A reforma da previdência pode ser considerada inconstitucional?

05/10/2019 às 08:54
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Neste artigo analisamos os posicionamentos daqueles que sustentam a tese de que a PEC da Reforma da Previdência deve ser considerada inconstitucional e também daqueles que entendem que ela não macula os fundamentos da Constituição.

I) Conceito de Constituição

A Constituição é a norma suprema de um Estado. Quer dizer que ela regula o funcionamento dos próprios Poderes (Legislativo, Executivo e Judiciário), delimita as funções de cada um deles, define os fundamentos e objetivos principais da sociedade, estabelece direitos e garantias fundamentais e direitos sociais, dispõe sobre o exercício da cidadania e da democracia, traz regras gerais sobre tributação e seguridade social, entre tantos outros temas, como acontece na Constituição brasileira de 1988.

Além de tratar da estrutura do próprio Estado e de trazer garantias de proteção contra o abuso autoritário, a Constituição também “tem por alvo criar bases para a convivência livre e digna de todas as pessoas, em um ambiente de respeito e consideração recíprocos. Isso reconfigura o Estado, somando-lhe às funções tradicionais as de agente intervencionista e de prestador de serviços.”[1]

II) Como surge uma Constituição?

Quando o povo de determinada sociedade, de maneira democrática, entende ser o momento de mudanças estruturais do Estado, através de uma ruptura com a velha ordem jurídica e da criação de um novo modelo de política e governança, dá-se a formação de uma assembleia constituinte, formada por representantes desse povo, a quem caberá a incumbência de elaborar a Lei Maior desse Estado.

Esse novo poder surgido a partir da vontade do povo da nação é onipotente, livre para criar um ordenamento da maneira que lhe apraz, já que possui o atributo da soberania para dispor sobre o próprio destino.

É importante destacar que essa vontade não pode ser oriunda de uma dinastia ou de uma ditadura. Não se confunde esse poder ao qual nos referimos com a outorga de uma Constituição por um indivíduo ou uma classe através da imposição de vontade e poder.

A esse novo poder emanado do povo dá-se o nome de Poder Constituinte Originário, do qual a doutrina majoritária extrai três atributos básicos:

I – Originalidade: dá origem ao ordenamento jurídico, cria um novo universo de normas voltadas a reger o funcionamento do Estado.

II – Autonomia: O novo ordenamento jurídico não sofre limitações por parte do regime antigo. Ele é livre para dispor sobre o novo funcionamento do Estado de acordo com a vontade soberana emanada do povo.

III – Insubordinação a condições anteriores: se o novo Direito é original e autônomo, logo ele não sofre restrições pelo sistema antigo. Por conseguinte, ele não fica condicionado a disposições anteriores.

Vale destacar que esse caráter autônomo ou ilimitado, explicado no item II, não é absoluto em todos os sentidos. No que diz respeito à ruptura com a ordem antiga e a elaboração de normas congruentes com as novas diretrizes do povo, pode-se afirmar que sim. Já em relação aos traços culturais e políticos da nação, o poder constituinte deve respeito a esses valores mais profundos, sob pena de desvirtuar o caráter democrático da assembleia constituinte, fazendo com que as pessoas eleitas para elaborar uma nova Constituição passem de representantes do povo a revolucionários ou golpistas. Portanto, é imprescindível que o poder constituinte originário esteja alicerçado nos ideais de justiça do povo.

III) Poder Constituinte Reformador

Prevendo mudanças nos cenários políticos, sociais e econômicos, a própria constituição estabeleceu um rito para que ela fosse modificada com o passar do tempo, a fim ser atualizada e não permanecer engessada nos seus próprios termos. A esse procedimento, dá-se o nome de Emenda à Constituição.

Aqueles estabelecidos pela Constituição como legitimados a elaborarem uma proposta de emenda à constituição (art. 60, incisos I, II e III) e o Congresso Nacional, responsável pela votação e promulgação da emenda (art. 60, §§ 2º e 3º), são considerados como Poder Constituinte Derivado ou de Reforma.

A Constituição de 1988 é considerada rígida pelo fato de trazer um procedimento especial de aprovação de uma Proposta de Emenda à Constituição, mais exigente do ponto de vista procedimental e de quórum quando comparado às demais espécies normativas. Ademais, ela prevê um núcleo de matérias que não podem ser objeto de modificação, as chamadas cláusulas pétreas.

Ao contrário do poder originário, o poder constituinte derivado não possui aqueles atributos mencionados no tópico acima, mas fica subordinado aos mandamentos daquele poder quanto às formalidades a serem seguidos no processo legislativo e às matérias que podem ser objeto de emenda constitucional.

Assim, para que uma proposta de emenda à constituição seja promulgada, é necessário que ela seja aprovada:

- Na Câmara dos Deputados e no Senado Federal;

- Em dois turnos de votação;

- Por 3/5 dos votos dos respectivos membros.

Já em relação às matérias, a Constituição determina que não serão objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir (art. 60, § 4º):

I - a forma federativa de Estado;

II - o voto direto, secreto, universal e periódico;

III - a separação dos Poderes;

IV - os direitos e garantias individuais.

Essas são as chamadas cláusulas pétreas. Agora entramos no ponto central deste artigo. Muitos dizem que a PEC 06/2019, ou PEC da Reforma da Previdência, é inconstitucional por ferir direitos e garantias individuais.

Será que o art. 60, § 4º, inciso IV deve ser interpretado literalmente? Ou quis o constituinte originário estender o alcance dos direitos e garantias individuais também para o rol dos direitos sociais?

IV) Cláusulas pétreas: posicionamentos favoráveis e críticas

Como comentamos acima, a emenda constitucional visa à adaptação da Constituição a novos cenários políticos, sociais e econômicos. Nesse sentido, o constituinte originário pretende manter um núcleo axiológico essencial da Constituição perene, imune de ser alterado, temendo que sua alteração acabe por ruir a pedra angular do sistema jurídico criado.

Mas aí entra o questionamento: se tanto o poder originário quanto o derivado emanam da soberania do povo, por que uma geração pode se sobrepor à outra? Qual a justificativa de se banir a revisão de valores, pelo surgimento de um novo consenso, pelas gerações futuras?

Uma vertente prega que o poder constituinte originário é a expressão máxima de vontade do povo até mesmo para restringir a vontade dos seus representantes enquanto em vigor a constituição promulgada. Assim, por ser o constituinte originário superior, ilimitado e incondicionado, ele detém o poder para dominar e limitar os demais poderes, inclusive o poder constituinte derivado.

Mas isso não quer dizer que as gerações futuras ficarão de mãos atadas e completamente submissas à mesma ordem constitucional. Como vimos anteriormente, caso o povo entenda que a ruptura com a velha ordem seja mais adequada, nada impede que seja convocada nova assembleia constituinte com poderes originários para fundar um novo ordenamento jurídico.

Outros defendem que é possível ao poder constituinte derivado revogar a própria norma que prevê as cláusulas pétreas, num mecanismo chamado de “dupla revisão”. Com isso, a Constituição perde esse núcleo pétreo.

Os críticos desse posicionamento argumentam que, se essa estratégia for considerada válida, perde-se a própria essência da constituição. Se o constituinte originário prevê a imutabilidade de certas questões justamente por entender que algumas matérias constituem a pedra angular não só do sistema jurídico, mas sobretudo dos valores primordiais da nação, a abolição desses valores devem ser considerados como desvio de poder do constituinte derivado.

“Se o poder de revisão se liberta totalmente da Constituição teremos uma Constituição nova, o poder de revisão ter-se-á arrogado, então, a condição de poder constituinte originário. Na faculdade de reformar a Constituição não se inclui a de dar uma nova Constituição ao Estado. Em nenhum caso, já registrava Carl Schmitt, a reforma pode afetar a continuidade e a identidade da Constituição.”{C}[2]

Logo, a existência das cláusulas pétreas, por si só, constituem um desses núcleos fundamentais da Constituição promulgada pela vontade soberana do povo, através de seus representantes.

A doutrina majoritária entende que meras modificações textuais de uma norma contida no rol das cláusulas pétreas não é capaz de violar o mandamento constitucional. Para essa vertente, o que importa analisar é se o núcleo axiológico ou os princípios fundamentais daquela norma não está sendo hostilizado.

V) Afinal, é possível considerar que a PEC 06/2019 seja inconstitucional?

No tópico acima vimos alguns posicionamentos sobre a existência das cláusulas pétreas: o que dizem os seus defensores e as opiniões dos críticos. Agora, vamos nos deter especificamente sobre a PEC 06/2019 à luz de todo o debate trazido neste artigo.

Os direitos e garantias fundamentais classificam-se, principalmente, em direitos de primeira geração, segunda geração e terceira geração. Para o objetivo deste artigo, abordaremos apenas os dois primeiros.

Os direitos de primeira geração são aqueles voltados para defender o indivíduo da ação autoritária e abusiva do Estado. Já as garantias são os remédios constitucionais voltados a efetivar essa defesa na prática. Neles estão elencados os direitos e garantias individuais. Como exemplos clássicos, podemos citar a vedação à tortura, a tratamento desumano ou degradante, a liberdade de manifestação do pensamento, a liberdade de crença e de exercício de culto, a proibição de penas de caráter perpétuo, entre outros.

Já nos direitos de segunda geração, os indivíduos possuem o direito a prestações. Neste caso, o Estado deve agir de modo a garantir o bem estar social e a atenuar desigualdades. A ação do Estado deve pautar-se para livrar os seus subordinados das necessidades. Nessa classe entram os chamados direitos sociais, cujos principais exemplos podemos encontrar no art. 6º (direito à educação, à saúde, ao trabalho, à moradia, ao transporte, ao lazer, à segurança, à previdência social, à proteção à maternidade, à infância e o direito dos desamparados à assistência), no art. 208, IV (direito à educação infantil), entre outros.

Os direitos sociais são muitas vezes condicionados à situação econômica do país, de modo que criou-se na doutrina o entendimento segundo o qual estão submetidos à reserva do possível. Ou seja, serão concretizados conforme as disponibilidades materiais do Estado.

Não se pode negar que há uma certa incidência de normas de defesa nos direitos sociais, visto que passa a se exigir do Estado a não adoção de políticas contrárias ao que proclamam esses direitos. Vale apontar, ainda, que doutrinadores apontam a existência da cláusula de vedação ao retrocesso. No entanto, é difícil imaginar uma atuação do Judiciário nesse cenário, salvo nos casos de omissões flagrantes.

Na redação do art. 60, § 4º, IV, a Lei Maior dispõe que não será objeto de deliberação proposta de emenda tendente a abolir “os direitos e garantias individuais”.

Parte da doutrina entende que os direitos sociais não entram no rol das cláusulas pétreas, já que o constituinte originário fez a distinção da espécie direitos e garantias individuais dentro do gênero dos direitos e garantias fundamentais. Alegam que o constituinte atentou-se no aspecto técnico da terminologia, bem como foi perspicaz em sua análise, uma vez que os direitos a prestação dependem de inúmeros fatores, de modo a não poderem ser cravados como imodificáveis.

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Outros doutrinadores advogam a tese de que, sendo a dignidade da pessoa humana um dos fundamentos da República (art. 1º, I), a qual aborda também o valor social do trabalho, a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, a erradicação da pobreza e da marginalização e a redução das desigualdades sociais.

Eles argumentam que, como o constituinte originário tratou os princípios fundamentais como pedra angular do arcabouço jurídico e situou os direitos sociais como base dessa construção, os direitos sociais não podem deixar de ser considerados como cláusulas pétreas.

“No inciso IV do § 4º do art. 60, o constituinte terá dito menos do que queria, terá havido uma ‘lacuna de formulação’, devendo-se ali ler os direitos sociais, ao lado dos direitos e garantias individuais. A objeção de que os direitos sociais estão submetidos a contingências financeiras não impede que se considere que a cláusula pétrea alcança a eficácia mínima desses direitos.”[3]

Para aqueles que advogam o segundo entendimento, a Reforma é inconstitucional, pois afronta postulados e princípios fundamentais estabelecidos pelo constituinte originário, que elegeu os direitos sociais entre os valores principais de todo o ordenamento jurídico pátrio.

Há flagrante retrocesso entre as normas estabelecidas, principalmente nos temas dos novos cálculos de benefícios, da exigência de tempo de contribuição e idade mais avançada para a aposentadoria dos professores, da extinção da periculosidade como elemento caracterizador da aposentadoria especial, da vedação de conversão favorável de tempo especial para comum em relação a tempo de serviço prestado a partir da data de promulgação da emenda, da redução drástica do valor do benefício de pensão por morte, entre outros.

VI) CONCLUSÃO

Vimos que o constituinte originário possui ampla liberdade para eleger o destino, os fundamentos, objetivos e principais valores da nação. Esse poder ainda dispõe da faculdade de estabelecer valores que não podem ser extintos ou suprimidos pelo poder constituinte reformador ou derivado, as chamadas cláusulas pétreas, como aconteceu na Constituição Brasileira. Em relação aos direitos sociais, a doutrina fica dividida entre a eleição, por parte do constituinte originário, da categoria dos direitos sociais entre o rol desses postulados imodificáveis.

Aqueles que interpretam o art. 60, § 4º, IV da CF de maneira literal advogam a tese de que o constituinte originário foi bastante técnico ao restringir a hipótese apenas para os direitos e garantias individuais, de modo a excluir expressamente os direitos sociais desse rol. Logo, prevendo oscilações econômicas do Estado, mudanças sociais, avanços científicos e tecnológicos, o constituinte originário entendeu por bem conferir ampla discricionariedade ao poder reformador para dispor sobre os direitos sociais da maneira mais adequada a cada geração.

Já aqueles que advogam uma interpretação teleológica da norma entendem que o constituinte originário disse menos do que queria dizer, pelo fato de ter incluído os direitos sociais, o valor social do trabalho, a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, a erradicação da pobreza e da marginalização, a redução das desigualdades sociais e a busca pelo bem estar social como fundamentos da República. Portanto, esses direitos entram na categoria de cláusulas pétreas e sua supressão esbarra no postulado da vedação do retrocesso.

É bem provável que a ala de oposição proporá ADI contra a Reforma da Previdência, do mesmo modo como já vimos em outras ocasiões. Casos mais emblemáticos que podem ser citados como exemplo são a EC 3/93, a EC 19/98, a EC 20/98, a EC 41/03, a EC 45/04 e a EC 62/09.

Resta-nos aguardar para vermos os próximos capítulos da Reforma, bem como o entendimento do Supremo Tribunal Federal caso a PEC seja impugnada via ADI.

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{C}[1] MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de direito constitucional. 13. ed. São Paulo: Saraiva, 2018. p. 56

{C}[2] Id. Ibid. p. 121

{C}[3] Id. Ibid. p. 128

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