do suplício como pena — as mutilações corporais, as sessões de tortura que marcaram o direito penal durante grande parte de sua história até o início do século XIX, em várias regiões do planeta —, lembra que a ostentação do suplício guarda com o crime uma relação de espelhamento e, por vezes, o ultrapassa em selvageria: os juízes tornam-se algozes, habituando espectadores a níveis de ferocidade que invertem os papéis, convertendo o criminoso-supliciado em objeto de piedade e até de admiração. O processo penal moderno internaliza mecanismos mais sutis de penalidade, sem a “volúpia” do castigo corporal, apoiando-se em restrições de direitos, liberdade ou patrimônio, com pretensões de “recuperação” ou “reeducação” do condenado. Nas palavras de Foucault: “O castigo passou de uma arte das sensações insuportáveis a uma economia dos direitos suspensos” (FOUCAULT, 2014, p. 15).
Ao examinar a pena-suplício — a imposição de pena corporal dolorosa e atroz —, Foucault afirma que o suplício “é a arte de reter a vida no sofrimento, subdividindo-a em ‘mil mortes’” (FOUCAULT, 2014, p. 36), pois o espetáculo punitivo consiste no prolongamento do padecimento do supliciado até quase o infinito. O suplício obedece a uma liturgia penal destinada a marcar o corpo e tornar infame sua vítima. Deve ser ostensivo para simbolizar o triunfo do poder sobre o condenado, fazendo de seu corpo um estandarte da derrota. Diz Foucault:
“Curiosamente, essa engrenagem dos dois rituais através do corpo continua, feita a prova e formulada a sentença, na própria execução da pena. E o corpo do condenado é novamente uma peça essencial no cerimonial do castigo público. Cabe ao culpado levar à luz do dia sua condenação e a verdade do crime que cometeu. Seu corpo mostrado, passeado, exposto, supliciado, deve ser o suporte público de um processo que ficara, até então, na sombra; nele, sobre ele, o ato de justiça deve tornar-se legível para todos. [...] Um suplício bem-sucedido justifica a justiça, na medida em que publica a verdade do crime no próprio corpo do supliciado. [...] O ciclo está fechado: da tortura à execução, o corpo produziu e reproduziu a verdade do crime. [...] Peça essencial, consequentemente, numa liturgia penal organizada em torno dos direitos formidáveis do soberano, do inquérito e do segredo.” (FOUCAULT, 2014, p. 61)
Nesse sentido, conclui o filósofo: “o suplício judiciário deve ser compreendido também como um ritual político. Ele faz parte, mesmo em modo menor, das cerimônias pelas quais se manifesta o poder” (FOUCAULT, 2014, p. 65). O crime é, de imediato, um dano ao ofendido, mas, em plano mais amplo, uma ofensa ao soberano, pois é por sua autoridade que a lei vigora; violar a lei, ainda que contra alguém em particular, é afronta à autoridade do príncipe — “a força da lei é a força do príncipe” (FOUCAULT, 2014, p. 66). A pena-suplício, assim, constitui afirmação corporal de poder. Não por acaso, o direito romano conferia aos mandatários imperiais nas províncias — em nome do ius gladii — o poder de aplicar a pena máxima aos inimigos.
À luz desse quadro, qual seria o sentido político do suplício de Cristo?
Como se demonstrou, após a condenação, Jesus foi submetido à crucificação — pena notória na Antiguidade por sua crueldade — e Pilatos mandou apor uma placa, em grego, aramaico e latim (em evidente estratégia de publicidade), com os dizeres “Jesus, Nazareno, Rei dos Judeus” (Jo 19,19), sinalizando a incriminação por lesa-majestade. Tem-se aí a sanção por afronta à autoridade dos césares e a afirmação do poder imperial. A crucificação, no sentido foucaultiano, é ritual de marcação: concebida para a crueldade mais requintada contra “inimigos” do Império. Os crucificados eram expostos, morrendo lentamente sob escárnio público; muitas vezes, negava-se-lhes sepultura, deixando-os ao relento, como pasto de abutres e cães. O supliciado erguido no patíbulo converte-se em estandarte de punição: eis o “ritual de marcação” de que fala Foucault. O corpo de Jesus torna-se símbolo da vitória de Roma; sua infâmia, intimidação dirigida a eventuais messias revolucionários. Para o Império, as penas capitais eram, e precisavam ser, espetáculos de tortura. Messias deviam ser rebaixados a criminosos domados e bons pagadores de tributos. Por meio do suplício, Roma instituía a política do medo, tornando sensível a todos, no corpo do condenado, a “presença encolerizada do soberano” (FOUCAULT, 2014, p. 67). As penas de morte bárbaras do direito penal romano respondiam ao objetivo político de “domesticar” os povos dominados. Acusado de messianismo e usurpação do título régio, Jesus recebeu em seu corpo a marca da dominação, o ritual da carnificina como reafirmação do poder sobre a Palestina ocupada.
Em segundo lugar, pode-se dizer que o Direito foi usado para criar um regime de verdade. Em chave correlata, Foucault (2014), em A Microfísica do Poder, argumenta que não existe verdade fora do poder; o poder determina as condições de exercício do verdadeiro — aquilo que ele denomina “regime de verdade”. Instituições difusas no tecido social detêm o monopólio de produção dos discursos reputados verdadeiros. O poder produz os discursos de verdade.
Nos primórdios do cristianismo, quando o movimento ainda era minoritário e carecia de apoio institucional, não compartilhava o monopólio do poder. Ao contrário, opunha-se aos grupos que detinham o controle formal — fariseus, saduceus, doutores da Lei e, politicamente, os romanos. Nesse contexto, o poder classificava como “falsos” os discursos cristãos, moldando as condições para sua própria perpetuação. A hermenêutica de Jesus acerca da Lei — relativizando a rigidez do sabbath em favor da vida; recusando a mercantilização do sagrado —, embora positiva, foi recodificada como “falsidade” pelos líderes religiosos que monopolizavam o dizer do que é verdadeiro. Para simbolizar essa distinção, foi preciso enquadrar o “inimigo” no tipo “infrator da lei”. O Direito aparece, convenientemente, como meio de eliminar fisicamente a “ideologia” de Jesus, que disputava o poder hermenêutico com os chefes do templo. Não por acaso, “os principais sacerdotes e os fariseus procuravam uma forma de matá-lo” (Jo 11,47–48). Não por acaso, qualificaram seus ensinamentos como “demoníacos” (Mt 12,24). A hermenêutica humanizada da Torá, que Jesus propunha, passou a disputar os lugares de poder na produção do verdadeiro — e o Direito foi mobilizado para silenciá-la.
Nesse eixo, o Direito medeia relações de poder. Verdade e poder se interpenetram. A religião “encarna” um sistema de normas morais com pretensão de coerção e, portanto, também é espaço de poder, mediável pelo Direito. Quanto mais a religião se submete ao poder, mais o Direito a promove; quanto menos, mais a reprime. Assim, sendo o cristianismo uma minoria potencialmente subversiva sob o ponto de vista político-religioso, foi alvo de repressão jurídica na disputa por hegemonia e pelos discursos válidos de verdade. O judaísmo (determinados grupos à época), ressentido com o cristianismo nascente, empreende uma “guerra jurídica” que traduz convicções cristãs em delito, a fim de preservar seu espaço de poder.
Em terceiro lugar, o Direito foi usado como instrumento de eliminação física de um inimigo ideológico-religioso; como mecanismo de silenciamento de um grupo dissidente e de exaustão de animosidades pessoais.
A Palestina do tempo de Jesus era território ocupado por Roma, cuja supremacia militar suscitava sentimento difuso de inconformidade, alimentado por patriotismo religioso. Nesse contexto, emergem facções judaicas contrárias ao Império (sicários, zelotas, partidários da luta armada), bem como correntes religiosas (como os saduceus, detentores de postos altos e adeptos da política de acomodação; e os fariseus, com forte presença no Sinédrio).
Os evangelhos registram atritos entre esses grupos e o rabi Jesus, que gozava da simpatia popular e propunha nova hermenêutica da Lei. Palma (2009) sugere que Jesus inaugura hermenêutica teleológica e integrativa, com a dignidade da pessoa humana como postulado.
Exemplo dessa “hermenêutica crística” (PALMA, 2009, p. 30) é a condenação de qualquer forma de agressão, superando a lei de talião do direito hebraico (Dt 19,21) por meio dos imperativos “dar a outra face” e “se alguém te obrigar a andar uma milha, vai com ele duas” (Mt 5,39–40). Também é paradigmático o episódio em que Jesus impede o apedrejamento de uma mulher em adultério (Jo 8,3–11), ao dizer: “Quem nunca pecou atire a primeira pedra”, humanizando a aplicação da lei, que punia o adultério como crime.
Em várias ocasiões, Jesus propõe mudança de leitura da Lei. Fariseus e saduceus — afeitos a aplicação literal e minuciosa — entram em choque com essa abordagem.
À medida que Jesus granjeia a simpatia das multidões — vide a entrada triunfal em Jerusalém e as aclamações de crianças no templo —, instala-se disputa de prestígio com os líderes religiosos. A antipatia atinge ápice quando ele expulsa os vendilhões do templo. Jesus também lança críticas severas a esses líderes: “cegos, guias de cegos”, “hipócritas”, “sepulcros caiados” (Mt 23). A partir daí, “procuram um modo de matá-lo”. A inveja e o ressentimento alimentam o plano homicida.
A imputação criminal torna-se peça chave dessa trama. O processo é cenário ideal para destronar o adversário. Como mostrado, as acusações de blasfêmia e usurpação do título régio admitem pena capital. O Direito fornece o instrumento hábil para eliminar o “perigo”. É o que se denomina, hoje, direito penal do inimigo (JAKOBS; MELIÁ, 2008).
Vemos, assim, que um grupo de judeus recorre a instâncias jurídicas que permitiriam a eliminação física de um dissidente e o silenciamento da divergência, inclusive sob o argumento de segurança: “Se o deixarmos assim, todos crerão nele; virão os romanos e nos tirarão o lugar e a nação” (Jo 11,48). Levada a cabo a trama, Jesus perde o status de “cidadão” e é convertido em “inimigo”; prevalece uma normatividade em que o direito penal do autor — as características pessoais e o suposto perigo que representa — sobreleva-se aos fatos (JAKOBS; MELIÁ, 2008).
Critica-se esse arranjo: as situações excepcionais em que o “inimigo” representa perigo real ficam nas mãos de quem se julga verdadeiro “cidadão”. Ao decidir matar Jesus, os chefes do templo “inventam” para si um inimigo.
Por fim, o Direito foi mobilizado como garantia da pax Romana. Como visto, Jesus foi condenado por lesa-majestade e sedição — delitos positivados em duas leis romanas.
A primeira, o crime de lesa-majestade (maiestas), já delineado na velha Lei das XII Tábuas e desenvolvido por Júlio César na Lex Iulia de laesa maiestate, punia com severidade quem, por conluio com inimigos, perturbação da ordem, atentado contra magistrados ou a comunidade, autoproclamação régia etc., atentasse contra o povo romano, sua segurança ou a autoridade do imperador, com sanções como a morte, a danação da memória (damnatio memoriae), a privação de sepultura e o confisco de bens (adeptio bonorum). A segunda, a “leges Iuliae de vi”, congregava normas de segurança pública no tempo de Jesus: repressão a arruaças, porte de armas em locais públicos, armazenamento de armas, obstaculização dolosa de processos, retenção de milícias privadas, saques em calamidades, espoliações, estupros, coações e raptos, incitação a motins e sedições. Os incursos poderiam ser crucificados, lançados às feras, deportados etc., conforme sua condição (cidadãos, estrangeiros, escravos), como lembra Bexiga (2016).
Tais tipos visavam à defesa do Império, da majestade (autoridade e poder), do Estado, da pátria e da salus pública (BEXIGA, 2016, p. 502). Estavam umbilicalmente ligados à pax Romana: garantir a ordem mediante o direito penal, excluindo “sediciosos” e “insurretos” — inclusive messias que pretendessem instaurar “reinos” dentro de territórios ocupados, como comumente se compreendia o messianismo entre judeus e romanos.
Retorna, aqui, a lógica do direito penal do inimigo e do Direito como instrumento de poder: os acusados de lesa-majestade e sedição eram etiquetados como “inimigos”, despersonalizados — recorde-se a diferença entre cidadãos, estrangeiros e escravos no direito penal romano. A crítica a essa concepção reside na pergunta: quem define quem é “cidadão” e quem é “subversivo”? Abre-se, assim, espaço a arbitrariedades em nome da “segurança” e da “ordem”. O Direito pode justificar a exceção — e a exceção acolher qualquer horror. Se Jesus foi condenado como “inimigo” do Estado e de um grupo de judeus, é forçoso concluir que o rótulo serviu mais ao silenciamento de uma voz inconformada e libertadora do que à neutralização de ameaça real à ordem jurídica.
6. Considerações Finais
Jesus de Nazaré é figura demasiado instigante para ser ignorada. Também por isso atrai o olhar de juristas: seu julgamento é, talvez, o maior escândalo que o direito penal já produziu. Não por acaso: o processo penal é palco propício para eliminar indesejáveis e “perigosos” marginalizados.
No Sinédrio, o processo mostrou-se eivado de ilegalidades à luz da Torá e do Talmude. Demonstrou-se que Jesus não cometeu blasfêmia — não há registro de pronunciamento do Nome (YHWH). Em nenhum momento se comprovou que tenha dito que destruiria o Templo de Jerusalém. Não se observou a exigência de duas testemunhas idôneas (Dt 19,15–21), nem a de apuração meticulosa dos fatos (Dt 13,13–15). Além disso, prisão e julgamento ocorreram à noite e em data festiva, e foram conduzidos com traços de segredo, em violação a disposições processuais.
As razões possíveis para a perseguição judicial residem nas divergências teológicas entre Jesus e fariseus/saduceus, que elevaram convicções religiosas à categoria de delito, convertendo o Direito em arma política. É plausível, ainda, que temessem que o messianismo reivindicado por Jesus fosse lido pelos romanos como subversão e, por isso, preferiram entregá-lo a Pilatos para evitar conflito com Roma. De fato, a entrada triunfal em Jerusalém, com aclamação régia, e a expulsão dos vendilhões criaram condições para enquadrá-lo nos crimes de sedição e lesa-majestade, previstos na legislação romana.
Mostrou-se que a prisão de Jesus contou com coorte romana, indicando conluio entre líderes judaicos e autoridades imperiais. Considerando que o foro romano não julgava delitos da competência estritamente religiosa do Sinédrio, Jesus teve de ser acusado de crime segundo a lei romana.
Demonstrou-se que todos os evangelhos — canônicos e apócrifos —, bem como literatura judaica e romana, convergem: Jesus foi acusado (e tido por culpado) de declarar-se rei. A lei romana qualificava como lesa-majestade a reivindicação de título régio não outorgado por César. É consistente a hipótese de que Roma tenha lido o messianismo de Jesus em chave política, sobretudo diante de sua recepção popular e da entrada triunfal em Jerusalém. Mostrou-se que, para muitos judeus, o Messias era libertador político-militar, o que acirrava a tensão com o poder romano na Palestina ocupada. Um grupo de judeus acusou-o de se declarar rei — acusação à qual Jesus, em algum momento, anuiu, ainda que por confissão qualificada (“meu reino não é deste mundo”). Tal distinção não tinha guarida no direito romano, uma vez que o poder dos césares reivindicava fundamento divino, e os próprios imperadores eram divinizados, não admitindo concorrência nesse estatuto.
A própria forma de execução (crucificação), pena reservada a escravos e estrangeiros, e o titulus sobre a cruz (“Jesus, Rei dos Judeus”) constituem prova eloquente da imputação acolhida por Pilatos. A condenação, à luz das evidências, deu-se pelos crimes de sedição e lesa-majestade: Jesus reivindicou título régio e participou de eventos interpretáveis como motins — como a expulsão dos comerciantes —, subsumíveis formalmente à sedição.
Em conclusão, o Direito atendeu a demandas de afirmação de poder: político, por Roma; religioso, por lideranças judaicas. Jesus representou voz libertadora em sua maneira de interpretar a Lei, inconformada com o status quo e crítica à opressão. Essa voz — e sua grei — precisavam ser silenciadas, como o foram. Ironia da história: seu julgamento e morte converteram-se no martírio mais emblemático da tradição ocidental. Por meio de um processo judicial, morreu o Jesus da história; para gerações incontáveis, nasceu o Cristo da fé.