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A defesa e o contencioso administrativo

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14/12/2005 às 00:00
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7- PROCESSO ADMINISTRATIVO TRIBUTÁRIO

Também para apuração da receita tributária há uma série de atos administrativos concatenados com este escopo, em cujo desenvolvimento deve estar presente a ampla possibilidade de questionamento pelo administrado.

No processo administrativo tributário também é possível uma autuação, precedendo o lançamento de ofício. Quando esta autuação se dá diante de veículos com mercadorias, há uma praxe generalizada de proceder-se à notificação do lançamento simultaneamente, na pessoa do motorista ou preposto, ou seja, há notificação da autuação e simultaneamente para apresentação de defesa em relação ao lançamento que advirá desta autuação.

Duas questões se colocam: Há necessidade de defesa em relação à autuação, ou semente pode ser apresentada em relação ao lançamento? É viável a notificação em preposto no momento da autuação para apresentação de defesa em relação ao lançamento?

A autuação corresponde à denominada fase não contenciosa, e não enseja, em linha de princípio, a apresentação de defesa prévia ao lançamento, o que não exime a cientificação, se possível pessoalmente, do autuado. Trata-se de ato de simples constatação de uma situação onde é apurado fato gerador e/ou descumprimento da legislação tributária, com indicação do responsabilizado. Os fatos que legitimam a imposição tributária são registrados e remetidos à autoridade a quem cabe constituir o respectivo crédito.

Diversamente, em relação ao lançamento há menção expressa de que deve haver notificação posterior, e há possibilidade de apresentação de defesa. Tal é o que se depreende do artigo 145, caput, e incisos I e II, do CTN. Embora existam precedentes entendendo coincidir o lançamento com a autuação [12], enquanto não se opera a notificação, não se perfectibiliza o lançamento, sendo ele ainda ineficaz perante o contribuinte ou responsável.

E o lançamento in fieri, do qual ocorre notificação para apresentação de defesa em preposto? A notificação em preposto encontra respaldo legal, no caso do Rio Grande do Sul, no art. 21, Lei Estadual nº. 6537/73, e art. 348 do RICMS. A questão da notificação do preposto, no caso do ICMS, normalmente do motorista, acerca do prazo de defesa relativo a lançamento que decorrerá da atuação suscita divergência jurisprudencial, havendo uma sensível tendência a considerar-se irregular esta forma de notificação.

No julgamento da Apelação Cível nº 70009429184, Vigésima Segunda Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relatora Des. Rejane Maria Dias de Castro Bins [13], assentou-se que: "A assinatura do motorista que transporta a mercadoria no Termo de Infração no Trânsito, onde consta a advertência de notificação, não supre a necessidade de regular notificação da empresa executada, quando do Auto de Lançamento, momento em que efetivamente se constitui o crédito tributário. Trata-se de notificação de Auto de Lançamento que sequer existe, podendo, inclusive, não vir a existir".

Já na ementa do Agravo de Instrumento Nº 70003691912, Segunda Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator Des. Túlio de Oliveira Martins [14], concluiu-se da seguinte forma: "Direito tributário. Execução fiscal. Exceção de pré-executividade. É regular a notificação da infração de trânsito de mercadorias relativamente ao ICMS, na pessoa do motorista da carga autuada. Legalidade do lançamento. Questão de mérito".

Por fim, em uma posição intermediária observa-se a Apelação Cível Nº 70008430019, Vigésima Segunda Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator Des. Augusto Otávio Stern [15], em cuja ementa consta "Tributário e fiscal. ICMS. Certidão de dívida ativa. Alegação de nulidade por ausência de notificação do contribuinte. 1- Notificação do motorista. Legalidade. Identificação do sujeito passivo nos termos de apreensão. 2- Apresentação de defesa administrativa por parte da empresa proprietária da carga, denotando a ciência da transportadora acerca da infração. Ausência de prejuízo à ampla defesa e ao contraditório. Sentença de procedência dos embargos. Apelo do Estado provido"

A meu juízo a questão deve ser analisada, como de resto em qualquer análise de norma procedimental, através da perspectiva instrumentalista e tendo em mira a presença do prejuízo

Nesta ordem de idéias, demonstrado que houve inequívoca ciência do contribuinte ou responsabilizado, não se há falar em nulidade. E vou adiante, para afirmar que a apresentação ou não da defesa administrativa não é o fator decisivo. A partir do ponto em que a presença de uma apresentação efetiva de defesa administrativa for tomada como fator decisivo para aquilatar-se a ciência do autuado ou responsabilizado, uma vez que ela não foi apresentada restará a questão de saber se esta ausência se deve a real desconhecimento ou a intencional omissão.

De fato, se apresentando defesa administrativa demonstrará inequívoca ciência, afastando cabalmente o prejuízo e, portanto, a nulidade, porque o autuado o faria, se deixando de apresentar defesa administrativa estará assegurando a anulação judicial do procedimento?

Para que valer-se de uma atuação administrativa que muito provavelmente lhe será desfavorável e que não é definitiva se repelida, se não o fazendo assegura uma solução definitiva (judicial) que lhe é favorável?

Mas como saber se efetivamente houve ciência? Isso somente ocorre quando o próprio autuado ou responsável é notificado, o que não suscita dificuldade. Esta reside na hipótese do preposto, que é a que tratamos.

Parece-me que a solução da questão perpassa por se aferir a relação do receptor da notificação com o autuado. Se estamos diante de uma situação em que a pessoa que recebe a notificação tem uma relação direta com o autuado, se é, por exemplo, motorista da empresa autuada, há de se presumir, iuris tantum, que houve ciência da notificação, pois é de se esperar que o funcionário ou empregado a leve ao conhecimento de seu empregador.

Ao revés, se o preposto trabalha ou tem relação com terceiro, ou seja, não tem relação direta com o autuado, caba ao fisco comprovar a ciência, pois aquele não está obrigado a levar ao conhecimento do autuado a notificação. Se o terceiro é transportador e o receptor é seu empregado, a notificação poderá valer em relação a ele, mas não aos demais.

Toda esta série de questões pode, porém, ser facilmente contornada com um simples ato do fisco: sempre remeter uma notificação, mesmo que via correio, após o lançamento. Evita-se, assim, com providência simples, enorme quantidade de demandas e impugnações formais.


8- PROCESSO ADMINISTRATIVO DISCIPLINAR

Cada esfera administrativa normalmente tem sua legislação própria a respeito do tema, comumente inserida nos estatutos dos servidores. Na esfera federal, no entanto, a Lei nº 9.784/99 regula a matéria, sem prejuízo dos procedimentos específicos, conforme ressalva o artigo 69 do mencionado diploma.

Como cada uma das esferas administrativas, e mesmo cada ente podem ter suas leis específicas, faremos uma análise da lei federal, que também serve de paradigma para as legislações estaduais e municipais, com especial atenção ao direito de defesa.

Logo no artigo 2º da Lei nº 9.784/99, que trata dos direitos do administrado, os lineamentos do direito de defesa começam a se apresentar nos incisos I, VII, VIII e X. O inciso I impõe à Administração uma atuação conforme e lei e o Direito, o que eqüivale a submeter o processo administrativo aos primados da legalidade (artigo 37, caput, da CF/88) e do devido processo legal (inciso LIV, do artigo 5º da CF/88).

O inciso VII menciona a necessidade de "indicação dos pressupostos de fato e de direito que determinaram a decisão", refletindo o artigo 93, inciso IX, da CF/88. O princípio da fundamentação das decisões administrativas e judiciais é, a meu ver, muito negligenciado no direito brasileiro.

A fundamentação das decisões é o principal mecanismo para assegurar a observância de todos os demais princípios. É a indicação dos pressupostos fático-jurídicos que alicerçam a decisão, dentre aqueles legítimos, que permite a certeza de que a ampla defesa e o contraditório, observados (ou não) no decurso do feito, efetivamente terão influência na decisão.

De que adianta permitir que a parte produza provas, tenha amplo acesso aos autos e formule todas as alegações que entender pertinentes se ao fim e ao cabo a decisão puder desconsiderar tudo, guiando-se pelo subjetivismo?

Na medida em que o decisor tem de indicar os fundamentos de fato e de direito, passa a ser possível aferição acerca de ser ou não a decisão uma hipótese válida diante do arcabouço probatório produzido dentro das regras processuais e dos princípios do contraditório e, ampla defesa, garantindo-se, ainda, a impessoalidade (artigo 37, caput, da CF/88).

A livre convicção motivada adstrita ao material constante dos autos se não garante de forma absoluta a imparcialidade, pelo menos a limita a possibilidade do inverso, da parcialidade, e garante que a ampla defesa e o contraditório se reflitam na decisão. Estes, sem a motivação das decisões, podem não passar de meras formalidades. [16]

O inciso VIII determina que sejam observadas as formalidades essenciais à garantia dos direitos dos administrados, dentre os quais figuram a ampla defesa e o contraditório. Observação de formalidades é devido processo legal.

O inciso X, de seu turno, traz especificação do conteúdo do devido processo legal administrativo que deve contemplar "garantia dos direitos à comunicação, à apresentação de alegações finais, à produção de provas e à interposição de recursos nos processo de que possa resultar sanções e nas situações de litígio".

Este dispositivo descortina uma fórmula mínima do que deve conter o processo administrativo em termos de garantias. A parte deve ter conhecimento de todos os atos relevantes, os quais lhe devem ser comunicados (artigos 3º, inciso II, e 26), com direito de acesso aos autos e retirada de cópias (artigo 3º, inciso II). Deve ter possibilidade de ampla produção de provas, respeitadas as limitações legais decorrentes do artigo 5º, inciso LVI, da CF/88, relativo às provas ilícitas, limitação também constante do artigo 30 da Lei nº 9.784/99. Deve, igualmente, ter acesso a todas as provas produzidas contra si.

Após a instrução, deverá ser assegurado o direito a apresentação de uma "alegação final", ou seja, uma manifestação sobre as acusações que lhe são imputadas ou alegações articuladas em seu prejuízo, na qual poderá, ainda, analisar a prova e juntar documentos (artigo 3º, inciso III).

Sobrevindo decisão, que deve ser motivada não somente por força de preceito constitucional, mas também por incidência do artigo 50, que enumera hipóteses [17], a qual deverá repostar-se ao material probatório carreado aos autos (artigo 38, § 1º), terá direito à interposição de recurso. O direito à revisão das decisões não é absoluto, havendo mesmo decisões judiciais impassíveis de impugnação. Mas o dispositivo cria o direito a pelo menos uma revisão no âmbito do processo administrativo federal. Em rega, o recurso é sempre dirigido a autoridade ou órgão diverso, mas pode, por exceção, ser direcionado a mesma autoridade ou órgão, ainda quando o objeto da impugnação não seja meramente esclarecer a decisão, mas sim propiciar nova análise do mérito.

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No caso da Lei nº 9.784/99, o recurso é para a própria autoridade, que poderá rever a decisão em cinco dias, remetendo a impugnação ao superior se não se retratar. A matéria vertida tanto pode ser formal como meritória.

Durante a tramitação do feito, a parte poderá fazer se acompanhar por advogado (artigo 3º, inciso IV). Fica assegurada além da defesa pessoal, a defesa técnica.

É interessante observar que as nulidades do processo administrativo disciplinar também são regidas pela instrumentalidade e o rito pelo informalismo. Não tem acolhimento, assim alegações de cunho puramente formal, como, por exemplo, a que fatos novos surgidos durante a investigação não podem ser investigados por não constarem da portaria ou aditamento. [18]


9-CONCLUSÕES

Em um Estado Democrático de Direito, o poder estatal tem de ser exercido sempre pela perspectiva da legitimidade, e esta se relaciona diretamente à institucionalização, ou seja, à aceitação e ao reconhecimento pelos seus destinatários.

O processo é fonte de legitimação, porque é fonte de participação democrática e fiscalização. É no processo que as garantias mínimas do cidadão podem ser efetivadas, impedindo o arbítrio e a ilegalidade, e isto se traduz na adoção de um devido processo legal, que deve ser entendido não só em seu sentido formal, de processo prévia e legalmente previsto.

Há que se buscar o devido processo legal em sentido material, onde as fórmulas e o rito permitam que os valores constitucionais permeiem a tramitação do feito.

Dentre estes valores estão a ampla defesa e o contraditório. O cidadão deve ter a possibilidade de interferir nos atos que venham a potencialmente lhe causar gravame, não somente para expor suas razões, mas para fiscalizar a impessoalidade, a legalidade e a razoabilidade que devem nortear a atuação do Estado.

E a norma procedimental deve estruturar-se também pela ótica do instrumentalismo, na certeza de que a forma não existe per se, senão que sempre visa resguardar um direito ou preceito.

É no equilíbrio entre os direitos e garantias individuais e o interesse público que o processo administrativo deve ser inteligentemente conduzido.

Lamentavelmente, o processo administrativo não grassa, no direito pátrio, a importância que deveria ter, inclusive como uma instância prévia à solução judicial, na qual muitos litígios poderiam ser dirimidos. Foi-lhe reservado um papel secundário.

Mas o processo administrativo deve ser analisado sob a ótica de uma teoria geral do processo, erigida sobre a constatação de que o processo construído com observância dos lineamentos constitucionais, tenha a natureza que tiver, sempre terá um núcleo intangível comum.

Muitas das soluções doutrinárias do processo judicial, civil ou penal, podem servir de sólida base para a aplicação do processo administrativo.

A meu ver, está na hora de revermos o papel do processo administrativo no direito brasileiro, até como um mecanismo a mais de celerização do processo judicial, pela redução do número de demandas judiciais, otimizando-se esta função, sem se olvidar aquela que, quiçá, é sua faceta mais importante: o direito de defesa. É na exposição e discussão das questões dos diversos ramos do processo administrativos que se inicia a condução desta reavaliação, que deve passar a ser uma preocupação ingente dos operadores jurídicos.

Certamente o processo administrativo muito pode contribuir para a legitimação do exercício do poder do Estado e para a consecução da justiça e do bem comum.


NOTAS

01 A respeito, ver o meu "O exaurimento da instância administrativa como condição para o interesse processual!", disponível sites http://www.jus.com.br, http://www.ufsm.br/direito e http://www.jurid.com.br, onde tratei da possibilidade de considerar-se a instância administrativa como condição para a presença do interesse processual, o que contraria a tradição nacional.

02 Ver o meu "Jurisdição, Ação e Processo à luz da processualística moderna: Para onde caminha o processo?" publicado na Revista Forense, nº 376, p. 145 e seguintes.

03 Em alguns casos a inquisitoriedade é necessária, como é o exemplo do inquérito policial. Mas estas são exceções.

04Direito Administrativo Brasileiro, 28ª edição, São Paulo Malheiros, 2003, p. 660.

05Curso de Direito Administrativo, 7ª edição, São Paulo, Malheiros, 1995, p. 300.

06Direito Administrativo, 12ª edição, São Atlas, 2000, p, 491.

07Teoria Geral do Processo, 13ª edição, São Paulo, Malheiros, p. 349.

08 Ovídio Baptista da Silva e Fábio Luiz Gomes, Teoria Geral do Processo Civil, São Paulo, RT, 1997, p. 230.

09 Fosse a instância administrativa valorizada efetivamente, diversa solução poderia ser concebida, com maior rigidez formal.

10 MEZZOMO, Marcelo Colombelli. A defesa prévia no processo administrativo de trânsito: feições e limites. Jus Navigandi, Teresina, a. 7, n. 65, mai. 2003. Disponível em: http://jus.com.br/artigos/4011.

11 Há servidores designados para efetuar este papel dentro de cada órgão autuante, seja federal, estadual ou municipal.

12 Ver apontamentos de Hugo de Brito Machado, Curso de Direito Tributário, 21ª edição, São Paulo, Malheiros, 2002, p. 154.

13 Julgado em 31/08/2004.

14 Julgamento em 11/12/2002.

15 Julgamento em 20/04/2004.

16 Não foi por outro motivo que em trabalho intitulado "Tribunal do Júri: Vamos acabar com esta idéia", disponível nos sites http://www.jus.com.br, http://www.ufsm.br/direito e http://www.jurid.com.br, defendi a tese de que o artigo 93, inciso IX, no que tange a fundamentação das decisões, deveria constar no rol dos direitos e garantias individuais, ao passo que o inciso XXXVIII do artigo da CF/88, por ser verdadeira regra de competência, deveria estar no capítulo do Poder Judiciário.

17 O §1º do artigo 50 da Lei de Processo Administrativo Federal admite que a decisão se reporte a pareceres, propostas ou decisões anteriores., mas estabelece como requisitos para qualquer motivação a clareza, a congruência e a explicitude.

18 Esta é uma alegação muito comum. Se a parte teve ciência das novas imputações e sobre elas pode produzir prova e alegações não há prejuízo, e não há, por conseguinte, prejuízo.

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Sobre o autor
Marcelo Colombelli Mezzomo

Ex-Juiz de Direito no Rio Grande do Sul. Professor.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MEZZOMO, Marcelo Colombelli. A defesa e o contencioso administrativo. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 894, 14 dez. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/7699. Acesso em: 19 mai. 2024.

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