4 Aspectos do direito romano
Segundo o critério jurídico interno, os historiadores do direito, subdividem o estudo do direito romano em quatro períodos. Apesar de existirem diversas nomenclaturas para essa divisão (primeiro período ou fase régia; segundo período ou fase da república; terceiro período ou principado), adota-se a referida por (BEXIGA, 2016, p. 221): época arcaica (até 130 a.c); época clássica (até 230 d.c), época pós-clássica (até 530) e a época justiniana (até 565). Como se sabe o direito romano, como um todo, foi de suma importância para a formação do direito ocidental, tendo criado noções básicas como dolo e culpa (bonus e malus), imputabilidade, coação irresistível, legítima defesa, os princípios penais sobre o erro. Historicamente, entende-se que o direito positivo romano tem início com a lei das XII Tábuas (449 a.c), que afastando o direito da religião, versou sobre o direito público, o direito penal, o direito processual, dentre outros. Impunha também a “lei de talião” e penas severas, tais como o exílio, a deportação, a pena de morte por flagelação, cremação, crucificação e etc. Nelson Câmara nos informa:
Dessa lei, até o final da República o direito foi constituído por obra dos juristas. As lacunas e obscuridade dessa lei fizeram com que aparecesse em 367 antes de Cristo, o pretor, que em seus éditos deveriam indicar a ação cabível a ser intentada e instruída com provas e julgadas por um árbitro (judex privatus). O édito adquiriu, posteriormente, força de lei não podendo ser modificada nem pelo pretor que o estabeleceu, nem por seus sucessores. Surgiu, dessa forma, o jus preatorium, que a pretexto de interpretar a lei das doze tábuas e ampliou e a simplificou, tornando-a menos formalista e obscura. Dos éditos do pretor da cidade (preatur urbanus) competente para apreciar os litígios entre os cidadãos romanos surgiu o direito do cidadão romano (jus civilis), enquanto dos éditos do pretor para estrangeiros (preator peregrinus), criado em 242 a.c, que tratava dos litígios entre estrangeiros e entre esses e os romanos, surgiu um direito novo decorrente da equidade, o jus gentium. (CÂMARA, 2014, p. 132)
Daí, infere-se, portanto, que o direito romano não tratava cidadãos romanos e estrangeiro da mesma maneira, isto nos será especialmente importante, posto que o réu Jesus Cristo não era um cidadão romano, decorrendo disso enormes implicações, conforme se verá.
É importante mencionar algumas características marcantes do direito romano, entre elas, o positivismo, o conservadorismo, o individualismo. A justitia, entendida como a firme vontade de dar a cada um o que é seu (Suum Cuique Tribuere), um dos princípios basilares do direito romano em todas as suas áreas, a aequitas, isto é, a igualdade. Em sua dimensão positiva, incluem-se a legislação escrita e os costumes.
A lei positiva mais importante desse tempo é, sem dúvida, a já citada lei das XII tábuas, em 449 a.c (lex duodecim tabutarum), vigente ainda muito antes da época de Cristo e mantida por séculos após. Segundo Cezar Roberto Bitencourt (BITENCOURT, 2002, p. 283), temos aqui o início dos diplomas legais no direito romano, sendo essa lei o primeiro código romano escrito.
No direito penal romano as infrações eram subdividas em públicas e privadas (crimina publica e delicta privata), sendo as primeiras consideradas como atentatórias à segurança interna ou externa do Estado romano e reclamavam punição pública e estatal, já os delitos privados facultavam a punição pelo próprio ofendido. As penas mais comuns eram a de damnum (pegamento em pecúnia), poena (pagamento em dinheiro, em caso de lesões), e o suplicium (a execução do delinquente), exílio e deportação (relegatio e deportatio). A pena de suplicium, por sua vez, se subdivida em outras variadas formas, das mais bárbaras àquelas praticada com os mais diversos requintes de crueldade, assim, havia execuções por timpanamento, laceração de carnes, sufocamento (culleum – submersão em um saco), cremação (crematio), entregar alguém às chamas (flamis tradi), enforcamento (patíbulo adfigatur), ser devorado por feras (damnatio ad bestias) e a tão odiosa crucifagium – a pena de crucificação – apenas previstas para os crimina publica, estrangeiro e escravos e à qual foi submetida o réu Jesus Cristo. Falemos um pouco sobre a pena de crucificação em particular.
Sabe-se que a pena de crucifagium não foi inventada pelos romanos. Ela já era praticada pelas persas, que a inventaram inclusive por razões religiosas: não queriam que a terra, consagrada a seu Deus, Ahura Mazda, fosse contaminada com um cadáver de um criminoso. Sabe-se que a pena de crucificação era a mais temível de todas, era uma forma de suplício extremamente cruel e humilhante. Mais do que uma simples execução, era uma tortura lenta. Não se danificava nenhum órgão vital do crucificado, de maneira que sua agonia pudesse ser prolongada por horas ou dias. Era costume dos romanos deixar os crucificados exposto para servir de lição e “estandarte” de humilhação a todos que passassem. Um espetáculo de horror, somente no séc. I, os romanos crucificaram milhares de escravos, judeus e povos dominados, como uma forma de “pacificar” as regiões por ele habitadas. Os corpos deixados sobre a cruz eram normalmente comidos por animais selvagens, como abutres e aves de rapina e seus corpos eram mantidos na cruz, mesmo sofrendo decomposição e exalando cheiro pútrido dos cadáveres (COHN, 1990).
Ao final do julgamento, três eram os pronunciamento possíveis ao juiz: a decisão de condenação (abolutio), a decisão de absolvição (que importava o processamento e a punição do ofendido), e a decisão de non liquet ou ampliatio, que significava um voto por prosseguimento de nova instrução processual e colheita de novas provas para uma discussão mais ampla, o que, incluía até torturar o acusado a fim de conseguir novas provas
Os governadores assim como os césares em Roma realizam os julgamentos que lhes eram apresentados dentro dos palácios onde residiam - o pretório. A sala específica onde o réu era apresentado ao governador além-mar ou ao imperador em roma chama-se “secretarium”, separado por um véu das demais partes do palácio. Julgamentos realizados diante de outros juízes, profissionais ou jurados eram realizados publicamente em um local denominado “forum”, nomenclatura que subsiste até hoje.
O caráter secreto do julgamento perante o governador não importava uma violação ao caráter pública, em regra, dos julgamentos romanos. Isto porque os governadores detinham o chamado “ius gladis” ou “ius sanguinis”, o direito de realizar julgamento que importassem assegurar a ordem pública e a integridade do império, o que, naturalmente, era oportunidade para graves injustiças (COHN, 1990).
Possuímos relatos, todavia, que quando o governador romano queria realizar um julgamento público, este não se dirigia até o forum, mas saia no pátio que ficavam em frente ao palácio, levando consigo o escabelo judicial, conforme Cohn (1990). Tendo sido, exatamente, este o cenário do julgamento de Jesus. E esta manobra tem uma razão de existir: se, ao menos, parte do julgamento não for proclamado antes de ser cumprido, o público a verá com suspeição a sentença. Ademais, o julgamento cujo resultado é proclamado em público dava testemunha da autoridade em que se legitimava.
Segundo Wedy (2015), o processo penal romano viveu de dois procedimentos principais, o primeiro, a cognitio ordinem, ou cognição ordinária, muito utilizado durante a república, vinculado ao sistema da ordo (lista de crimes e pena aos quais o juiz se vinculava pelo princípio da legalidade que ainda hoje existe no direito penal – não há pena sem lei anterior que a defina) e que representava um sistema proto-acusatório, em que a acusação era pública e cabia ao ofendido e o juiz apenas atuava como um terceiro imparcial e observador que julgava o mérito da pretensão acusatória.
Já nas províncias imperiais, como a Palestina e sobretudo com a queda da república, o procedimento da cognição ordinária e da ordo foi sendo, paulatinamente, suplantada pela prevalência do sistema da cognitio extra ordinem, considerado “a primeira expressão típica do designado sistema processual inquisitório” (WEDY, 2015, p. 11). Neste caso, o juiz tinha a liberdade para decidir a qualidade e a quantidade da pena conforme seu próprio talanete (arbitrium iudicantis). Ademais, possui o chamado “ius gladii”, ou direito da espada, isto é, a faculdade de aplicar a pen capital ao réu. Era um procedimento mais ágil (ouvia-se a acusação, interrogava-se o réu, seguida da análise de provas que não vinculavam a decisão, sendo proferido ao final o decretum ou sentença) era mais elástico quanto à forma, segundo decidisse o próprio juiz, não havia acusação formal e o processo era movido de ofício pela autoridade julgadora. Tanto pela data em que passou a ser o procedimento mais usado (27 A.C) quanto pelo fato de ser este o procedimento usado nas províncias imperiais, pode-se afirmar com segurança que foi o cognition extra ordinem, o procedimento que Pilatos observa no julgamento de Jesus.
4.2 Das (i)legalidades do julgamento de Jesus no Tribunal Romano
Após o julgamento de Jesus pelas autoridades do Sinédrio, ele foi levado para ser julgado por Pilatos. De fato, o historiador romano Tácito (cerca de 55-116 d.C.) relata que um certo Cristo “no tempo de Tibério foi condenado à morte pelo procurador Pôncio Pilatos” (RAMOS, 2006, p. 52). Era o dia da parasceve, isto é, o dia anterior de preparação para páscoa judaica. Neste dia, era tradição dos judeus degolar cordeiros à noite, que serviriam de jantar para reunião familiar que acontece nessa noite. Para tomar lugar à mesa, era necessária uma “pureza ritual”, isto implica dizer que os judeus não podem entrar em contato com nada que seja considerado pagão, sob pena de contaminação, o que explica, porque eles não entraram no pretório de Pilatos, ao entregarem-no Jesus.
Pilatos era o procurador romano, mandatário do poder do império naquela região - detinha o título de preafectus (BEXIGA, 2016, p. 253). Reunia competências fiscais, administrativas, militares e judiciais na sua pessoa. Ele morava no litoral de Cesareia, onde ficava o palácio dos governadores, mas se encontrava, em Jerusalém naquela ocasião para acompanhar de perto o festejo israelita, como faziam os procuradores romanos, tendo em vista o fluxo de pessoas que peregrinavam à cidade, por ocasião da festa.
O império romano, à época de Jesus Cristo, era constituído de províncias senatoriais (mais pacíficas e romanizadas) e as imperiais (fronteiriças e suscetíveis de turbulências políticas) – caso da Palestina, aquelas eram regidas pelo Senado, e essas diretamente pelo próprio imperador, através de seus mandatários. Nas províncias imperiais, Roma tinha a política de deixar a administração nas mãos das aristocracias locais submissas ao império. Foi assim que na galileia de Jesus, emergia o governo nas mãos de Herodes Antipas.
Herodes era rei da região da galileia e Pilatos governava como procurador romano sobre a região da Judeia, localidades diferentes da grande região da Palestina.
Mas o que podemos saber dessa figura enigmática, chamada Pilatos, que entrou para a história como o símbolo da prevaricação judiciária?
Sabemos que Pilatos foi uma personagem conhecida por sua notável crueldade. O texto do evangelho do Lucas nos informa como Pilatos mandou executar certos judeus e misturar o seu sangue com o sangue dos sacrifícios do templo. O historiador Flávio Josefo narra um episódio em que Pilatos mandou executar, sem piedade, judeus que protestavam no pretório, mas o mesmo Josefo nos narra um episódio em que Pilatos recuou de uma decisão, temeroso da iminência de um levante popular (JOSEFO apud CÂMARA, 2014, p. 32). Portanto, podemos, seguramente, saber que Pilatos era uma personalidade muito cruel, mas sugestionável à pressão popular, assim compreende-se a atitude de Pilatos diante de um Jesus que ele considera inocento, mas que entrega à crucificação, porque temia um levante popular, em uma região, como já antes mencionado, marcado por inúmeras sublevações políticas contra o império romano. Todo esse cenário com a agravante do já mencionado sonho da mulher de Pilatos, a quem o evangelho apócrifo atribui o nome de Cláudio Prócula, que teria “sofrido muito” por Jesus em sonho. Não chegou até nós o conteúdo de tal sonho, mas podemos supor que em uma cultura religiosa, mística e politeísta como a romana, onde os deuses falavam por sonhos, tenha tido algum impacto na psicologia de Pilatos esse acontecimento, sobretudo por que ele já reputava Jesus como inocente.
Com respeito ao procedimento processual adotado para o julgamento de Jesus, a literatura indica que se tratava do procedimento do cognition extra ordinem. Nas províncias romanas não existia o chamado procedimento ordinário (“ordo”), tendo em vista a necessidade de que nestes locais o direito foi simples e acelerasse a tramitação processual, nelas vigia o processo extraordinário (extra ordinem), um rito mais rápido que dos processos ordinários e que consistia e ouvir a acusação, interrogar o acusado, avaliar a culpabilidade e proferir, após, a sentença.
Pelo que podemos saber, ele recorre, pelo contrário, a cognição extra ordinem, que é a prática seguida normalmente na Judeia pelos governadores Romanos: uma forma ágil de administrar a justiça na qual não se seguem os passos exigidos nos processos ordinários. Basta ater-se ao essencial: ouvir acusação, interrogar o acusado, avaliar a culpabilidade e editar a sentença. Parece que Pilatos age com grande liberdade de maneira muito pessoal desenvolver a cognitio. Ouvir os relatores, dá palavra ao acusado e, prescindindo de mais provas e pesquisas, centra a questão no que realmente tem mais interesse para ele: o possível perigo de agitação ou Insurreição que este homem pode representar (PAGOLA apud CÂMARA, 2014, p. 190)
Diferentemente do sistema processual penal chamado de procedimento “ordo”, o qual exigia, por exemplo denúncia prévia do delator, qualificação jurídica e qualificação factual prévia que circunscrevia o magistrado aos limites da pena estabelecida pela lei, uma característica destacada do sistema processual extra ordinem (processo extraordinário) era que o magistrado-juiz desempenhar verdadeiro papel de juiz-ator, cabendo-lhe receber a denúncia como mera descrição do fato e autor e adequá-la a qualquer meio processual que julgasse conveniente assim como lhe dar a qualificação jurídica-criminal que bem entendesse, tal como Pilatos fez em relação ao processo e às acusações contra Jesus. Neste sentido, afirma Bexiga (2016) o processo extra ordinem não observa o princípio romano da reserva legal (Nullum crimen, nulla poena sine lege praevia) aplicado ao procedimento ordinário penal romano, pois que ficava nas mãos do magistrado, do pretor, do prefeito, como neste caso, a caraterização legal do crime. Além disso, dispensava-se apresentação de acusação por querelante privado, o governador era detentor do imperium/ius gladis, podendo julgar ao seu alvitre sem estar, necessariamente, vinculado a alguma lei adjetiva ou substantiva, desde que o fizesse em nome da “ordem pública” ou da segurança do estado. Era caraterística desse sistema processual a cumulação de acusações por crimes diferentes entre si; a condução e julgamento do processo por uma só entidade (magistratus) que em uso do seu arbitrium iundicatis cabia o livre estabelecimento do grau e forma da pena;
O processo no sistema cognition extra ordinem era composto da seguintes fases: postulatio (autorização solicitado ao pretor para introduzir o pleito em juízo); seguido pela nominis delatio (descrição da denúncia); após a quaestio (interrogatório do acusado); nomen recipere (recebimento da denúncia); altercatio (momento que o pretor ouve as alegações das partes); decretum (momento de prolação da sentença). A despeito da despreocupação dos evangelista com a exatidão histórica dos relatos, o que se compreende, levando em conta o intuito religioso da descrição, pode ser proposto, sem garantia da fidelidade em razão da ausência de meticulosidade descritiva e jurídica dos evangelhos, que no julgamento de Jesus podemos vislumbrar as fases do cognition extra ordinem da seguinte maneira: Postulatio: Momento Pilatos questiona qual o teor da acusação, o que pressupõe que teria aceito sua postulação (Jo 18,29); Nominis Delatio: Os judeus apresentam o conteúdo da denúncia (Lc 23, 2-5); Nomen recipe: A circustância do processo obter tramitação indica que Pilatos admitiu a denúncia; Altercatio: Pilatos questiona Jesus sobre a acusação, subtendendo o debate com o próprio réu acerca do seu conteúdo (Mt 27,12-13); Decretum: Pilatos entrega Jesus para ser crucificado (Jo 19,16)
No que se refere às acusações: quais eram as que traziam os sacerdotes e anciões do povo contra Jesus? Todas as fontes da biografia de Jesus são unívocas no sentindo de que Jesus Cristo foi acusado de declarar-se rei dos judeus. Com o escopo de melhor visualizar-se o elemento da acusação, veja-se o quadro em apêndice.
Todos os evangelhos corroboram que a acusação levantada contra Jesus diante de Pilatos refere-se à reivindicação do título de realeza. É importante notar que a acusação no tribunal romano é uma acusação eminentemente política, é uma acusação de usurpar o título de César, tem uma nuance de atentado à lei romana e neste sentindo, ela difere, completamente da acusação de blasfêmia de que Jesus havia sido pouco antes acusado, durante seu julgamento no Sinédrio.
Há aqui uma mudança fática do libelo acusatório: perante Pilatos, os judeus abandonam (e intencionalmente) as acusações de blasfêmia e de atentado ao templo, justamente porque a Pilatos interessaria apenas a faceta política da acusação de Jesus pretender-se rei, já que os tribunais romanos não julgavam crimes assim definidos conforme o direito hebreu, sobretudo delitos de conteúdo religioso-confessional (a exemplo do delito de blasfêmia do direito hebreu)
Pilatos, após ouvir as acusações, respondeu que os judeus que ali estavam, levassem Jesus e o julgassem segundo a sua própria lei. “Tomai-o, pois e julgai-o, conforme a vossa lei” (Jo 18,31). Este é o caso típico em direito processual do que se denomina “declínio de competência”. É o pronunciamento do juiz que reconhece sua própria incompetência para o julgamento daquela matéria, caso em que, deve ser o réu remetido para ser julgado por outro instância ou juiz. Pilatos tentara cometer a competência do julgamento para o sinédrio, embora não tenha logrado êxito, por absoluta incompetência daquele tribunal, ao qual carecia o poder de aplicar penas capitais (ius gladii)
Ocorre que durante a inquirição de Jesus, os judeus mencionam que ele “subleva o povo, ensinando por toda a Judeia, desde a galileia até aqui”. Narra os evangelhos que ao ouvir falar da procedência geográfica de Jesus, ele decide enviá-lo para Herodes, que àquele tempo, era rei da galileia. A menção a galileia desperta em Pilatos o desejo de “livrar-se” de Jesus e junto com ele da insistência da turba que queria vê-lo ser crucificado.
Mas eles instavam ainda mais, dizendo: Ele agita o povo, ensinando por toda a Judeia, desde a Galileia, onde começou, até aqui. 6Pilatos, ouvindo isso, perguntou se o homem era galileu. 7Quando soube que era da jurisdição de Herodes, o enviou ao mesmo Herodes, que, naqueles dias, se achava em Jerusalém. (Lc 23, 5-7)
Surge aqui, o que em direito se chama, incidente de conflito de competência processual penal ratione loci, que se dá quando dois ou mais juízes se dão por competente para um mesmo processo ou negam todos ou ambos o julgamento de um dado processo. Foi o que aconteceu entre a jurisdição herodiana e a jurisdição de Pilatos.
A galileia era para Jesus, o que o direito romano chamada de forum originis, isto é, sua jurisdição natural (CÂMARA, 2014, p. 182). Contudo Herodes, segundo a narrativa do evangelista Lucas (Lc 23:11), também não vê em Jesus crime a justificar sua crucificação, e manda-o de volta para Pilatos. É o jogo de “empurra-empurra” jurisdicional entre dois juízes que, sem coragem para declarar o réu inocente, se acovardam diante da pressão popular. Tem-se aqui um julgamento definido em função da opinião pública, juízes que queriam responder os anseios difusos de um grupo específico da população em detrimento do própria convencimento, abdicando do poder judicante e pondo-o nas mãos dos acusadores: o direito sepultado pela prevaricação judicial.
Em sentido contrário, Valério Bexiga afirma que as normas vigentes no direito processual penal romano determinavam que Jesus fosse julgado “no lugar onde foi exercida e denunciada a ação criminosa (forum delicti)” (BEXIGA, 2016, p. 373). Argumenta também que a competência para aplicar a pena de morte (ius gladii) era exclusiva e intransferível, posição corroborada por Cohn (1990) para quem essa transferência de competência era meramente evasiva e ilegal face ao direito romano, porque o governador não era permitido transferir ao rei local suas atribuições. Ademais, tendo em vista se tratar de uma passagem atestada apenas pelo evangelho de Lucas, Bexiga (2016) arremata por concluir pela ausência de historicidade do episódio da transferência de Jesus a Pilatos.
Para escapar, todavia, do impasse, Pilatos lançará mão de um ardil jurídico: a norma do direito romano conhecida como indulgentia criminum, o perdão soberano do Estado, que abriria mão de sua pretensão punitiva em face de alguma circunstância que permitia Roma demonstrar alguma benevolência aos povos dominados. Isto representava na ótica do direito penal romano, uma causa excludente da punibilidade. Como queria Pilatos indultar o réu? Sabendo que era Páscoa, uma festa muito importante no calendário religioso judaico, e que era costume dos governadores romanos da Judeia liberar um preso por ocasião da festividade (privilegium paschale), para contornar sua hesitação diante do populacho incitado, oferece à multidão liberar Jesus, porém o grupo ali reunidos exigirá a Soltura de Barrabás, a quem o império havia recolhido preso por sedição. Os evangelistas nos dão conta de que Barrabás era “um preso famoso” (Mateus) “preso com outros sediciosos, os quais, em um motim, haviam feito uma morte” (Marcos), ou preso “o qual tinha sido preso por causa de uma sedição na cidade e por um homicídio” (Lucas). O papa emérito Bento XVI nos dá a informação, que remonta a Orígenes, de que Barrabás era chamado em certos manuscritos dos evangelhos até o séc. III de “Jesus Barrabbas”, o que indicada que assim como Jesus, ele também foi preso acusado de alguma forma de messianismo e sedição contra o império (RATZINGER apud CAMARA, 2014, p. 50,51). Isso explica porque a turba ali reunida exigiu que Pilatos aplicasse a indulgência a Barrabás: Jesus representava um messianismo que anunciava uma resistência de paz, Barrabás representava um messianismo que anunciava uma resistência militarizada. De qualquer forma, Pilatos não logrou êxito em extinguir o julgamento sob o manto da excludente de punibilidade da indulgetia criminum.
Neste contexto, Cohn (1990) argumenta que havia uma lei em romana à época, que teve sua vigência ignorado no julgamento de Jesus e em muitos outros julgamentos no império romano que, expressamente, interditava julgamentos comprado ou influenciados por fatores externos:
Pois não só do ponto de vista legal estava proibido a governador condenar um homem a pena de morte, rendendo-se à uma pressão desse tipo, como, ao fazê-lo, poderia ele mesmo no futuro ser julgado por assassinato propriamente dito. Uma lei do ano 59 AC (que permaneceu em vigência e fui até eternizada pelo livro de leis do Imperador Justiniano) impôs a juízes e governadores a obrigação de devolver o dinheiro ou suborno que recebessem para julgar iniquamente, e também impôs a responsabilidade criminal por qualquer condenação à morte segundo desejo ou sobre a pressão ou influência de fatores externos interessados. É verdade que houve numerosos governadores romanos em diversos lugares que ordenaram execuções injustas, tenham ele sido julgados e castigados posteriormente eu saído impunes. Mas todos esses atos foram realizados por motivação pessoal dos governadores e, para vingar-se de seus inimigos (...) (COHN, 1990, p. 156)
Lado outro, para o jurista Bexiga (2016) Pilatos estava julgando duas pessoas e condenou Jesus pelo crime de lesa majestade e absolveu Barrabás, nega que a multidão reunida pudesse influir no julgamento, à luz das lei que submetida os governadores à pena capital, em caso de condenar um inocente (Lei Júlia de Lesa Majestade e a Lei do ano de 59 Ac, do ponto XLVIII, 11,3 do Digesto[3]) e à luz do princípio então existente da continuidade da diligência judicial durante o julgamento (próximo ao princípio processual da concentração dos atos judiciais do direito moderno). Argumenta que o Evangelho de Marcos afirma tão-somente que “Havia um chamado Barrabás, preso com outros sediciosos, os quais, em um motim, haviam feito uma morte.” (Mc 15, 7), o que não, necessariamente, prova que ele também fosse um revoltoso homicida, por ter sido apanhado junto daqueles. Embora admita que a Mishná dá margem a possibilidade de ter existido a causa excludente de punibilidade chamada de privilegium paschale no âmbito do direito penal romano, à evidência do constante do Pesachim, VII, 6º, em que constaria “alguém que fosse libertado da prisão [...] pode-se imolar o cordeiro para ele comer” (BEXIGA, 2016, p. 322), o que provaria a existência de tal perdão soberano. No entanto, autor aposta mais na possibilidade de ter havido, no caso de Barrabás, um possível indulto de pena (indulgentia) ou uma extinção do processo antes da condenação (intercessio). De todo modo, Bexiga, 2016 nega historicidade ao relato da influência do populacho reunido sobre Pilatos, à vista das leis romanos vedarem esse tipo de “constrangimento oclocrático” e afirma ainda que, à mingua de evidência do privilegium paschale, Jesus e Barrabás foram julgados juntos, Jesus condenado e Barrabás absolvido por Pilatos.
Neste sentido, existe juristas que entendem que os relatos evangélicos “pintaram” um Pilatos benevolente que tentou “indultar” Jesus, mas foi pressionado a libertar Barrabás a contragosto, de maneira intencional. Argumenta-se que os evangelhos foram escritos durante o tempo em que Roma empreendia uma persecução violenta e bárbara contra os cristões e assim era necessário criar narrativas sobre a biografia de Jesus que não fizesse recrudescer a “caça” aos primeiros cristãos. Daí nascer a história do indulto de páscoa e cena de Pilatos lavando as mãos. Neste sentido, teólogos como Barth Ehrman defendem que a descrição narrativa de um Pilatos misericordioso é intencional, não-histórica e proposital de escritores cristãos que tinha razões de sobrevivência para “desculpar” os romanos e culpar os judeus pela morte de Jesus. Para autores desta linha, o que o que ocorreu no julgamento foi um assassinato promovido por Roma a um judeu com pretensões políticas em que esbarrava seu malsinado messianismo.
Houve no processo de Jesus a chamada fase do altercatio do procedimento extraordinário, pois pode-se inferir do diálogo que Pilatos faculta a Jesus se defender. Se poderia afirmar, portanto, que o contraditório na perspectiva da autodefesa (altercatio e oratio existentes no procedimento) foi facultada pelo juiz no julgamento de Jesus, embora este tenha recusado em alguns momentos a falar qualquer coisa.
Iniciado o interrogatório do réu, a primeira pergunta que Pilatos faz a Jesus é: “és tu, o rei dos judeus?”. A própria colocação desta pergunta indica ser esta a acusação que existia contra o réu, conforme já comentado acima. E é natural que a primeira pergunta que o juiz fizesse ao réu se referisse a fato-crime de que é acusado, à semelhança do interrogatório criminal contemporâneo.
A prova definitiva do que a acusação atribuída a Jesus Cristo se referia a ele pretender ser rei dos judeus está na inscrição feita em grego, hebraico e latim, posta sobre cruz, em que se lia: “JESUS, O NAZARENO, REI DOS JUDEUS” (Jo 19,19). Segundo Cohn (1990), a lei romana determinada que o delito do acusado fosse inscrito sobre o cadafalso ou sobre a Cruz. O titulus (tabuleta colocada sobre a cruz, geralmente em tom jocoso) representava, portanto, uma emanação da pena e os romanos colocavam-na sobre a cruz dos condenados, justamente, para indicar a razão da condenação.
Contudo, de acordo com o direito penal romano qual era o delito ao qual se subsumia a conduta de alguém declarar-se rei? Sabe-se que sendo a Judeia um território dominado pelos romanos, ninguém poderia reinar naquela região ou mesmo arrogar-se o título de rei, sem a “graça” e a “benção” do império. Quem quer que se pretendesse rei, sem a chancela de César era tomado por conspirador e traidor do império. Ninguém pode declarar-se rei, ninguém podia ser rei sem nomeação de Roma e ninguém poderia pretender ser rei por desígnio divino, porque só aos césares cabia o privilégio do direito divino de serem reis. Tratava-se do delito de menosprezo ao império ou na terminologia jurídicas romano, do crime de lesa majestade (crimen leseae majestatis). A respeito dessa lei, esclarece Haim Cohn
Esse delito de menosprezo pelo Império Romano já foi determinado em lei de 46 AC por Júlio César, e o Imperador Augusto repetiu em lei de 8 AC. Essa lei determinava a pena de morte, não só por traição real a César, como também por ofensa, Rebelião, deserção, atribuição indevida de autoridade e qualquer delito contra a segurança e integridade do estado ou contra a autoridade de César ou de seus governadores, em Roma ou em suas colônias. Nessa lei a definição dos delitos era a tal ponto amplo e elástica que em Roma arraigou-se o costume de, para maior segurança, agregar as acusações sobre outros delitos, acusação de menosprezo pelo Império, dado que esta última é de fácil demonstração. E às vezes acusava-se alguém de menosprezar o império para poder submetê-lo a torturas que só são permitidas quando o acusado poderia ser punido com a pena de morte. (...) E também já foi comentado, com justeza, que a definição do delito de menosprezo pelo Império era tão ampla e totalizadora que superou os limites de uma definição para converter-se em um mar sem fim. (COHN, 1990, p. 245)
- pergunta de Pilatos: “és tu rei dos judeus?”, Jesus responderá “tu dizes que sou rei”. Analisemos o trecho do interrogatório de Jesus:
Pilatos tornou a entrar no Pretório, chamou a Jesus e perguntou-lhe: És tu o Rei dos Judeus? 34Respondeu Jesus: Dizes tu isso por ti mesmo ou foram outros os que to disseram de mim? 35Replicou Pilatos: Porventura, sou eu judeu? A tua própria nação e os principais sacerdotes entregaram-te nas minhas mãos. Que fizeste? 36Respondeu Jesus: O meu reino não é deste mundo. Se o meu reino fosse deste mundo, os meus súditos pelejariam, para não ser eu entregue aos judeus; mas agora o meu reino não é daqui. 37Perguntou-lhe, pois, Pilatos: Logo tu és rei? Respondeu Jesus: Tu dizes que sou rei ". (Jo 18,33-37)
A literatura sobre o assunto discute se as palavras de Jesus implicaram confissão de sua reivindicação de ser rei. Há quem afirme que as palavras “tu dizes que sou rei” ou “tu o dizes” ou “tu o disseste”, como constante em outras traduções bíblicas, significavam no contexto cultural judaico daquele tempo exatamente “já está dito e não há necessidade de que eu o repita”. Esta é a opinião de Cohn (1990), que acrescenta que se Jesus quisesse negar que fosse rei, simplesmente teria dito que não era. Ademais, sob o ponto de vista de um interrogatório judicial, pouco importa o que o réu quer dizer: mais determinante para o resultado é como os quesitantes entendem o que o réu diz. No caso do julgamento de Jesus, veremos que as evidências fazem concluir que, independentemente, do que Jesus quis dizer, Pilatos, seu inquiridor confere a sua resposta, o sentido de uma reivindicação real de uma atividade sediciosa.
Na descrição do evangelista Marcos seis vezes Jesus é apelidado de “Rei dos Judeus”, quatro dos quais, pelo próprio Pilatos. Em todos os evangelhos, a acusação de pretensão de realeza aparece e é também o teor do título que Pilatos mandou colocar, jocosamente, sobre a cruz. Durante sua agonia, os judeus zombam de Jesus, dizendo-lhe: “Ele salvou os outros, mas não pode salvar a si mesmo! Ele é o Rei de Israel, não é? Se descer agora mesmo da cruz, nós creremos nele!” (Mt 27,42). Portanto, as narrativas revestem de cristalina convicção que Jesus a reivindicação de ser rei constava da acusação formal de Jesus, o que configura, sob o ponto de vista do direito romano, o crime de lesea maiestatis. E esta conclusão encontra substrato probatório na narrativa dos evangelho: ele é recebido e ovacionado como rei, por uma multidão, no episódio da entrada triunfal (Mc 11:1-11); seu nascimento é anunciado pelo anjo Gabriel como alguém cujo reino duraria para sempre (Lc 1, 30-33), afirmou que antes de Abraão existir, uma grande patriarca do povo judeu, “eu o sou” (Jo 8,58), explicitamente admite seu messianismo durante seu primeiro julgamento (Mc 14,62). Lembre-se que a conotação do messias para os judeus era de um rei que governaria sobre a nação. Tudo isso, naturalmente, pode ter sido usado em depoimentos ou provas testemunhais contra ele perante Pilatos.
No entanto, o reino de Jesus tem um poder apenas teológico-moral, ele afirma que o seu reino não é “deste mundo”, portanto, tal reino não se confunde com um poderia político-militar. Neste sentindo há autores, como Haim Cohn, Frank Powel, que defendem que, neste momento, Jesus realizou uma confissão qualificada, querendo confessar e ao mesmo tempo defender-se, significando que ele disse “é verdade que eu sou rei dos judeus, mas no entanto não sou culpado, posto que o reino que pretendo não é o reino a que você se refere e não oferece ameaça ao reino imperial romano”.
Sabe-se, entretanto, que o poder dos césares de Roma era baseado em uma chancela divina. O poder romano buscava sua legitimidade na vontade dos deuses. Nesse sentindo, os imperadores eram comparados a deuses e a negação da sua divindade implicava a negação dos deuses. Os imperadores tinham o direito à divindade e ninguém além deles poderia reivindicar tal origem. Neste sentindo, à afirmação de Jesus de que o seu reino era divino e que era da verdade, correspondia ao mesmo tempo, a negação do poder divino dos imperadores e da “verdade” do reino deles, ao representarem a materialização física do reino dos deuses.
Na opinião Silva (2011), o culto à divindade dos imperadores era o que, inclusive justificava a perseguição aos cristãos ocorridos no império romano durante os séc. I-IV, haja vista que os cristãos não reconhecem em ninguém nenhuma outra divindade, dado o monoteísmo que os caracteriza. Ana Tereza Marques Gonçalves acrescenta:
O poder político e a legitimidade não se apoiavam somente em impostos e em exércitos, mas também em concepções e crenças humanas. Deste modo, era necessária uma mistificação que alçasse o Imperador sobre os demais seres humanos. Os súditos não aderem necessariamente a um soberano em particular, mas a um soberano idealizado, que simbolizava a ordem do mundo. Todos os momentos nos quais era possível se realizar uma fusão entre o Imperador e as divindades eram aproveitados, porque possibilitavam a coalizão da ordem moral com a ordem política. (GONÇALVES, 2008)
Ademais, de todas as acusações que fizeram a Jesus tanto os judeus quanto Pilatos, somente à acusação de se declarar rei foi que ofereceu resposta, dizendo “tu o disseste”, fazendo assim tudo crer que Pilatos só pode tê-lo condenado em razão do crimen lesea majestatis, cuja tipificação e lei que positivou, abordar-se-á na conclusão deste trabalho.
Esta leitura encontra respaldo nos relatos do evangelista João, que dá conta que dentre a tropa que efetuou a prisão de Jesus estava um destacamento de soldados romanos (Jo 18, 3). Além disso, segundo esse mesmo evangelho, Pilatos já estava esperando por Jesus na manhã seguinte. Tudo levando a crer que Pilatos já havia decretado a prisão de Jesus. Bexiga (2016) esclarece que todo judeu cuja extradição, por motivo político, fosse pedida por Roma, conviria entregá-lo para que a comunidade não sofresse retaliação, segundo o autor, este é um princípio que consta da literatura da época e está em linha com o dito pelo Sumo Sacerdote acerca do Jesus “é preferível que um só homem morra pelo povo, que seja a nação inteira a morrer (Jo 12,50). Tudo isso corrobora com a ilação de que Pilatos sabia, já esperava por Jesus na manhã do seu julgamento, como também enviou suas tropas por que tinha interesse na sua condenação. O interesse romano na prisão de Jesus só poderia se justificar se, aos olhos do império, ele estivesse sendo acusado de um crime da magnitude de um crime de sedição ao império.
Nos é informado por Filho (2013), em seu artigo, um olhar jurídico sobre o julgamento de Jesus Cristo que escavações do séc. XIX encontraram uma suposta sentença atribuída a Pilatos, que até hoje, está arquivada no museu de Madri, na Espanha, condenando Jesus por crime de blasfêmia e infâmia à pena de morte, através da crucificação. Cabe refletir que renomados estudiosos da área não acreditam que o documento foi escrito por Pilatos. Neste sentido, Erhman (2013) e Bexiga (2016). No entanto, por tratar-se de um texto antigo que corrobora a compreensão de que Jesus foi crucificado por subversão ao império, e que isto já era admito por escritores da antiguidade, enriquece sua transcrição. Senão, analisemos a sua parte conclusiva, in litteris:
[...] julgo condeno e sentencio a morte Jesus, chamado pela plebe- Cristo Nazareno - e galileu de nação, homem sedicioso, contra a Lei Romana -contrário ao Grande Imperador Tibério Cesar. Determino e ordeno por esta que se lhe dê morte na cruz, sendo pregado com cravos como todos os réus, porque congregando e ajustando homens, ricos e pobres ,não tem cessado de promover tumultos por toda a Judéia, dizendo–se filho de Deus e Rei de Israel, ameaçando com a ruína de Jerusalém e do Sacro Templo negando tributo a César, tendo ainda o atrevimento de entrar com ramos em triunfo, com grande parte da plebe, dentro da cidade de Jerusalém. Que seja ligado e acoitado e que seja vestido de púrpura e coroado com alguns espinhos e com a própria cruz nos ombros para que sirva de exemplo a todos os malfeitores e que juntamente com ele sejam conduzidos dois ladrões homicidas saindo logo pela porta sagrada, hoje Antoniana, e que se conduza Jesus ao monte público da Justiça, hoje chamado Calvário, onde crucificado e morto ficará seu corpo na cruz , como espetáculo para todos os malfeitores que sobre se ponha em diversas línguas este título: “Jesus Nazareno, Rex Judeorum”. Mando também, que nenhuma patreva, temerariamente, a impedir a Justiça por mim mandada, administrada e executada com todo o rigor, segundo os Decretos e Leis Romanas, sob as penas de rebelião contra o Imperador Romano. (FILHO, 2013)
Propõe-se analisar a sobredita sentença de Jesus Cristo sob o crivo dos pressupostos de existência e validade do processo à luz do direito romano. Preliminarmente, é de notar, como já dissemos, que o processo extraordinário (cognition extra ordinem) era o aplicado pelos romanos em territórios ocupados fora da Itália, como era o caso da Palestina. Do ponto de vista da legitimidade, o direito romano admitia que qualquer pessoa fosse processada por crimes assim definidos pela lei romana, inclusive animais (legitimidade passiva universal), conforme Bexiga (2016). Do ponto de vista da legitimidade ativa, estavam excluídos escravos (que sequer tinham personalidade jurídica), libertos, condenados por crimes e deficientes. No entanto, para o crime de lesa-majestade, veio a Lei Júlia atribuir legitimidade ativa a todas as pessoas, em razão da gravidade do crime. Qualquer pessoa, que tivesse interesse na causa podia levar a acusação até o juiz (não havia a figura do promotor e do ministério público). Havia as figuras do postulare pro se (quando a acusação fosse efetiva em linha de interesse próprio) e postulare pro alio (quando a acusação fosse feita em interesse de terceiros). A competência do governador romano era quase ilimitada, ressalvado os casos de crimes de natureza religiosa de competência do Sinédrio e os casos em que cidadãos romanos podiam exigir o desaforamento do processo para ser julgado pelo imperador romano.
Do ponto de vista da análise do mérito da sentença, é possível concluir, como já expusemos que tanto a forma de morte (crucificação) como o titulus colocado sobre a cruz (Rei dos judeus) indicam que Jesus de Nazaré foi sentenciado pelo crime de sedição e lesa majestade (Lei de lesa majestade constante da lei das XII tábuas – crime de sedição; Lei júlia de violência pública). Pode-se também afirmar seguramente, que a apuração da matéria de fato, levou em conta o aspecto sedicioso que representou aos aos olhos de Roma a entrada triunfal de Jesus em Jerusalém, ressaltando o caráter real do seu messianismo (Mc 11, 1-11), sobretudo levando-se em conta que tanto judeus e romanos compreendiam o Messias muito mais em seu aspecto de herdeiro do trono de Davi e portanto, como um rei guerreiro que viria com poder militar para libertar Jerusalém. Nesta linha, é ilustrativo que o próprio anjo Gabriel, segundo o evangelho de Lucas, ao anunciar o nascimento de Jesus tenha se referido ao fato de que “Ele será um grande homem e será chamado de Filho do Deus Altíssimo. Deus, o Senhor, vai fazê-lo rei, como foi o antepassado dele, o rei Davi. Ele será um grande homem e será chamado de Filho do Deus Altíssimo. Deus, o Senhor, vai fazê-lo rei, como foi o antepassado dele, o rei Davi. (Lc 1,32-33), ressaltando, mais uma vez, o faceta real do conceito de Messias. Ademais, as acusações trazidas contra Jesus perante Pilatos apontam no sentido de que ele ensinava o povo a sonegar impostos. De fato, alguns dos seus pronunciamentos admitem tal interpretação (Mt 17, 24:27). Concomitantemente, o episódio em que Jesus expulsa os vendilhões do tempo causou-lhe enorme indisposição com os cabecilhas do templo, a tal ponto que os chefes do sacerdote passaram então a procurar uma forma de matá-lo (Mc 11: 18 – Lc 19,47). Somente no evangelho de João, há onze referências a intenção dos inimigos de Jesus de o matarem, o que indica, de fato, que suas ações despertaram as animosidades dos seus contemporâneos. Durante o julgamento de Jesus, não há por parte dos judeus expressa menção ao episódio em que Jesus tenha expulsado os vendilhões do templo, razão porque se pode entender que, possivelmente, consideravam o assunto como doméstico e, com mais probabilidade, subsumiram o ocorrido na rubrica de “agitamento da nação” (Lc 23,2). O esbulho do templo, o gravame dos bens dos vendedores, a entrada triunfal, todos esses episódios da última de semana de vida de Jesus de Nazaré, em seu contexto próprio, poderiam ser interpretados como incursos na previsão criminal de rebelião. Tal percepção está corroborado por, pelo menos, um testemunho histórico da forma como os romanos entendiam como tumultuosa e truculenta as atitudes de Jesus de Nazaré, o que também permite concluir que Pilatos entendia o messianismo de Jesus em seu aspecto político. Neste sentido, o historiador romano, Suetônio, do início do século II, quem em um referido texto, escrito por volta de 120, alude a um distúrbio instigado por certo “Chrestus” (Cristo). O historiador romano diz que o imperador Cláudio, cujo reinado se estendeu de 41 a 54, expulsou os judeus de Roma por causa de contínuos “distúrbios instigados por Chrestus” (RAMOS, 2006, p. 53). Por fim, é de se notar que estamos tratando de eventos que ocorrem em épocas muito distantes e civilizações muito antigas, de modo que não podemos eleger nossos valores éticos-sociais como bitolas qualificativas para avaliar a justiça da decisão de Pilatos, sem considerar os condicionalismo inerentes ao seu gênio, ao contexto social e político da judeus naquele tempo. Além disso, é preciso admitir que o prefeito tinha condições mais favoráveis para julgar Jesus do que o que nós temos hoje para julgar a decisão do prefeito. De fato, foi ele quem interrogou testemunhas e o próprio réu e sopesou o valor das provas que não chegaram a nós. A adequação e a justeza de sua sentença não pode ser mais sindicalizado, em razão das carências de fontes históricas a nos prover de maiores detalhes que reclamam uma avaliação dessa magnitude. Tendo em vista, a escassez de fontes, esta é a análise possível de ser feita.