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A função social da propriedade imóvel e o MST

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30/11/2005 às 00:00
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V – FUNÇÃO SOCIAL NO CÓDIGO CIVIL BRASILEIRO

Como se sabe, o Código Civil Brasileiro de 1916 não definia o direito de propriedade e se limitava a indicar, no caput do art. 524, os poderes do proprietário: "A lei assegura ao proprietário o direito de usar, gozar e dispor de seus bens, e de reavê-los do poder de quem quer que injustamente os possua." Sendo que tais poderes compunham o aspecto estrutural do direito de propriedade, sem nenhuma referência ao aspecto funcional do instituto.

O Novo Código Civil Brasileiro de 2002, por sua vez, trouxe importantes inovações na disciplina da propriedade destacando-se:

Art. 1228 – "O proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha."

"§1º. O direito de propriedade deve ser exercido em consonância com as suas finalidades econômicas e sociais de modo que sejam preservados, de conformidade com o estabelecido em lei especial, a flora, a fauna, as belezas naturais, o equilíbrio ecológico e o patrimônio histórico e artístico, bem como evitada a poluição do ar e das águas".

Como se vê, o caput do art. 1.228, ao tratar da estrutura dos poderes do proprietário, substitui a locução "a lei assegura ao proprietário", de matriz nitidamente jusnaturalista, em que a norma legal se limita a reconhecer o poder a ela pré-existente, pela expressão "o proprietário tem a faculdade", mais técnica e consentânea com a concepção positivista da propriedade privada.

Por outro lado, o § 1º, ao vincular o exercício do direito de propriedade às suas finalidades econômicas e sociais, visa a perseguir a tutela constitucional da função social, reclamando uma interpretação que, para além da mera admissão de eventuais e contingentes restrições legais ao domínio, possa efetivamente dar um conteúdo jurídico ao aspecto funcional das situações proprietárias. [17]


VI – O DIREITO DE PROPRIEDADE, O PRINCÍPIO DA FUNÇÃO SOCIAL E A ATUAÇÃO DO ESTADO BRASILEIRO

"A propriedade atenderá à sua função social" (art. 5º, XXIII, CF/88). Não obstante já ter sido objeto de inúmeras obras jurídicas, tanto no campo do direito constitucional quanto na seara do direito privado, tendo em vista a sua recente codificação pela novel Lei Nº 10.406/02, o princípio da função social da propriedade parece ainda não ter sido compreendido (ou aceito), em toda sua plenitude, pela sociedade civil e por aqueles que a representam.

Quem já não presenciou em disputas ou, simplesmente, ouviu falar a seguinte frase: "tudo posso em minha propriedade, faço dela o que bem entender e tenho pena daqueles que a tentarem invadi-la; afinal, minhas riquezas vêm do meu suor e tenho o direito de defendê-las".

Tais palavras, apesar de prolatadas sem conotações propriamente jurídicas, são fruto de uma cultura individualista, em que acima do interesse de todos estão os interesses pessoais. Essa cultura resultou e ainda resulta na exclusão dos que não têm fortuna e acesso ao capital, implicando necessariamente a manutenção de uma desigualdade insustentável, que naturalmente gera tensão e conflito social.

No intuito de reduzir tais desigualdades, resguardando na medida do possível os direitos e garantias individuais, é que foi instituído o Estado Democrático de Direito em nosso país, tomando por base, dentre outros, os princípios da soberania popular e da dignidade da pessoa humana.

São bastante claros, nesse sentido, o inciso III e o parágrafo único do artigo 1º, assim como o preâmbulo da Carta Magna brasileira, que, apesar deste não ter um caráter normativo, servem de diretriz política, filosófica e ideológica aos aplicadores do texto constitucional, tornando-se relevantes ferramentas para a sua interpretação, in verbis:

"Preâmbulo: Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembléia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL". (grifos apostos).

"Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:

I – a soberania;

II – a cidadania;

III – a dignidade da pessoa humana

(...)

Parágrafo único. Todo poder emana do povo, que o exerce por meio de representes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição."

Destarte, diversamente do que ocorre nos Estados Liberais, em que se pregam a mínima intervenção estatal e a liberdade individual, como valores supremos, no tipo de Estado adotado por nossa Constituição há uma dilatação de suas atribuições e funções, deixando ele de exercer exclusivamente o Poder de Polícia e passando a se responsabilizar também pela prestação dos serviços essenciais à sociedade, tornando-se, como já destacado pelo festejado constitucionalista citado, verdadeiro "promotor de justiça social".

"A conseqüência direta e imediata da implementação de um Estado Democrático de Direito preocupado com o bem-estar da sociedade é a inversão de princípios, pelo que se passa a aceitar uma maior intervenção estatal na esfera privada e a se pregar a supremacia do interesse social sobre os interesses individuais. Dessa forma, inevitável é uma mitigação da clássica dicotomia entre o público e o privado, não sendo possível, nesse contexto, a subsistência de direitos individuais absolutos, tendo em vista a sua limitação pelo interesse social". [18]

Importante destacar, porém, que ainda que caiba à lei regular como a função social estará sendo cumprida, a não-satisfação do princípio só haverá de acarretar as conseqüências estabelecidas na própria Constituição.

E tais conseqüências podem ser: (a) o parcelamento ou a edificação compulsória dos imóveis urbanos (inciso I do §4º do art. 182 (60)); (b) o aumento progressivo da carga tributária incidente sobre os imóveis urbanos (§1º do art. 156, na redação que lhe deu a EC n. 29/2000, c/c inciso II do §4º do art. 182 (61)) e rurais (art. 153, §4º); (c) a desapropriação-sanção de imóveis urbanos, com pagamento integral mediante títulos da dívida pública (inciso III do §4º do art. 182 (62)); (d) a desapropriação-sanção de imóveis rurais, com o pagamento em dinheiro das benfeitorias úteis e necessárias (§1º do art. 184) e o restante em títulos da dívida agrária (art. 184, caput); (e) a desapropriação-sanção, sem indenização, no caso das glebas onde forem encontradas culturas ilegais de plantas psicotrópicas (art. 243 (63)), e; (f) a desapropriação comum, prévia e integralmente indenizada em dinheiro, por motivo de interesse social, nas situações a serem estabelecidas por lei ordinária (inciso XXIV do art. 5º).

Fora dessas hipóteses, porém, remanesce a garantia da propriedade, inclusive a de reivindicá-la das mãos de terceiros que, injustamente, a detenham.


VII – FUNÇÃO SOCIAL E A DESAPROPRIAÇÃO

A Constituição regulamenta em seu texto possibilidades de desapropriação por interesse social. O art. 182, § 4º, no capítulo referente à política urbana, atribui ao Estado poderes para desapropriar a propriedade imobiliária urbana não edificada, subutilizada ou não utilizada, cujo proprietário, nos termos da lei, não promova o seu adequado aproveitamento. Por sua vez, o art. 184 estabelece que "compete à União desapropriar por interesse social, para fins de reforma agrária, o imóvel rural que não esteja cumprindo sua função social, mediante prévia e justa indenização (...)". [19]

Por outro lado, em relação à pequena e média propriedade rural, assim definida em lei, desde que seu proprietário não possua outra; e à propriedade produtiva, estabelece o art. 185 da Constituição uma zona de imunidade à desapropriação por interesse social para fins de reforma agrária, ainda que a função social não esteja sendo observada.

Nesse prumo, o art. 185, I previu que as definições, acerca da pequena e média propriedade rural, seriam fixadas, posteriormente, por lei, de modo a atender às peculiaridades da região onde se situa cada imóvel rural. E essa tarefa foi confiada à Lei 8.629/93. A conceituação de pequena e média propriedade rural veio a ser estabelecida com o art. 4º da referida Lei, pelo qual ficou assentado que pequena propriedade é aquela com área compreendida entre 1 (um) e 4 (quatro) módulos rurais, e média propriedade é o imóvel rural de área superior a 4 (quatro) e até 15 (quinze) módulos rurais.

O módulo rural é a área mínima, em determinada zona, considerada necessária à produção da renda capaz de sustentar o grupo doméstico, variável em função do tipo de exploração, das condições ecológicas e outros fatores. Tão importante é o módulo que nem mesmo por efeito de sucessão hereditária e partilha pode ser dividido.

A propriedade produtiva pode ser reconhecida, consoante ao estabelecido no esquema legislativo de fixação dos critérios de cumprimento da função social do imóvel rural, estabelecidos pela Lei 8.629/93, atualmente alterada pela MP 1.577, de 11/06/97, e reedições (atualmente, MP 2.183-56, de 24/08/2001), através da observação dos critérios resumidos abaixo.

"O reconhecimento da produtividade da gleba exige sejam atingidos, cumulativamente, nos termos do art. 6º da Lei 8.629/93: (a) um percentual mínimo de 80% do grau de utilização da terra (GUT), e; (b) um percentual igual ou superior a 100% do grau de eficiência da exploração econômica (GEE).

O cálculo do índice do GUT considera a área efetivamente utilizada do imóvel, em cotejo com a área potencialmente utilizável, excluídas, desse último conceito, por força do art. 10 da Lei 8.629/93, as áreas ocupadas por construções e instalações, excetuadas aquelas destinadas a fins produtivos, como estufas, viveiros, sementeiros, tanques de reprodução e criação de peixes e outros semelhantes; as áreas comprovadamente imprestáveis para qualquer tipo de exploração agrícola, pecuária, florestal ou extrativa vegetal; as áreas sob efetiva exploração mineral; as áreas de efetiva preservação permanente e demais áreas protegidas por legislação relativa à conservação dos recursos naturais e à preservação do meio ambiente.

De sua vez, o GEE é obtido por meio da aplicação de sistemática de cálculo que leva em consideração a destinação econômica da gleba em face de índices de rendimento considerados medianos, de acordo com a região onde se localiza o imóvel. Assim, determina o art. 6º, §2º, da Lei 8.629/93, que, para os produtos vegetais, divide-se a quantidade colhida de cada produto pelos respectivos índices de rendimento estabelecidos pelo órgão competente do Poder Executivo, para cada Microrregião Homogênea (inciso I); para a exploração pecuária, divide-se o número total de Unidades Animais (UA) do rebanho, pelo índice de lotação estabelecido pelo órgão competente do Poder Executivo, para cada Microrregião Homogênea (inciso II). Então, a soma dos resultados obtidos na forma anterior é dividida pela área efetivamente utilizada e multiplicada por 100 (cem), determinando-se assim o grau de eficiência na exploração (GEE) do imóvel rural. Dessa forma, um imóvel, com níveis de exploração econômica mais eficiente que aqueles relativos à média exigida pelos órgãos oficiais, poderá obter um percentual superior a 100% de GEE". [20]

Importante relembrar, que a produtividade, para impedir a desapropriação, deve ser associada à realização de sua função social, ficando imune desta obrigatoriedade, apenas, a pequena e média propriedade rural, conforme conceituadas na constituição.

Utilizada para fins especulativos, mesmo se produtora de alguma riqueza, não atenderá a sua função social se não respeitar as situações jurídicas existenciais e sociais nas quais se insere. Em conseqüência, não será merecedora de tutela jurídica, devendo ser desapropriada, pelo Estado, por se apresentar como um obstáculo ao alcance dos fundamentos e objetivos – constitucionalmente estabelecidos – da República. [21]

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Em referência a desapropriação para reforma agrária, é exigida, além dos requisitos acima descritos, também, a edição de decreto que:

a)declare o imóvel como de interesse social, para fins de reforma agrária;

b)autorize a União a propor ação de desapropriação.

A análise dos requisitos constitucionais leva à conclusão de que a finalidade do legislador constituinte foi garantir um tratamento constitucional especial à propriedade produtiva, vedando-se sua desapropriação e prevendo a necessidade de edição de lei que fixe requisitos relativos ao cumprimento de sua função social. Note-se que a constituição veda a desapropriação da propriedade produtiva que cumpra a sua função social. [22]


VIII – DA FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE COMO PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL

Depois do que foi acima exposto, nos indagamos: como podemos explicar que uma reintegração de posse pleiteada por proprietário, cuja propriedade atenda aos requisitos do art.186 CF (cumprimento da função social) e aos critérios definidores de produtividade, não encontre êxito em sua ação, perdendo a posse para os "posseiros", descritos como pessoas carentes, que não dispõem do mínimo necessário a uma existência digna?

Isto acontece porque estamos diante de princípios constitucionais que se chocam.

De acordo com o que apreendemos dos doutrinadores, os princípios diferem das regras.

A definição de princípio ("Grundsatz") foi elaborada por ESSER já em 1956. Para ele os princípios, ao contrário das normas (regras), não contêm diretamente ordens, mas apenas fundamentos, critérios para justificação de uma ordem. A distinção entre princípios e regras não seria, portanto, apenas com base no grau de abstração e generalidade da prescrição normativa relativamente aos casos aos quais elas devem ser aplicadas: a distinção seria de "Qualität". Os princípios não possuem uma ordem vinculada estabelecida de maneira direta, senão que apenas fundamentos para que essa seja determinada.

"Segundo o critério do fundamento de validade adotado por WOLLFBACHOF e FORSTHOFF, os princípios seriam diferentes das regras por serem dedutíveis objetivamente do princípio do Estado de Direito, da idéia de Direito ou do princípio da justiça. Eles funcionariam como fundamentos jurídicos para as decisões. Ainda que com caráter normativo, não possuiriam a qualidade de normas de comportamento, dada a sua falta de determinação". [23]

Na dicção de DWORKIN, as regras são aplicadas à maneira de um "tudo ou nada" (all or nothing), no sentido de que se a hipótese de incidência de uma regra é preenchida, ou é a regra válida e a conseqüência normativa deve ser aceita ou ela não é considerada válida. Os princípios, ao contrário, não determinam vinculativamente a decisão, mas somente contêm fundamentos, os quais devem ser conjugados com outros fundamentos provenientes de outros princípios. Daí a afirmação de que os princípios, ao contrário das regras, possuem uma dimensão de peso ("dimension of weight"), demonstrável na hipótese de colisão entre os princípios, caso em que o princípio com peso relativo maior sobrepõe-se ao outro, sem que este perca validade. Nesse sentido, a distinção elaborada por DWORKIN não consiste numa distinção de grau, mas numa diferenciação quanto à estrutura lógica, baseada em critérios classificatórios, em vez de comparativos, como afirma ALEXY.

Para ele, ALEXY, os princípios jurídicos consistem apenas numa espécie de normas jurídicas por meio das quais são estabelecidos os deveres de otimização aplicáveis em vários graus, segundo as possibilidades normativas e fáticas. Os princípios, portanto, possuem apenas uma dimensão de peso, e não determinam as conseqüências normativas de forma direta, ao contrário das regras. É só a aplicação dos princípios diante dos casos concretos que os concretiza mediante regras de colisão. Por isso a aplicação de um princípio deve ser vista sempre com uma cláusula de reserva, a ser assim definida: "se no caso concreto um outro princípio não obtiver maior peso". É dizer o mesmo: a ponderação dos princípios conflitantes é resolvida mediante a criação de regras de prevalência, o que faz com que os princípios, desse modo, sejam aplicados também ao modo "tudo ou nada" ("Alles-oder-Nichts"). [24]

Do modo de solução da colisão de princípios é que se induz o dever de proporcionalidade. Quando ocorre uma colisão de princípios é preciso verificar qual deles possui maior peso diante das circunstâncias concretas. Por exemplo: a tensão que se estabelece entre a proteção da dignidade humana e da esfera íntima de uma pessoa (CF, art. 1º, III e art. 5º, X), de um lado, e o direito de proteção judicial de outra pessoa (CF art. 5, XXXV), de outro, não se resolve com a primazia imediata de um princípio sobre outro. No plano abstrato, não há uma ordem imóvel de primazia, já que é impossível saber se ela seria aplicável a situações ainda desconhecidas. A solução somente advém de uma ponderação no plano concreto, em função da qual estabelecer-se-á que, em determinadas condições, um princípio sobrepõe-se ao outro.

Humberto Ávila, contrariando, em parte, o pensamento de ALEXY, defende que "não são os princípios que possuem uma "dimensão de peso", mas às razões e aos fins aos quais eles fazem referência é que deve ser atribuída uma dimensão de importância. A maioria dos princípios não diz nada sobre o peso das razões, mas é a decisão que lhes atribui um peso em função das circunstâncias do caso concreto. A citada "dimensão de peso" ("dimension of weight") não é, então, atributo abstrato dos princípios, mas qualidade das razões e dos fins a que eles fazem referência, cuja importância concreta é atribuída pelo aplicador. Vale dizer: a dimensão de peso não é um atributo empírico dos princípios, justificador de uma diferença lógica relativamente às regras, mas resultado de juízo valorativo do aplicador". [25]

Exemplo: se a realização de uma audiência oral num processo crime, poderia trazer risco de vida para o acusado – acometido de grave moléstia -, o direito à vida, deste último, sobrepõe-se ao dever do Estado de garantir aplicação adequada do direito penal, constituindo-se esta circunstância (ameaça à vida do acusado), no fato gerador de uma regra que expressa a conseqüência do princípio precedente (não realização da audiência).

Portanto, em vigor a Constituição de 1988, encaixa-se perfeitamente no conceito de princípio constitucional explícito a exigência de que a propriedade cumpra sua função social (inciso XXIII do art. 5º). No entanto, a observância da função social da propriedade não se aplica à maneira de um tudo ou nada, tampouco se pode, de antemão, indicar todas as condições necessárias à sua incidência. Em vez disso, a verificação do cumprimento da função social pode exigir juízos de ponderação em face de outros princípios, sendo necessária a "concretização" de seu alto grau de abstração. Este é o caso do primeiro parágrafo deste tópico, ou seja, no confronto entre o princípio da função social e da dignidade da pessoa humana, em muitas situações, prevalece este último.

DA JURISPRUDÊNCIA A SER ESTUDADA

Como alhures referido, o presente estudo pretende dissecar um caso concreto levado ao judiciário a fim de demonstrar como se têm posicionado algumas câmaras cíveis de nosso egrégio Tribunal de Justiça ao decidir questões que, intrinsecamente, envolvam o conflito entre princípios Constitucionais. Também, pretende-se mostrar que a função social é um princípio e por isso não pode ser aplicada como se regra fosse.

Trata-se de agravo de instrumento intentado por José Cenci e outros, contra decisão em ação de reintegração de posse que tem por autora Merlin S/A Indústria e Comércio de Óleos Vegetais, oriundo da Comarca de São Luiz Gonzaga.

O referido agravo visa impedir a execução de despejo, deferida, liminarmente, na ação de reintegração de posse à empresa arrendatária em detrimento dos "sem terras". Face à urgência, a agravante requereu a concessão liminar da tutela do Estado, pedindo que o agravo fosse recebido com efeito suspensivo.

Em regime de urgência no Tribunal de Justiça, o eminente Desembargador Plantonista Rui Portanova recebeu o recurso e suspendeu a liminar do Juízo de 1º grau, até decisão final do agravo.

RELATÓRIO

A Merlin S/A Indústria e Comércio de Óleos Vegetais, em 14.5.1997, celebrou com Agropecuária Primavera Ltda. Escritura Pública de Arrendamento de Imóveis Rurais, registrada no livro de Contratos do Tabelionato de Bossoroca, pelo prazo de 10 anos.

Em face da iminência de ver a propriedade invadida pelos integrantes do Movimento dos Sem Terra, acampados às margens da Rodovia BR 285, em frente da Agropecuária Primavera ou Fazenda Primavera, ajuizou Ação de Manutenção de Posse, cuja liminar foi indeferida.

Em 4.9.98, os integrantes do Movimento dos Sem Terra invadiram as dependências da Agropecuária Primavera e expulsaram os funcionários da fazenda, o que ensejou o ingresso da empresa arrendatária, Merlin Indústria e Comércio de Óleos Vegetais S/A, com Ação de Reintegração de Posse, com pedido liminar contra o Movimento dos Sem Terra, alegando, em síntese, que:

a) na área arrendada com a Agropecuária Primavera estão edificadas as benfeitorias elencadas às fls.;

b) a área arrendada destina-se à produção agrícola de culturas temporárias, o que não pode ser alterado;

c) encontram-se estocados aproximadamente 20 mil sacos de soja, 1.200 sacos de soja semente, 60 toneladas de adubo, defensivos agrícolas, óleo diesel;

d) há exploração da pecuária (80 bovinos);

e) o MST apossou-se do caminhão da fazenda e transporta invasores de outros locais;

f) os escritórios foram invadidos e houve destruição de documentos e equipamentos da fazenda;

g) estão preenchidos os requisitos legais elencados no artigo 927 do CPC;

O Ministério Público manifestou-se pela concessão da liminar requerida; a tentativa de conciliação resultou inexitosa; os representantes do MST foram citados, provavelmente, em audiência, e, quanto aos demais integrantes, determinou-se a citação editalícia.

Conclusos para decisão, entendeu a MM Magistrada em conceder "a liminar de reintegração de posse para determinar que a empresa Merlin Indústria e Comércio de Óleos Vegetais S/A seja reintegrada na posse do imóvel esbulhado, determinando que os integrantes do MST procedessem a desocupação voluntária da Fazenda Primavera no prazo de 5 dias, a contar de 11.9.98, data do deferimento da medida.

Inconformado com a decisão proferida nos autos da Reintegração de Posse, interpôs, José Cenci e outros, Agravo de Instrumento com pedido de efeito suspensivo e concessão de assistência judiciária gratuita, citando, em síntese, que:

a) o recurso é cabível e tempestivo;

b) as peças obrigatórias estão juntadas à inicial;

c) a área correspondente à fração de terras de campos e matos (434ha91ca), localizada no lugar denominado Pessegueiro, no Município de São Luiz Gonzaga é "coisa litigiosa, tanto por iniciativa do titular da propriedade, que pretende anular o arrendamento feito, quanto por credor que já penhorou parte do imóvel e tem até data aprazada para leilão";

d) há interesse tanto do INCRA como do INSS na gleba e, portanto, deve-se questionar a competência da Justiça Federal para processar e julgar a ação;

e) devem ser consideradas em feitos desta natureza, as disposições constitucionais e a Resolução n. 2.200-A da ONU a que aderiu a República Federativa do Brasil;

f) as "ocupações" ou "invasões" de terra não podem ser enquadradas como esbulho possessório pois configuram-se conflito entre direitos que não são prestados "nem pelo Estado, nem pelo livre mercado".

Em 17 de setembro de 1998, no Plantão, o eminente Desembargador Rui Portanova recebeu o agravo de instrumento, deferindo o pedido liminar para suspender a execução do despejo até decisão final do recurso.

O procurador da agravada foi devidamente intimado e, inconformado com a decisão supra, interpôs Agravo Regimental – não conhecido, em face do que dispõe os artigos 365, III e 385, ambos do CPC –, e ofereceu contra-razões, refutando as pretensões do agravante e requerendo a reforma da liminar deferida.

Vieram as informações da Magistrada; manifestou-se o Ministério Público pelo não provimento do recurso e, a pedido desta Relatora, foi encaminhado ofício dando conta do não cumprimento do artigo 526, do CPC.

D.A ANÁLISE DO RECURSO

Entre os quesitos argüidos no recurso de agravo foi, preliminarmente, alegada a incompetência de foro para o julgamento da ação de reintegração de posse em virtude da existência pendente Execução Fiscal do INSS contra os proprietários do imóvel, com penhora e licitação marcada para o dia 7 de outubro/98 e o interesse do INCRA na fazenda.

Por unanimidade este argumento não foi acolhido baseando-se na alegação de que a discussão é entre partes sem o privilégio do foro invocado, envolvendo exclusivamente posse atual, sem que outras ações com garantia real em andamento, venham a impedi-la. Não há interesse da União e suas autarquias sendo discutido no processo. A existência de penhora ou hipoteca, por dívida dos proprietários, não dos agravados, não torna a posse litigiosa. A resposta do INCRA de que tem interesse na área, desde que livre dos litígios judiciais paralelos, não tem o condão de deslocar a competência para a Justiça Federal.

Apesar do eventual interesse do INCRA pela área da fazenda invadida, estaria limitado a uma aquisição, eis não se tratar de imóvel rural improdutivo e, por isso, insuscetível de desapropriação para fins de reforma agrária.

DO MÉRITO

Ao examinar o mérito do agravo de instrumento em estudo, a Presidenta Relatora não deu provimento ao recurso, apresentando a seguinte fundamentação:

"O argumento prévio de que a relação jurídica entre arrendadores e arrendatários é litigiosa não confere com a verdade fático-jurídica. A proprietária da área, Agropecuária Primavera, que arrendou a área aos agravados, não questiona a "posse direta" transferida à agravada através de contrato de arrendamento por escritura pública, devidamente registrada. A lide instaurada entre a agravada e arrendadora não trata de Rescisão de Contrato ou Retomada do Imóvel; limita-se a discutir, no Judiciário, cláusulas que considera abusivas. Logo, a ação referida não torna litigiosa a posse.

O direito de defendê-la contra turbação ou esbulho lhe é garantido, na forma do artigo 499 do Código Civil. A posse foi legalmente transferida pela escritura de arrendamento e é dever do arrendatário preservá-la, guardá-la e defendê-la de terceiros que, injustamente, a violem.

A posse da agravada está comprovada não só pela identificação e instrumento acima referido, como pelo uso efetivo da área para atividade agrícola. A agravada mantém empresa em pleno funcionamento. Existem escritórios, casas, demais prédios para uso de empregados e oficinas, armazéns, silos e outros. Conforme consta de peças e relação, existem 300ha de trigo prestes a serem colhidos, 300ha de aveia e também milho, 80 animais, utensílio maquinaria, 20 mil sacos de soja no silo e 1.200 de soja semente, bem como outros produtos a pleno funcionamento e produção.

Não tenho qualquer dúvida que a Merlin Indústria e Comércio de Óleos Vegetais tem a posse, sendo a área útil e produtiva, portanto, observando o fim social a que se destina.

O esbulho praticado pelos réus é notório. Não questionam que tenham invadido a área, tanto que compareceram em juízo e até audiência conciliatória foi tentada pela Magistratura, que refere, em suas informações, ter constatado o uso útil e social do imóvel. Não lhes socorre, portanto, direito face à lei civil.

Os argumentos suscitados pelos agravantes para manter a invasão são de natureza moral e de caráter político-social, suscitando seus direitos fundamentais, garantidos pela Constituição Federal.

O juiz não é um mero interpretador das leis; procura humanizá-las, afeiçoá-las aos princípios de Justiça, adstrito aos limites constitucionais não podendo ignorar a lei, desconsiderando direitos também legítimos, violando o princípio do justo no caso concreto a decidir.

No caso sob exame, verifico que a terra invadida e reintegrada não é uma área improdutiva, sem função social. Os agravados exercem socialmente a sua função; evidente que não desmerece ser uma empresa de exploração agrícola, pois produz alimentos, mantém pessoas trabalhando, gerando, portanto, riquezas e bens necessários à sobrevivência. A posse pleiteada não é sobre uma área pública abandonada, desviada de seus fins, servindo a interesses de poucos. Também não é uma área particular, improdutiva, apenas servindo a interesses especulativos futuros ou gananciosos.

Ora, explorando os agravados economicamente toda a área, com trabalhadores e relações de trabalho e produção, em pleno andamento, estão a exercer direitos garantidos pelo artigo 5º da Constituição Federal, inciso XXIII, atendendo a função social nela inserta e, portanto, o direito a exigir a proteção possessória, garantida pelos artigos 499 do CC e 926/927 do CPC."

O Desembargador Guinther Spode decidiu diversamente, sob as seguintes alegações:

"Voltando ao fato e resumindo o dilema que pende de solução, temos, de um lado, o esbulho à posse de uma empresa, de outro, os direitos fundamentais (o mínimo social) de 600 famílias a reclamar proteção.

Evidente que a melhor alternativa para solver o litígio seria a conciliatória. Como esta não se viabilizou, vieram as partes a Juízo.

Em suma, para decidir, ter-se-á, obrigatoriamente, de optar entre duas alternativas: 1ª o prejuízo patrimonial que a invasão certamente causará (ou até já está causando) à empresa arrendatária das terras ocupadas; 2ª a ofensa aos direitos fundamentais (ou a negativa do mínimo social) das 600 famílias dos "sem terra" que, sendo retirados de lá, literalmente não têm para onde ir.

Apesar da agravada afirmar na fls., que o INCRA já teria colocado à disposição do MST outra fazenda, para onde seriam removidos os acampados, nenhuma prova a respeito disto veio aos autos.

Os doutrinadores afirmam que, havendo necessidade de sacrificar o direito de uma das partes, sacrifica-se o patrimonial, garantindo os direitos fundamentais, se a outra opção for esta.

Não bastante a doutrina apontar esta solução, o bom senso impõe tal direcionamento. Sendo assim, meu voto será no sentido de dar provimento ao agravo, mantendo os "sem terra" na posse da Fazenda Primavera.

O Desembargador Carlos Rafael dos Santos Jr., assim, decidiu: "A questão que ora se examina neste recurso de agravo de instrumento, transcende, em muito, o mero exame do texto legal, da doutrina mais influente ou da jurisprudência majoritária. Trata-se, a toda evidência, de uma revisão de todo um ordenamento jurídico, e da postura dos juristas mais eminentes e conhecidos, exteriorizada, então sim, pelos escritos e julgados que se conhece.

No caso dos autos, se está diante de um dilema. A aplicação da norma jurídica que disciplina a posse e a propriedade em sua acepção e valoração mais costumeiramente encontrada na jurisprudência e doutrina tradicionais, conclui por denegar o agravo. Todavia, já se nota, não é assim que penso se deva agir no caso dos autos, em que se está a tratar de direitos fundamentais do cidadão, como bem posto pelo eminente Desembargador Guinther, em seu lúcido voto.

Com efeito, a Constituição Federal, ao garantir o direito de propriedade e possessório que lhe é inerente, em seu artigo 5º, incisos XXII e XXIII, condicionou seu exercício ao atendimento de uma garantia maior, qual seja, a de que este exercício, do poder dominial em toda a sua amplitude, fica limitado, ao atendimento de sua função social.

Tenho para mim, que de fato, o despacho liminar concessivo da reintegração da agravante na posse do imóvel, não examinou estes fundamentos limitadores do direito à posse. A decisão liminar, que já citei, com muita propriedade (mas aqui de conhecimento), percebeu e referiu, modo expresso, o tema, cujo tópico transcrevo para evitar tautologia:

"A decisão só se preocupou em fundamentar o fato (ocupação/invasão) e a norma (art. 499, do Código Civil Brasileiro e 926 do Código de Processo Civil). Não há sequer uma referência à dimensão valorativa do direito de propriedade (função social). Renovada venia, a Constituição Federal (Lei Maior) e seu inciso XXIII não mereceu a devida consideração."

Gize-se que, ainda que a área seja produtiva, se não obstante tal produção, seus proprietários não vêm atendendo aos impostos, incidentes ou não sobre a área discutida, a função social da propriedade não está sendo atendida. Ocorre que a produção singelamente considerada tem função direta de lucro ao produtor, que a vende pelo melhor preço possível, e somente secundária, de alimentação do povo. A função social direta da empresa produtiva é o recolhimento de impostos, taxas públicas, encargos sociais, e a geração de empregos. Aqueles porque aplicados, pelo menos em tese, na garantia dos direitos mínimos da população, na saúde, na educação, no transporte, alimentação e moradia, este porque, como disse o poeta, sem o seu trabalho o homem não tem honra. E ao que parece, já que pendente execução movida pela União contra os proprietários do imóvel, esta propriedade não vem atendendo a sua função social, considerada em sua plenitude.

E este exame, mais profundo, da produtividade da área, de sua função social efetivamente exercitada, em todos os seus termos, demanda maior investigação probatória, notadamente a demonstração da efetividade da penhora noticiada nos autos, do atendimento dos impostos incidentes, da origem da execução em que penhorada a área, de sua produção e outros itens ainda não examinados ou, pelo menos, não passíveis de exame liminar.

Anoto, ao final, que a questão é eminentemente política, de há muito se verificando a omissão, na solução da questão agrária, das autoridades do Executivo, postura esta extremamente cômoda, na medida em que os particulares atingidos por atos desta natureza, por si, providenciam na defesa de sua posse ou propriedade através da demanda judicial própria.

E a isto, o Judiciário tem servido, infelizmente, atribuindo foro de mera questão jurídica, a um dilema político de alta importância, e que as autoridades do Executivo se furtam, esquecem ou não querem resolver. Esta postura, todavia, cessa aqui.

Com estas considerações acompanho integralmente o Desembargador Guinther e dou provimento também ao agravo, para desconstituir a liminar concedida em primeiro grau, e determinar dilação probatória sobre estes temas que dizem diretamente com a função social da área cuja posse se discute."

Em sede de agravo, sob o número 598.360.402, vistos, relatados e discutidos os autos. Acordaram, na Décima Nona Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, por maioria, conhecer do recurso, vencida a Presidente-Relatora que não o conhecia: à unanimidade, rejeitaram a preliminar de deslocamento da competência. No mérito, por maioria, deram provimento ao agravo, vencida a Presidente/Relatora que o denegava.

Presidente e Relatora: Desemb.Elba Aparecida Nicolli Bastos

Participaram do julgamento: Desemb. Carlos Rafael dos Santos Jr. e Desemb. Guinter Spode, que foi o relator.

Doutora Cristina L. M. da Silva, Juíza da sentença.

Data da Sentença: 06/10/98.

Diante da singularidade do caso relatado, pensamos não ser possível aos juristas manterem-se presos às amarras da legislação, especialmente da processual que é apenas veículo para se chegar à melhor decisão. Por melhor decisão, deve-se entender, é óbvio, a mais justa.

Para se chegar ao justo, nem sempre podemos nos socorrer da legislação específica porque, quando estamos diante de princípios (ainda mais quando universais) de direito, se inverte aquela regra de hermenêutica, segundo a qual a lei especial derroga a geral. Ora, se é inquestionável do ponto de vista hermenêutico, que lei especial não derroga lei principiológica, os princípios fundamentais de direito, reconhecidos universalmente por óbvio, se sobrepõem a qualquer norma especial de direito interno.

Importante destacar que quando se trata do direito de propriedade, entre defender o valor individual e defender o valor social, o direito brasileiro fez uma opção clara: defendeu o valor social.

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Sobre a autora
Simone Flores de Oliveira

servidora pública federal, bacharelanda em Direito pela Faculdades Rio-Grandenses (FARGS)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

OLIVEIRA, Simone Flores. A função social da propriedade imóvel e o MST. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 880, 30 nov. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/7646. Acesso em: 24 dez. 2024.

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