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Direito Internacional Privado.

Parte Geral

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Resumo:


  • O Direito Internacional Privado (DIP) é o ramo da ciência jurídica que estabelece princípios e regras para determinar a lei aplicável às relações jurídico-privadas internacionais, assegurando o reconhecimento e a aplicação de situações jurídicas constituídas sob a égide de um sistema de direito estrangeiro.

  • A regra de conflitos é o instrumento utilizado pelo DIP para coordenar a aplicação de diferentes sistemas jurídicos, indicando a lei competente para reger determinada relação jurídica internacional, com base em elementos de conexão como a nacionalidade, o domicílio ou a residência das partes envolvidas.

  • A qualificação é um processo fundamental no DIP que visa determinar quais normas jurídicas materiais de um ordenamento jurídico competente se subsumem ao conceito-quadro da regra de conflitos, levando em conta o conteúdo e função que essas normas assumem no sistema jurídico em questão.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

Momento jurisprudencial

:

Caso BABCOCK vs. JACKSON: New York ― Ontario → acidente de viação; indivíduo transportado gratuitamente morre; a lei de Ontario não atribuía indemnização por danos causados a pessoas transportadas gratuitamente e o Estado de New York atribuía.

O tribunal americano decidiu que se aplicava a lei de New York com base em dois argumentos:

1.localizador: a questão tinha mais contacto com New York; e

2.o Estado de New York tinha mais interesse na aplicação da sua norma → publicização do DIP.


Momento legislativo

:

Segundo «Restatement»: é uma compilação que vale pelo prestígio dos seus autores e incluía três níveis:

a)factores de orientação relevantes: factores e interesses que auxiliariam o juiz a decidir a questão;

b)regra de conflitos; e

c)«open-ended Rules»: dão um maior espaço de conformação ao juiz (v.g.: o artigo. 52º, n.º 2 do Cód. Civ.).

2.4) A aproximação entre a doutrina europeia e a perspectiva norte-americana:

Entre as principais características da perspectiva norte-americana contam-se:

a)tendência para o abandono do método conflitual;

b)a ideia do primado da «lex fori»;

c)a propensão para atribuir um relevo importante, na resolução dos conflitos de leis, ao factor representado pelo conteúdo e fundamento das regras materiais em colisão.

Esta tendência foi fortemente encorajada pela feição impressa ao Segundo «Restatement», sendo certo que suas regras eram, na sua grande maioria, «open-ended Rules».

Enquanto um dos rasgos marcantes da doutrina americana, globalmente considerada, consistia no papel atribuído ao conteúdo e fins dos preceitos materiais em conflito, a doutrina clássica europeia via o DIP como algo de formal, dotado de uma teleologia peculiar que apontava para a designação da lei ligada à situação da vida pelo laço mais forte, desinteressando-se por completo do modo como essa lei poderia dirimir o conflito de interesses «sub judice».

Ora, sendo as coisas assim, a distância que separava ambas as concepções constituía, realmente, um fosso intransponível. Contudo, confrontando o método tradicional com as novas perspectivas norte-americanas, verificou-se uma significativa aproximação entre elas, sendo que essa aproximação analisa-se em ambos os sentidos, ou seja, houve um recuo da doutrina norte-americana e um avanço da doutrina clássica europeia.

Deste modo, nem a perspectiva norte-americana actual se pode definir por uma atitude de radical adesão a uma ideia de escolha da lei em função do resultado, nem, tão pouco, a doutrina europeia actual se mostra totalmente avessa a tomar em consideração as exigências da justiça material e o conteúdo e finalidades das normas a aplicar. Muita coisa mudou tanto no pensamento jurídico norte-americano, como no pensamento jurídico europeu sobre o conflito de leis:

- por um lado, a crítica norte-americana moderou-se: o retrocesso norte-americano está, sobretudo, patente na análise de CAVERS ― começou por dizer que o juiz tinha ou deveria ter de escolher a lei em função do resultado, ou seja, deveria escolher, dentre os ordenamentos jurídicos em concurso, aquele que conduzisse a um melhor resultado material (o que trazia consigo a imprevisibilidade e desprotecção das expectativas das partes); num segundo momento, porém, formulou critérios (os «principles of preference») pelos quais o juiz se deveria guiar, sendo que estas orientações se aproximavam das regras de conflitos, mas delas se diferenciando por não serem vinculativas e serem mais elásticas;

- por seu turno, o sistema europeu evoluiu no sentido da sua aproximação aos vectores que inspiravam as críticas: no próprio momento da construção das normas de conflitos o DIP possui uma justiça, uma vez que a escolha do ordenamento jurídico declarado aplicável não se faz em função do conteúdo da lei, mas do facto de ser ela a que em melhor posição se encontra para intervir. Contudo, nada obsta a que, em certos casos, a própria justiça material invada o território do DIP., fazendo prevalecer aí os seus juízos de valor e vindo, ela mesma, influir directamente na escolha da legislação aplicável.

Assim sendo, verifica-se que o método tradicional abre-se com certa largueza ao aproveitamento e valorização de critérios de justiça material e do conteúdo e escopo das normas de direito substantivo possivelmente aplicáveis ao caso concreto.

Deu-se um apuramento do sistema europeu clássico em duas frentes:

a)flexibilização;

b)materialização.

Pode ainda falar-se de uma terceira nota: uma progressiva publicização do DIP. tendente a proteger valores públicos fundamentais. Esta terceira nota faz lembrar CURRIE e já aparecia em SAVIGNY com a excepção da ordem pública internacional.

2.4.1) A flexibilização:

Foi-se notando no sistema europeu, que era rígido, uma certa mutação no sentido da aproximação deste à perspectiva norte-americana, nomeadamente, verificou-se uma flexibilização da regra de conflitos, reconhecendo-se uma margem de conformação judicial do princípio da proximidade ou localização. Começou a ser dado um maior poder de decisão ao juiz, e isso por duas vias:

1.Dá-se ao juiz a possibilidade de identificar, no caso concreto, qual a lei mais próxima a ele.

Os artigos. 52º, n.º 2 e 60º, n.º 2 do Cód. Civ., por exemplo, contêm normas de conexão múltipla subsidiária (o legislador estabelece três conexões que se vão aplicar subsidiariamente no caso de a primeira não funcionar) ― v.g.: se não há nacionalidade comum (primeiro elemento de conexão); se não há residência comum (segundo elemento de conexão), deve aplicar-se a lei com a qual a vida familiar se encontra mais estreitamente conectada (terceiro elemento de conexão). É o juiz que vai decidir qual a lei que se acha mais estreitamente conectada com a vida familiar.

2.Concessão ao juiz do poder de não aplicar, numa situação concreta, uma determinada lei, em princípio, competente, mas sim uma outra lei com a qual a situação tem um contacto mais forte (é esta a chamada cláusula de excepção).

Cfr. o artigo. 4º, n.os 1 e 5 e artigo. 6º, n.º 2, «in fine» da Convenção de Roma sobre obrigações contratuais.

Nos termos do n.º 1 do artigo. 4º, o contrato é regulado pela lei do país com o qual apresente uma conexão mais estreita, sendo que esta é dada pela residência habitual da parte que está adstrita à prestação característica do contrato (v.g.: no contrato de compra e venda, o mais importante é a entrega da coisa, logo, deverá ser aplicada a lei do vendedor).

O n.º 5 do mesmo preceito legal permite ao juiz derrogar as presunções ilidíveis dos n.os 2, 3 e 4 do referido artigo. Aqui o juiz vai excepcionar a conexão principal.

2.4.1.1) Cláusula de excepção:

O legislador indica qual a lei competente para regular uma determinada situação jurídica, mas abre uma excepção: se o juiz entender que há uma lei com um contacto mais forte com a situação «sub judice» poderá aplicar essa lei (trata-se aqui de uma verdadeira flexibilização).

O artigo. 45º do Cód. Civ., depois de estabelecer que a lei aplicável ao contrato de compra e venda (se as partes não escolherem uma) é a lei da residência do vendedor, vem depois, em seu n.º 3, estabelecer: «se, porém, o agente e o lesado tiverem a mesma nacionalidade ou, na falta dela, a mesma residência habitual, e se encontrarem ocasionalmente em país estrangeiro, a lei aplicável será a da nacionalidade ou a da residência comum, sem prejuízo das disposições do Estado local que devam ser aplicadas indistintamente a todas as pessoas» (princípio da maior proximidade). Tratar-se-á aqui de uma cláusula de excepção?

Neste caso, o juiz poderá optar pela aplicação de outra lei, só que, neste caso, esta lei também é indicada pelo legislador: é ele que descreve as circunstâncias abstractas para a aplicação da lei que tenha com a situação um contacto mais forte e qual é essa lei.

Sendo assim, não sendo o juiz, ele próprio, a escolher a lei a aplicar, não se poderia, com propriedade, falar de cláusula de excepção, mas agora falamos de cláusulas de excepção abertas e fechadas.

- Cláusula de excepção aberta: cfr. os artigos. 4º, n.os 1 e 5 e 6º, n.º 2 da Convenção de Roma sobre obrigações contratuais.

- Cláusula de excepção fechada: cfr. o artigo. 45º, n.º 3 do Cód. Civ.

2.4.2) A materialização do DIP.:

O sistema europeu não é insensível à justiça material porque há regras de conflitos que não se limitam a um objectivo de localização; quer dizer, há regras de conflitos que procuram assegurar e garantir um certo resultado material, resultado este que entende ser o mais justo (há regras de conflitos que visam produzir um dado resultado). Esta característica faz lembrar CAVERS (no que diz respeito às críticas por ele dirigidas ao método conflitual).

As regras de conflitos de conexão material ou substancial são aquelas que mandam aplicar uma lei tendo em conta o seu conteúdo material, ou seja, mandam aplicar uma lei que leve a um certo resultado material.

Esta característica deixa claro que o método conflitual tem vindo, progressivamente, a materializar-se, ou seja, começou a ter em conta os resultados materiais, e isso por duas vias:

1.Tem-se dado uma progressiva inserção de regras de conflito materiais nos sistemas de DIP conflitual. A escolha da lei competente para regular uma determinada relação jurídico-privada não é feita de acordo com o princípio da proximidade, mas, antes, com o intuito de obter um determinado resultado material.

Em regra, utilizam-se regras de conexão múltipla alternativa, operando-se a escolha em função do resultado a obter (cfr. os artigos. 36º e 65º do Cód. Civ. E o artigo. 9º da Convenção de Roma).

O artigo. 36º do Cód. Civ. dispõe sobre a forma do contrato; nos termos do seu n.º 1: «a forma da declaração negocial é regulada pela lei aplicável à substância do negócio; é, porém, suficiente a observância da lei em vigor no lugar em que é feita a declaração, salvo se a lei reguladora da substância do negócio exigir, sob pena de nulidade ou ineficácia, a observância de determinada forma, ainda que o negócio seja celebrado no estrangeiro». O n.º 2 do mesmo preceito estabelece: «a declaração negocial é ainda formalmente válida se, em vez da forma prescrita na lei local, tiver sido observada a forma prescrita pelo Estado para que remete a norma de conflitos daquela lei, sem prejuízo do disposto na última parte do número anterior».

Assim sendo, temos

- 1ª conexão: lei reguladora da substância do negócio;

- 2ª conexão: lei do lugar da celebração.

- 3ª conexão: lei para a qual remete a lei do local da celebração (esta terceira conexão não está prevista pelo artigo 9º da Convenção de Roma).

Por qual das conexões optar?

Como as 3 (três) conexões nos são apresentadas em alternativa, podemos aplicar qualquer uma delas, mas isso com vista a salvaguardar ou promover a validade formal do negócio jurídico.

Suponhamos, então, que a lei A e a B consideram o negócio jurídico inválido e a lei C considera-o como válido. Qual a lei que devemos aplicar?

Devemos aplicar a lei C, pois apenas esta promove a validade formal do negócio jurídico.

Imaginemos agora que todas as lei potencialmente aplicáveis consideram o negócio jurídico inválido nos seguintes termos:


Lei A

Lei B

Lei C

Nulo

Anulável

Anulável

Prazo de 3 anos

Prazo de 1 ano

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Qual a lei que devemos aplicar?

A opinião do curso é a de que nesta situação, como o negócio jurídico jamais será válido, devemos aplicar a lei que invalida menos, ou seja, a lei C, pois passado 1 (um) ano, o negócio jurídico estabiliza-se, tornando-se inatacável.

Outros autores, contudo, entendem que, se o negócio jurídico em causa jamais poderá ser considerado válido, não vamos promover o resultado material desejável; e se já não há um resultado material a prosseguir, vamos escolher a conexão que tenha um contacto mais forte com a situação, ou seja, a lei competente para regular a substância do referido negócio, pois é essa a lei que está em primeiro lugar e porque já a nível histórico a tendência é conseguir um estatuto unitário para os negócios jurídicos (forma e substância reguladas pela mesma lei).

Imaginemos agora que há duas leis que consideram o negócio jurídico válido e a outra como inválido, ou até as três o consideram como válido. Por qual das leis em concurso devemos optar?

De acordo com o que dissemos supra, devemos aplicar a lei apontada pela primeira conexão, ou seja, aquela que for competente para regular a substância do negócio em causa, pois devemos prosseguir os fins do DIP.

Contudo, também se pode pensar em regras de conexão una ou simples (ou seja, que só têm uma conexão ― v.g.: para os imóveis só se aplica a «lex rei sitae») que também tenham em vista um determinado resultado material.

1.Regras que facilitam a constituição de certos estados ou que visam assegurar certas faculdades ou liberdades jurídicas (artigo 60º, n.º 2 do Cód. Civ. ― promove a constituição do vínculo da filiação adoptiva).

Há certos ordenamentos jurídicos em que, pelo menos na altura em que outros ordenamentos proibiam o divórcio, tinham determinadas regras que possibilitavam a dissolução do vínculo conjugal, ou seja, escolhiam o ordenamento jurídico que possibilitasse o divórcio.

Outro caso: não se concedia um estatuto próprio à mulher casada; determinadas ordens jurídicas propendiam para escolher as normas que concediam mais liberdades.

2.Regras de conflitos que visam a protecção, em termos mais amplos e mais efectivos, de uma determinada pessoa (em regra a parte mais débil ― «favor personae»).

O artigo 45º do Cód. Civ. que prescreve as regras da responsabilidade civil extracontratual trata de uma regra de conexão múltipla subsidiária (há duas conexões, sendo que se a primeira não puder ser aplicada aplica-se a segunda que vai ser aplicada segundo critérios materiais e não meramente localizadores).

2.4.3) Terceiro nível de aproximação:

Próximo da materialização (mas não se confundindo com ela) nota-se, amiúde dos sistemas conflituais, uma sensibilização à influência do fim e conteúdo das normas materiais como passo importante na determinação da sua aplicação espacial.

Visa-se a análise do conteúdo material das normas para determinar o seu âmbito de aplicação espacial.

Quais os três momentos?

a)Qualificação;

b)adaptação; e

c)regras espacialmente auto-limitadas.

2.4.3.1) A qualificação:

A consideração do conteúdo e escopo dos preceitos jurídico-materiais releva também no momento da qualificação. Isto é válido para quem aceite a ideia de que toda a qualificação em DIP ou, pelo menos, a chamada qualificação secundária (que é uma qualificação de normas e não de relações jurídicas ou de factos).

O que se pretende é: dada uma lei potencialmente aplicável a determinada situação jurídica em virtude de uma regra de conflitos do foro, devemos averiguar se essas normas regulativas daquele tipo de situações correspondem à categoria normativa visada pela própria regra de conflitos e expressa pelo respectivo conceito quadro. Para tal, haverá que analisar-se, à luz do seu escopo ou função sócio-jurídica, os preceitos materiais cuja aplicação está justamente em causa. Se tais preceitos não se ajustarem às características definidas pelo conceito-quadro da regra de conflitos, terá de concluir-se pela sua inaplicabilidade.

Porém, deve ser dito que não se trata de aplicar (ou não) tal preceito em virtude da sua aptidão (ou não) para realizar a justiça material no caso concreto, ou porque a política em que se inspira comanda ou, antes, desaconselha a sua aplicação. O que decide da aplicação do preceito é tão somente a circunstância de ele se destinar, no ordenamento jurídico a que pertence, a desempenhar uma função normativa idêntica ou, pelo menos, semelhante àquela que o legislador do foro teve em vista ao estabelecer a regra de conflitos em causa. Importa que o preceito material em análise constitua, de alguma forma, uma resposta à questão formulada pela regra de conflitos, mas sem que releve para quaisquer efeitos o teor concreto da resposta.

O problema que se põe não é um problema de escolha entre dois preceitos ou duas séries de preceitos materiais provenientes de legislações diferentes, e isso quer em função do resultado ou que uns e outros levariam no caso de espécie, quer atendendo às políticas por elas prosseguidas. Não se trata, em suma, de estabelecer um confronto entre aqueles preceitos, mas sim entre determinado preceito de direito material, nacional ou estrangeiro, e uma regra de conflitos do foro.

2.4.3.2) A adaptação:

Há hipóteses em que se impõe o recurso ao método das soluções materiais «ad hoc».

Na tentativa de resolver os problemas suscitados pelas relações plurilocalizadas deparamos, por vezes, com situações de «cúmulo jurídico» ou de «vácuo jurídico». Na primeira hipótese, trata-se de uma concorrência de normas, porventura, contraditórias; na segunda hipótese verifica-se a ausência de toda e qualquer norma aplicável.

Esta problemática, característica de todo o direito, assume especial relevo em DIP., sendo uma das questões mais complexas oferecidas por este ramo do direito. Estas situações devem, sempre que possível, ser obviadas através da criação de regras de conflitos especiais (regras de segundo grau ou de segundo escalão) e, só quando esta via esteja precludida é que deverá recorrer-se ao mecanismo da adaptação ― comparando as normas dos ordenamentos em presença, combinando-as, tentaremos encontrar uma solução que, respeitando-lhes o sentido ou a «ratio», se adapte à realidade do caso vertente. Esta técnica da adaptação é extremamente complicada e falível e, como tal, já o dissemos, só em casos extremos é que se deverá lançar mão dela.

O ponto de vista que se defende é que, perante situações de «cúmulo» ou de «vácuo» jurídico, a primeira coisa a fazer é tentar descobrir uma regra de conflitos especial, uma regra de conflitos de segundo grau ou de segundo escalão. Não sendo isso viável, deverá, então, recorrer-se à adaptação. Aliás, a adaptação tanto pode recair sobre normas de direito material, como sobre normas de DIP A forma mais importante e conhecida de adaptação é a que incide sobre preceitos jurídico-materiais.

Por força do processo de especialização («dépeçage»), visa-se resolver o problema das extradições normativas.

No DIP., quando uma questão é suscitada, só raramente é que a podemos resolver recorrendo a uma só regra de conflitos. Ou seja, cada questão pode levantar vários problemas, problemas estes que o juiz deverá separar aplicando, a cada um deles, a sua regra de conflitos, e desse facto podem resultar soluções contraditórias tendo o juiz que corrigir isto através de uma concordância prática ou hierarquização dos princípios.

Há uma incompatibilidade dos efeitos jurídicos produzidos por leis diferentes, mas que são aplicáveis por força da regra de conflitos; contudo, não podendo a decisão do juiz ser contraditória, impõe-se que seja operada uma correcção através de «uma conformação concreta das relações jurídicas através da sua decisão e no uso de uma faculdade quase legislativa» (BAPTISTA MACHADO).

2.4.3.2) Normas espacialmente auto-limitadas ou auto-condicionadas:

O método tradicional de dirimir os conflitos de leis, como já ficou dito, abriu-se com certa largueza ao aproveitamento e valorização de critérios de justiça material e do conteúdo e escopo das normas de direito substantivo possivelmente aplicáveis ao caso concreto.

As normas espacialmente auto-limitadas ou auto-condicionadas são normas que só se querem aplicar às situações da vida que se encontram ligadas à ordem sócio-jurídica do respectivo Estado por uma conexão espacial de certo tipo, desde que essa conexão seja expressamente estabelecida pelo próprio preceito material, ou desde que isso pudesse deduzir-se do seu escopo. A especificidade destas normas reside exactamente em estas serem normas de direito material internas que, para além de estabelecerem uma disciplina material, recortam, elas próprias, o seu âmbito espacial de aplicação através de um processo técnico muito semelhante ao das regras de conflitos (mas têm uma actuação diferente da regra de conflitos, já que são as próprias normas materiais que vão delimitar o seu âmbito de aplicação material). Contudo, é do próprio fim visado pela norma que derivam os limites impostos à sua aplicação material.

Podem ser formuladas expressamente ou implicitamente (infere-se por interpretação de uma norma ou conjunto de normas por parte do tribunal ou por parte da doutrina).

Ainda estão dentro do método conflitual, pois elas mesmas inscrevem uma regra de conflitos «ad hoc» ao delimitar o seu campo de aplicação espacial, mas não se confundem com as regras de conflitos.

Não se trata propriamente de emitir um juízo sobre a competência de uma lei estrangeira, mas, tão somente, sobre o domínio de aplicação de uma norma da lei previamente definida como aplicável a dado caso. Por consequência, a falta do elemento de conexão exigido implicitamente pela norma só conduz ao seu afastamento, mas não ao afastamento da legislação em que se insere, cuja competência aquela circunstância em nada afecta.

Como a norma espacialmente auto-limitada é, por via de regra, uma norma especial, a sua não aplicação só determinará que se passe à aplicação do preceito de direito comum.

Se o juiz da causa se depara, ao analisar o ordenamento jurídico declarado competente pela regra de conflitos do foro, com uma destas normas espacialmente auto-limitadas de que temos vindo a ocupar-nos, não terá ele outra atitude a tomar que não seja a de conformar-se estritamente com o que resulta da mesma norma ou da disposição anexa. Aqui é do próprio preceito material (da sua «ratio») que decorrem os elementos modeladores desse âmbito; e se a razão da lei se incorpora na própria lei, não tomar em conta aqueles elementos modeladores seria atraiçoar a mesma norma a que eles pertencem e de que fazem parte integrante.

A doutrina exposta tem certas semelhanças com a doutrina de CURRIE. Pois não pretende CURRIE resolver os conflitos de leis determinando o campo de aplicação de cada norma através de uma análise da «policy» que lhe está subjacente?

Sem dúvida que sim. No entanto, há uma diferença fundamental entre as duas posições. A de CURRIE define-se por uma atitude de rejeição radical das regras de conflitos: o autor pensa ser possível e necessário inferir de cada norma de direito material (da sua «ratio» ou da sua «policy») o seu domínio de aplicação espacial. Diferentemente, a ideia central da teoria exposta é que, se se verifica que o fim da norma concreta delimita efectivamente, por si próprio, o respectivo campo de aplicação, há que aceitar todas as implicações deste facto. Na verdade, aplicar a norma espacialmente auto-limitada fora das fronteiras que lhe assinalam, seja, embora, só de maneira implícita, o seu escopo e fundamento, redundaria, em última análise, em aplicar uma norma diferente... não aquela norma, mas outra.

Do exposto resulta que o reconhecimento da categoria das normas materiais espacialmente auto-limitadas é um factor, ao lado de outros, que propicia a relevância, no âmbito do direito conflitual, do elemento representado pelo conteúdo e fins dos preceitos jurídico-materiais das leis concorrentes.

Afinal, o DIP actual está bem longe de ser aquele conjunto de regras de conexão de actuação mecânica, cegas para o conteúdo das normas substanciais concorrentes e para os valores de justiça material que tantos autores e, seguramente, muitos dentre os melhores se empenharam durante anos a criticar.

São duas as modalidades que podem assumir as normas espacialmente auto-limitadas:

a)normas espacialmente auto-limitadas em sentido estrito (que são de carácter restritivo); e

b)normas espacialmente auto-limitadas de carácter ampliador (são as NANI).

2.4.3.2.1) Normas espacialmente auto-limitadas de carácter restritivo:

São normas do ordenamento jurídico do foro que exigem, para se aplicarem a uma situação internacional, um contacto mais forte relativamente ao contacto exigido pela regra de conflitos (têm, portanto, uma aplicação mais restrita). Um determinado ordenamento jurídico vai ser competente para reger um certo complexo de situações, mas dentro desse ordenamento inscreve-se uma norma deste tipo. Isso significa que aquela norma não vai ser aplicada porque ela própria não se quer aplicar (elas só se aplicam a situações especiais, exigindo sempre um contacto mais forte com a situação a regular).

Exemplos característicos deste tipo de normas são os artigos. 36º do DL 248/86 (EIRL), 33º do Cód. Civ. e 3º do Código das Sociedades Comerciais., pois para que este diploma seja aplicável, não basta que o EIRL tenha sede real e efectiva em Portugal, é ainda preciso que ele tenha sido constituído em Portugal (critério da constituição).

2.4.3.2.2) Normas espacialmente auto-limitadas de carácter ampliado (NANI):

São normas materiais que delimitam (pelo seu fim e conteúdo) o seu âmbito de aplicação espacial e que exige um contacto mais ténue e menos exigente do que o exigido pela regra de conflitos, tendo, assim, uma força expansiva e aplicando-se mesmo que o ordenamento jurídico onde se inserem não se queira aplicar (são exactamente o contrário das outras).

Em regra, pela regra de conflitos o ordenamento jurídico onde se inserem não é o competente, mas elas exigem um contacto mais ténue e são, por isso, expansivas.

- Visam proteger os interesses do foro.

- São de aplicação necessária porque se aplicam de forma imperativa, não admitindo, por isso, postergação, já que visam proteger valores caros do ordenamento jurídico onde se inserem.

- São de aplicação imediata porque prescindem (e podem, inclusivamente, preceder) da actuação da regra de conflitos.

Isto muito embora suponham sempre um contacto espacial (elas inserem uma regra de conflitos específica unilateral «ad hoc»).

2.5) O Direito Internacional Privado Material:

A concepção clássica do DIP busca a solução dos seus problemas através da regra de conflitos ― é este o sistema ou via conflitual, segundo o qual, em face de cada situação da vida e da questão jurídico que, no caso, se levanta, a regra de conflitos relativa a esse tipo de questões dirá qual a conexão relevante e, desse modo, qual a lei aplicável.

Contudo, este não é o único caminho que se nos apresenta. Em alternativa, oferece-se a solução de proceder à regulamentação das relações privadas internacionais através da criação de normas especiais de direito material.

As normas de DIP material são manifestações de um método diferente do método conflitual e que consiste na criação de normas materiais especiais para regular as situações internacionais.

Tal solução tem um célebre precedente histórico: o «ius gentium» que não era outra coisa senão um sistema de regras materiais aplicáveis às relações dos cidadãos romanos com os peregrinos (já nesta altura existiam normas específicas para regular as situações internacionais).

ROBERTO AGO entende que, para a resolução dos problemas do DIP., tanto se poderia seguir o rumo tradicional como, ao invés, optar pela criação de um sistema particular de normas de direito material aplicáveis às relações que se apresentam como estranhas à vida jurídica do Estado local.

2.5.1) Vias pelas quais os defensores de uma maior «materialização» do DIP fizeram avançar as suas propostas:

a)Redefinição do papel do juiz no processo, dando-lhe o poder ― mais ou menos vinculado a alguns critérios ― de escolher a lei mais adequada à resolução da situação concreta ou de criar, mesmo, uma nova norma no caso de as circunstâncias assim o exigirem.

Nos ordenamentos jurídicos da família romano-germânica, o juiz não é a instância mediadora entre a lei e o caso, não competindo a ele actualizar a intenção normativa do legislador de forma a que o direito a aplicar resultasse de uma criação judicial. A mais, o juiz também não é a «viva vox iuris civilis».

Na Europa continental, a tentativa de «materializar» o DIP não foi prosseguida por orientações que privilegiassem o poder do juiz, e isso deve-se, principalmente:

- a tradicional desconfiança perante a actividade judiciária, vista quase unanimemente como fonte de arbítrio e desigualdades.

Porque a lei, em princípio, resultado da vontade dos órgãos representativos, é o resultado da emancipação da sociedade perante o soberano, ele é o instrumento privilegiado da realização da justiça entre os «cives» e as suas fórmulas possuem algo de mágico no tocante às virtualidades de assegurar, dentro do espaço e do tempo, que a sua vigência abrange a perfeita justiça.

O juiz, que é titular de uma força do Estado de dignidade equiparável às restantes, quase surge como um mero órgão de ligação, desprovido de qualquer autonomia na operação de aplicar os comandos legais a um qualquer caso concreto a eles subsumido.

b)Criação de normas especiais de direito material para regulamentarem as relações privadas internacionais.

2.5.2) Modalidades de normas de DIP material:

2.5.2.1) Normas de DIP material de fonte interna:

As normas de DIP material de fonte interna podem ter as seguintes origens:

a)legislativa;

b)jurisprudencial; e

c)doutrinal.

2.5.2.1.1) Normas de DIP material de origem legislativa:

A elaboração na ordem interna dos Estados de um sistema completo de normas aplicáveis a determinada categoria de situações internacionais não corresponde a qualquer firme tendência do direito contemporâneo. Ao invés, é com certa frequência que nos deparamos, nas leis internas dos diferentes Estados, com normas materiais expressamente criadas para regular determinados aspectos de certas situações internacionais. Trata-se de normas que se aplicam fora do domínio definido pelas regras de conflitos do ordenamento jurídico a que pertencem, mas cuja aplicação depende, em todo o caso, da existência de um elemento de conexão entre a situação a regular e o respectivo ordenamento jurídico. Exemplos:

- Código Comercial da antiga Checoslováquia ― normas materiais específicas para as situações internacionais: o sistema jurídico interno era diferente do sistema que deveria reger as situações internacionais (países de ideologia comunista).

Contudo, mesmo aqui não se prescindia do critério espacial: as normas só se aplicavam quando as regras de conflitos estabeleciam a competência do seu ordenamento jurídico.

- O artigo 2223º do Cód. Civ., que disciplina o testamento, estabelece que, se o testamento tiver sido feito no estrangeiro por um português, este testamento só pode ser válido em Portugal se tiver sido observada uma formalidade solene (é uma regulamentação específica; não remete para nenhum ordenamento jurídico, pois dá já a solução).

- O artigo 52º, n.º 2 do Cód. Civ., «in fine», que disciplina o casamento no estrangeiro de dois portugueses ou de um português com um estrangeiro, estabelece que, em qualquer caso, o casamento deve ser precedido do processo de publicação (aqui está a norma material).

- Os artigos. 32º e 35º da Lei 31/86, de 29 de Agosto regula a arbitragem internacional quando esta ocorre em Portugal (critério espacial).

- O artigo 3º, n.os 2 a 6, do CSC., que regula as transferências internacionais da sede das sociedades comerciais, é uma regulamentação específica para as situações internacionais.

- O artigo 3º, n.º 1, 2ª parte, do CSC., dispõe sobre o relevo da sede estatutária em Portugal quando a sociedade seja estrangeira (sem sede real e efectiva em Portugal).

2.5.2.1.2) Normas de DIP material de origem jurisprudencial:

As normas materiais de que até agora nos ocupamos apresentam a dupla característica de serem normas de fonte legislativa e de inspiração internacionalista, regras inspiradas pela intenção de dar satisfação adequada às necessidades específicas do comércio jurídico internacional. Todavia, elas não operam à margem do jogo das regras de conflitos, antes o pressupõem.

Há, contudo, outras normas materiais, de elaboração jurisprudencial (também de inspiração internacionalista) que se poderia dizer estarem libertas do jogo das regras de conflitos, pois actuariam só pelo facto de o litígio pertencer à esfera de competência dos tribunais locais..

Nós entendemos que a criação, por via jurisprudencial, de tais regras de DIP material não é de encorajar. Não é pelo facto de essas regras se inspirarem nas necessidades específicas do comércio internacional que elas perdem a natureza de normas de direito interno: são normas especiais de direito interno. É, portanto, indispensável, para que a sua intervenção se torne legítima, que o problema surja num litígio que tenha com o Estado do foro alguma conexão efectiva... alguma conexão válida à luz dos princípios gerais do DIP Por outro lado, é chocante que um Estado reserve para as relações nascidas da vida jurídica internacional um tratamento diferente do que dispensa às relações puramente internas.

VON MEHREN invoca a esse respeito o princípio da igualdade, advertindo que aquela diferença de tratamento só se justifica quando as circunstâncias exijam claramente o afastamento da norma representada pelas soluções do direito interno comum.

Contudo, estas considerações em nada infirmam o que dissemos acerca das normas materiais espacialmente auto-limitadas. Em nosso entender, o recurso a esta figura permitirá corrigir boa parte dos resultados «inadequados» a que conduziria a aplicação pura e simples, aos casos internacionais, das normas mediante as quais a «lex fori» procede à regulamentação das relações de direito interno.

O direito especial das relações internacionais, onde, porventura, exista, quer provenha de fonte legislativa ou de fonte jurisprudencial, não exclui ou não deve excluir o processo conflitual clássico.

Em regra, acontece no ordenamento jurídico francês. Numa situação interna ou internacional as partes celebram um contrato e, adstrito a este contrato, um acordo compromissório.

- Nas situações jurídicas internas, quando o contrato é inválido, o acordo também o é.

- A jurisprudência, contudo, construiu uma norma de DIP material diferente: a nulidade do contrato não acarreta a nulidade do acordo, assim, há a criação de um regime específico para as situações internacionais, regime este estabelecido pelos próprios aplicadores do direito.

2.5.2.1.3) Normas de DIP material de origem doutrinal:

Há uma variante doutrinal das normas de DIP material (mas não é bem uma fonte interna).

VON MEHREN adopta uma visão salomónica do DIP., propugnando pela conciliação e reconhecimento dos pontos de vista de todos os ordenamentos jurídicos em contacto.

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Sobre o autor
José Eduardo Dias Ribeiro da Rocha Frota

licenciado pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra (Portugal)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FROTA, José Eduardo Dias Ribeiro Rocha. Direito Internacional Privado.: Parte Geral. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 921, 8 jan. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/7714. Acesso em: 22 dez. 2024.

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