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Ética e controle

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2 Ética no julgamento pelo controle

            A terceira inter-relação entre ética e controle diz respeito à aplicação de preceitos éticos como critério de julgamento.

            Os órgãos de controle têm uma função essencial na manutenção dos valores éticos de uma sociedade e podem alavancar a restauração dos mais nobres valores da cultura moral, inclusive servindo-se da indignação popular para colocá-la a serviço da dignidade.

            Nesse árido tema, mais do que em outros, a parcimônia e o equilíbrio de espírito se impõem.


3 Exemplo e ação pedagógica do controle

            Há um tipo específico de agentes sujeitos à ação do controle: agentes públicos ou particulares que, por lei ou contrato, passaram a ser responsáveis pela gestão de recursos públicos. São, pois, alvos permanentes da atenção do povo, mesmo onde a cultura da virtude não tem plena ressonância.

            E quel che fa il signore fanno poi molti, che nel signore son tutti gli occhi volti

.20

            A força do exemplo, do mau exemplo, foi considerada por Maquiavel, nessa oração apontada numa referência à conduta corrupta de Lorenzo de Medici. Para esse estudioso do poder, o pior de todos os pecados seria a corrupção dos governantes pelo mau exemplo que dão à sociedade.

            É nesse sentido que assere Montesquieu à expressão anteriormente citada: "A degradação moral já matou muitos Estados",21 revelando que a violação da ética pelos governantes é um mal da civilização e um mal contagiante.

            A corrupção não beneficia a todos, mas a todos afeta, porque a uns espolia e de outros retira a tranqüilidade e a qualidade de vida pela miséria que, expandindo-se, circunda a esfera dos que dela sobrevivem. É a vantagem de poucos sobre muitos. Por isso, mais cedo ou mais tarde, a civilização corrompida entra em crise. Já foi dito, e com muita propriedade, que "insurreições armadas só eclodem quando malogram os esforços da política, ou falta coragem aos juízes" e que "a derrubada das tiranias, o mais das vezes, exige o tributo do sangue. Governos corruptos caem acossados pela voz irada do povo, e, sempre, pela ação das leis onde há democracia e instrumentos institucionais."22

            Por esse motivo, ao zelar pela ética na gestão pública, em mero cumprimento ao dever, no Brasil, os Tribunais de Contas contribuem para a justiça, para o bem, para a paz social.

            A corrupção não mais pode ser considerada nos restritos campos da criminologia. Antes, é no campo da moral, da filosofia, da antropologia cultural, que deve ser analisada e compreendida para ser combatida.

            Não existe um corrupto isolado, mas uma societas sceleris.23 Quanto mais elevado o posicionamento social, econômico ou hierárquico do portador da doença - corrupção -, mais larga a amplitude do seu contágio, mais nefastos seus efeitos, mais miséria semeia.

            A experiência revela que as maiores expressões desse mal, os doentes mais enfermos, nem sempre se encontram entre os menos privilegiados pela sorte ou pela intelectualidade.

            Ao contrário, e por isso mesmo exige-se das estruturas de controle a percepção ética de que a busca da apenação é um dever inexorável da atividade.

            A postura pedagógica da ação do controle, tantas vezes enaltecida como finalidade mais nobre do controle, tem espaço, tempo e destinatário determinado. É possível sustentar que o efeito pedagógico também existe no combate à impunidade.

            A crença na capacidade do controle de orientar e do controlado de aprender é a percepção de que essa atividade — controle — constitui apenas uma etapa do processo decisório, a última que completa a ação, a primeira que redireciona os esforços. Por isso, a punição somente se evita quando ausente a má-fé, sendo possível e factível uma mudança. O ethos que aponta o caminho do bem; o controlador que tem motivo para ter esperança; o controlado com a vontade do aprimoramento; cada qual, a seu modo, com a percepção do

            interesse público e da sua menor dimensão frente ao todo.

            Mas há também a pedagogia do castigo, da punição. Aqui, um estreito caminho entre a possibilidade de resgatar a credibilidade de todos, pela punição dos que a merecem, ou o equívoco de aceitar o clamor público e satisfazê-lo, contribuindo para uma vingança coletiva.

            Se o controle tem o dever de prestar contas à sociedade, não é menos certo que deva julgar pela serenidade, de forma eqüidistante das paixões e sem medo de reprimendas quando efetiva a Justiça, mesmo que a muitos contrarie. Mahatma Ghandi ensina que na aplicação do "olho por olho" todos acabarão cegos, numa alusão ao resultado prático da vingança.

            É preciso, porém, não ignorar que a indignação da comunidade deve servir aos propósitos de restaurar a dignidade, o ethos coletivo.

            A proposta de aplicação da ética ao controle deve repousar em vertentes que compõem um mesmo todo. O rigor competente na apuração, a firmeza e a adequada fundamentação da acusação, a serenidade na garantia da defesa, o equilíbrio, a maturidade e a sabedoria no julgamento e a precisão na dosimetria da pena. Que tanto sirva ela como castigo que pelo exemplo educa a todos, quanto não sirva de instrumento de vingança destrutiva.

            Esse ciclo vital de controle, porém, resta absolutamente vazio de significado quando não se efetiva opportunus tempore. O tempo é serventia crucial da estratégia: tempo é prazo e oportunidade. Renato Jorge Brown Ribeiro revela que, em pesquisa promovida pelo Tribunal de Contas da União, "o problema da tempestividade é considerado crucial" pelos pesquisados.24

            Ética também pressupõe ajustamento entre o idealizado e o concreto. Pressupõe conhecimento da raiz, da causa, da origem, porque só pelos efeitos não se julga com sabedoria. Calheiros Bonfim assinala que "acossado pela fome, o homem sobrepõe o instinto de sobrevivência à razão, não respeita leis, costumes, moral, nem se detém diante de obstáculos materiais".25 Guardadas as devidas proporções, não se evidencia Justiça quando a apenação dirige-se para os que, submetidos a um esforço invencível e irrecusável, administraram com o que tinham, vivenciaram a carência dos organismos públicos mais pobres, sobrelevaram o espírito para fazer frente às necessidades da comunidade e do princípio da continuidade do serviço público. Não se podem julgar todas as conseqüências de fatos iguais pela mesma pena, quando lhe estão subjacentes causas diferentes. É preciso não se deixar seduzir pela igualdade dos resultados quando a semelhança desaparece pela investigação prudente. Essa é a forma de vivificar a Justiça muito mais do que com o emprego da estrita legalidade, que no plano ocidental valoriza efeitos antes do contexto. O éthos iter para tutum,26 flexível para percorrer com sabedoria e impor com rigor, até extremo rigor, que considera boa-fé e honestidade pressupostos da gestão pública e não qualidades excludentes de responsabilidade, que guia um combate efetivo e sem tréguas pela virtude, ao mesmo tempo em que pode esculpir em monólitos o caminho da Justiça que consome esforço e energia para o bem, permitindo que seja admitido descumprir a lei por desconhecimento, que uma falha estrutural27 possa ser invencível ao esforço humano.

            Por mais cépticos que se oponham a essa aquarela, no sentido de que é o controle a porta mais eficaz para a reconstrução das virtudes e da ética, é fato inconteste que existe um poderoso instrumental jurídico à espera de bons operadores do direito, considerado este complementado com a moral, com capacidade para fazer desta última baluarte e critério de julgamento.

            Essa é a virtude da coragem de julgamento, que cala canhões, ressuscita a Justiça, ensina pelo exemplo, orienta pela oportunidade, abate a letargia, vivifica a temperança e resgata, na crise, o caminho do bem.


Notas

            1 Na relação entre moral e direito, aproveitando a lição de Paulo Dourado de Gusmão podemos distinguir, de forma muito singela, para fins acadêmicos, uma ampla corrente de pensamentos com seus extremos e uma infinidade de matizes: — os que reconhecem uma influência mínima da ética sobre o direito, como Jellinek e Wundt; — os que, no outro extremo, pecam pelo excesso, considerando como a moral sancionada pelo poder público, ou como a moral codificada, na perspectiva de Maggiore, ou como o máximo ético, no pensamento de Schmoller. GUSMÃO, Paulo Dourado de. 4. ed. Filosofia do Direito. Rio de Janeiro: Forense, 1998, p. 63. Mais recentemente, entre outros, Jürgen Habermas ocupou-se de resolver a intricada questão de em que sentido e de que maneira podem ser fundamentados os mandamentos e normas morais. HABERMAS, Jürgen. Consciência Moral e Agir Comunicativo. Trad. Guido A. de Almeida. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1989, p. 78.

            2 Ruppert assinala que entre a regra jurídica e a moral não há diferença de domínio, de natureza e de fim. Aliás não pode mesmo haver "porque direito deve realizar a Justiça e a idéia de justo é uma idéia moral". Exemplifica a íntima relação com as obrigações do direito civil, como a teoria contratual que nega proteção ao sujeito que agiu de má-fé, com malícia ou fraude; com o princípio do enriquecimento sem causa, e outros. Na doutrina pátria, encontram-se iguais representantes como Washington de Barros Monteiro, Sílvio Rodrigues e Pontes de Miranda.

            3 BRASIL. Decreto nº 1.171, de 22 de junho de 1994. Aprova o Código de Ética Profissional do Servidor Público Civil do Poder Executivo Federal. Diário Oficial da União, Poder Executivo, Brasília, DF, 23 jun. 1994.

            4 FERNANDES, Jorge Ulisses Jacoby: Julgar além da Lei. Correio Braziliense, 14 maio 1997. Suplemento de Direito e Justiça, p. 4; Revista do Tribunal de Contas do Estado de Minas Gerais, n. 3, p. 75/81; Revista do Tribunal de Contas do Estado do Rio Grande do Sul, ano XV, n. 27, 2º semestre de 1997, p. 251/253; Informativo Notícias, Tribunal de Contas do Estado de Goiás, 1998, m. 03/98, ano IV, n. 17, 1998, p. 4-5.

            5 FERNANDES, Jorge Ulisses Jacoby. Tomada de Contas Especial. 2. ed. Brasília: Brasília Jurídica, 1998, p. 333 e 358.

            6 ALENCAR, Ana Valderez A. N.; CERQUEIRA, Laudicene de Paula de. Constituição do Brasil e Constituições Estrangeiras/textos, Índice Temático Comparativo. Brasília: Senado Federal, Subsecretaria de Edições Técnicas, 1987, v. 1, p. 170, art. 114.

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            7 BRASIL. Portaria nº 44, de 20 de fevereiro de 2001. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 21 fev. 2001, p. 13.

            8 FERREIRA Filho, Manoel Gonçalves. Comentários à Constituição Brasileira de 1988. 2. ed. atual. e rev. São Paulo: Saraiva, 1992, 1. v.

            9 GUIMARÃES, Fernando Augusto Mello. Julgamento das Contas Anuais pelo Tribunal de Contas. Revista do Tribunal de Contas do Estado do Paraná, v. 117, jan./mar. 1996, p. 71-91.

            10 VILAÇA, Marcos Vinícios: Contas Públicas e Descentralização. Jornal do Brasil, 30 maio 1988.

            11 CRETELLA Jr., José. Dos Atos Administrativos Especiais. Rio de Janeiro: Forense, 1995, p. 488.

            12 MARINHO, Josaphat: Ética e Justiça; PINHEIRO, Pe. José Ernane et al. Reflexões sobre a Reforma do Judiciário. Petrópolis: Vozes, 1996, p. 125-132.

            13 ARISTÓTELES: Ética Nic., X, cap. 6-9 apud VAZ, Henrique C. de Lima: Ética e Justiça: Filosofia do Agir Humano; PINHEIRO, Pe. José Ernane et al. Ética, Justiça e Direito Reflexões sobre a Reforma do Judiciário. Petrópolis: Vozes, 1996, p. 19-40.

            14 No mesmo sentido, com o uso de outras expressões: MEDAUAR, Odete. Controle da Administração Pública pelo Tribunal de Contas. Revista de Informação Legislativa, Brasília, ano 27, n. 108, out./dez. 1990, p. 18-19.

            15 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 9. ed. São Paulo: Malheiros, 1997. Grifos do original.

            16 GASPARINI, Diogenes. Direito Administrativo. 6. ed. rev., atual. e aumentada. São Paulo: Saraiva, 1995, p. 9.

            17 KLITGAARD, Robert. Controlando la Corrupción - una Indagación Práctica para el Gran Problema Social de Fin de Siglo. Traducción de Emilio M. Sierra Ochoa. Buenos Aires: Sudamericana, 1994.

            18 Apud SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 9. ed., 2. tiragem. São Paulo: Malheiros, 1993, p. 371.

            19 ARAÚJO, Marcos Valério. Como Controlar o Estado: Reflexões e Propostas sobre o Controle Externo nas Américas, Portugal e Espanha. Brasília: UNITEC, 1992, p. 22.

            20 Em vernáculo: Aquilo que fazes, fazem também os outros, depois de ti, porque sobre o senhor todos os olhos se voltam.

            21 MONTESQUIEU. Grandeza e Decadência dos Romanos. Trad. Gílson César Cardoso de Sousa. Ed. Paumape, apud AMARAL, Luiz Otávio O. Endemia Nacional Corrupção Generalizada. Revista Jurídica Consulex, Brasília, ano III, v. I, n. 33, 30 set. 1999, p. 26-29.

            22 Na apresentação do Relatório Final da Comissão Parlamentar de Inquérito, criada pelo Requerimento n° 151/93-CN, destinada a apurar os fatos contidos nas denúncias do Sr. José Carlos Alves dos Santos, referente às atividades de parlamentares, membros do governo e representantes de empresas envolvidas na destinação de recursos do Orçamento da União.

            23 Sociedade de celerados (fins criminosos).

            24 RIBEIRO, Renato Jorge Brown. Controle Externo da Administração Pública Federal no Brasil: O Tribunal de Contas da União - uma Análise Jurídicoadministrativa. Rio de Janeiro: América Jurídica, 2002, p. 98.

            25 BONFIM, B. Calheiros. Pensamentos Selecionados. 2. ed. Rio de Janeiro: Destaque, p. 108.

            26 Em vernáculo: prepara o caminho seguro.

            27 Consultar no Capítulo IV, que trata da Defesa nos Tribunais de Contas, o subtítulo 5.3.4.: falhas estruturais.

            Jorge Ulisses Jacoby Fernandes - Mestre em Direito Público. Professor de Direito Administrativo. Conferencista. Autor de várias obras na área de Direito Administrativo, entre as quais Tribunais de Contas do Brasil - Jurisdição e Competência, a obra mais completa sobre Tribunais de Contas escrita em língua portuguesa, e o Vade-Mécum de Licitações e Contratos Administrativos Publicação: Editora Fórum, Revista Fórum Administrativo de Direito Público, Belo Horizonte, MG, ano 5. nº 55, setembro de 2005.

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Sobre o autor
Jorge Ulisses Jacoby Fernandes

É professor de Direito Administrativo, mestre em Direito Público e advogado. Consultor cadastrado no Banco Mundial. Foi advogado e administrador postal na ECT; Juiz do Trabalho no TRT 10ª Região, Procurador, Procurador-Geral do Ministério Público e Conselheiro no TCDF.Autor de 13 livros e 6 coletâneas de leis. Tem mais de 8.000 horas de cursos ministrados nas áreas de controle. É membro vitalício da Academia Brasileira de Ciências, Artes, História e Literatura, como acadêmico efetivo imortal em ciências jurídicas, ocupando a cadeira nº 7, cujo patrono é Hely Lopes Meirelles.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FERNANDES, Jorge Ulisses Jacoby. Ética e controle. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 893, 13 dez. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/7695. Acesso em: 19 abr. 2024.

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