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O princípio da insignificância e sua aplicabilidade pela Polícia Judiciária

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19/12/2005 às 00:00
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2 POLÍCIA JUDICIÁRIA

            Polícia e repressão são duas palavras que impregnam uma semântica consideravelmente pejorativa no Brasil pós Ditadura Militar. Repressão era um conceito conexo unicamente com a performance subterrânea dos órgãos de segurança pública, figadalmente jungida com a tortura e o desaparecimento de opositores ao regime de governo ditatorial.

            A Polícia não era órgão de conservação e garantia da paz e da tranqüilidade públicas, porém órgão de repressão, nesta ocasião percebida no aspecto pejorativo.

            Desvanecida a Ditadura e acomodado o Estado Democrático de Direito, referidas palavras - repressão e polícia - permaneceram carregando aquele sentido negativo, já que as chagas abertas na sociedade muitas vezes precisam de anos para as suas cicatrizações. Além disso, estão sujeitas à atuação consciente dos homens para alterar uma doutrina densamente alojada.

            No que tange à repressão, é uma das diversas formas de performance dos órgãos de polícia. Os órgãos de polícia operam de maneira preventiva e repressiva. Em quaisquer dos casos aspiram ao estrito cumprimento da lei. Reprimir é, deste modo, nada mais nada menos que empregar a força estatal para forçar ou obrigar o implemento da lei. Perceba-se que a repressão não obra sobre todos, indistintamente, no entanto apenas sobre aqueles que extravasam os lindes traçados pela Lei. No entanto, a sua implicação pedagógica é para todos. Não há e nem pode haver repressão como um fim em si mesmo. A repressão não é uma represália do Estado, porém é um exemplo que deve ser versado a todos.

            Azado falar aqui naquilo que em Direito Administrativo avalia-se por "Poder de Polícia". É em alto grau comum às pessoas enlear Poder de Polícia, que tem sua concepção e conceituação nos limites da doutrina administrativista, com "função ou atividade policial", que são coisas que não se confundem. Se, por um aspecto, as funções policiais são específicas de alguns órgãos públicos, na maioria das vezes denominados "polícia", por outro o Poder de Polícia é intrínseco a todo o Estado, na proporção em que por meio de seus órgãos, intromete-se nas atividades regulares dos cidadãos.

            Polícia Judiciária possui o papel precípuo de apurar as infrações penais e a sua autoria, por meio do inquérito policial, procedimento administrativo com particularidade inquisitiva, o qual serve, em regra, de sustentáculo à pretensão punitiva do Estado estabelecida pelo Ministério Público, Senhor da ação penal pública [25].

            A persecução penal, ordinariamente, inicia-se por meio da investigação criminal, com o Estado angariando subsídios para o exercício do jus puniendi em juízo, razão pela qual, em sendo o inquérito policial peça procedimental de contumaz importância para o Estado, devidamente disciplinado pelo Código de Processo Penal, embora prescindível, não é ele mera peça de informação como a doutrina e a jurisprudência, praticamente pacífica, o cognominam [26]. Ele é, isto sim, peça de informação de alta relevância. Lida com o sagrado direito à liberdade e, em sendo propriamente conduzida, seguramente propiciará uma maior probabilidade de sucesso no estágio do direito de punir do Estado-Administração, bem como de justiça na fixação da pena pelo Estado-Juiz, quando da análise das circunstâncias judiciais [27].

            Ao considerar-se o inquérito policial um procedimento inquisitivo, não há que se falar da aplicação, nesta fase, das garantias do contraditório e da ampla defesa, reservadas à instrução processual, pois que só aí há acusação e defesa. Com efeito, somente a partir da aceitação da denúncia, em se tratando de persecução oriunda de investigação criminal ou inquérito policial, pode-se falar em "acusado" [28].

            Por certo, o inquérito policial não abrange as consagradas garantias constitucionais. Ele evidencia-se, especificamente, por um conjugado de atos praticados por autoridade administrativa [29].

            O texto constitucional, ao afiançar ao preso a assistência de um advogado, não exige a sua presença aos atos procedimentais, nem que a autoridade policial deva obrigatoriamente constituir um para acompanhar o seu interrogatório [30], mais sim, constitucionalmente lhe é assegurado ser assistido por um advogado de sua livre nomeação, caso deseje e o promova [31]. Isso, por certo, mostra-se coerente, haja vista, como acima já dito, que em inquérito policial não existe contraditório e ampla defesa, a serem exercidos somente em processo judicial ou administrativo [32].

            Por outro lado, a presença do advogado, ainda que prescindível no inquérito policial, é recomendável, mas apenas recomendável, diante da possibilidade de deficiência de justa causa para a sua instauração em desfavor do investigado, da possibilidade de pleitearem-se diligências, do pedido de liberdade provisória, de relaxamento de prisão em flagrante, bem como de inibir qualquer arritmia de conduta que possa advir por parte do agente policial do Estado, por meio de hábeas corpus ou representação à Corregedoria de Polícia.

            De tal modo, permite-se discorrer em defesa no inquérito policial, em sentido amplo, mas não em ampla defesa, agindo o advogado para garantir a observância dos direitos e garantias individuais traçados na Constituição da República.

            No que concerne ao segredo da investigação, é ele da essência do inquérito. Não o guardar é muitas vezes fornecer armas e recursos ao delinqüente, a fim de frustrar a atuação da autoridade, na apuração do crime e da autoria [33].

            No que pese, todavia, o disposto no art. 20 do CPP, observamos que, com o advento do Estatuto da OAB [34], lei federal de âmbito nacional, a aplicação do sigilo nos inquéritos policiais viu-se mitigada, atingindo a discricionariedade do Delegado de Polícia na direção do procedimento.

            No entanto, não houve anulação desse poder discricionário da Autoridade Policial, de modo que, nas investigações em que o sigilo seja indispensável para a apuração da infração e da sua autoria, ou exigível no tocante ao interesse da sociedade, deve a autoridade policial representar, fundamentadamente, à autoridade judiciária competente, a fim de que o princípio da publicidade seja restringido, com vistas ao MP, por ser o destinatário final da informatio delicti.

            Referido proceder é coeso com a propriedade inquisitiva do inquérito policial, em que não se desempenha defesa propriamente dita, vetando-se a possibilidade de ciência prévia da diligência a ser efetivada oportunamente [35], a qual poderia ver-se frustrada, em virtude de uma possível performance precoce e ágil do advogado interessado.

            Vale mencionar que o Estado possui poderes para a sua organização, conservação, determinação de suas diretivas e consecução de seus fins.

            Todo poder estatal é poder político, mas convencionou-se denominar poder político unicamente aquele que se agrupa e é desempenhado prontamente pelos Poderes de Estado - Legislativo, Executivo e Judiciário - como órgãos governamentais dos Estados Democrático Modernos. Ficou estabelecido que os demais poderes, desempenhados pelos órgãos da Administração Pública, constituem-se em poderes administrativos, dentre os quais se arraiga o Poder de polícia.

            Poder é a capacidade de deliberar e cominar a decisão aos seus destinatários. Nessa acepção, o poder exprime-se em todos os grupos e comunidades, desde a família, que se apóia no pátrio poder, até o Estado, que se sustenta no poder político, emanado da aspiração popular, que é o suporte da Soberania Nacional. Poder, assim, é a própria emanação de soberania do Estado [36].

            Poder de polícia, por sua vez, é o engenho de frenagem de que dispõe a Administração Pública, para ater os abusos do direito individual. Por meio desse mecanismo, que é uma peça de toda Administração, o Estado (em significado amplo: União, Estados e Municípios) prende a atividade dos particulares que se desvendar contrária, nociva ou inconveniente ao bem-estar social.

            Convém distinguirmos, neste ponto, a polícia administrativa da polícia judiciária. A polícia administrativa é aquela que incide sobre bens, direitos ou atividades, ao passo que a polícia judiciária incide sobre as pessoas. Desse modo, poder de polícia judiciária é privativa dos órgãos auxiliares da Justiça [37], enquanto que o poder de polícia administrativa difunde-se por todos os órgãos administrativos, de todos os Poderes e entidades públicas. Explicando, quando a autoridade apreende uma carta de motorista por infração de trânsito, exercita ato de polícia administrativa. Agora, quando prende o motorista por infração penal, pratica, então, o ato de polícia judiciária.

            Poder de polícia, em seu significado amplo, envolve um sistema total de regulamentação interna, pelo qual o Estado procura não só preservar a ordem pública, senão também instituir para a vida de relações dos cidadãos aquelas regras de boa conduta e de boa vizinhança que se supõem imprescindíveis para serem evitados conflitos de direitos e para garantir-se a cada um o deleite ininterrupto de seu próprio direito, isso até onde for razoavelmente conjuminado com o direitos dos demais.

            Administração Pública tem o poder de especificar e executar medidas restritivas do direito individual em beneficio do bem-estar da coletividade e da preservação do próprio Estado. Como salienta José Afonso da Silva, a separação de poderes tem por fundamento a procura da especialização funcional e a independência orgânica no exercício de cada uma das atribuições típicas do Estado [38].

            A noção de Poder de Polícia, diga-se de passagem, encontra-se patente em nossa legislação, valendo fazer referência ao Código Tributário Nacional que assim dispõe:

            "Considera-se poder de polícia a atividade da Administração Pública que, limitando ou disciplinando direito, interesse ou liberdade, regula a ´´Prática de ato ou abstenção de fato, em razão de interesse público concernente à segurança, à higiene, à ordem, aos costumes, à disciplina da produção e do mercado, ao exercício de atividades econômicas dependentes de concessão ou autorização do Poder Público, à tranqüilidade pública ou ao respeito à propriedade e aos direitos individuais ou coletivos" [39].

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            2.1 poder de polícia

            A extensão do poder de polícia é hoje muito ampla, abarcando desde a proteção à moral e aos bons costumes, a preservação da saúde pública, a censura de filmes e espetáculos públicos, o controle das publicações, a segurança das construções e dos transportes, o mantimento da ordem pública em geral, até à segurança nacional em particular. Daí, encontra-se, nos Estados modernos, a polícia de costumes, a polícia sanitária, a policia das águas e da atmosfera, a polícia florestal, a polícia rodoviária, a policia de trânsito, a polícia das construções, a polícia dos meios de comunicação e divulgação, a polícia política e social, a polícia da economia popular, e outras que atuam sobre as atividades individuais que afetam ou sejam capazes de afetar os superiores interesses da coletividade, a que incumbe o Estado velar e proteger. Onde houver interesse acentuado da comunidade ou da Nação, deve haver, correlatamente, igual poder de policia para a proteção desse interesse público.

            Os exatos limites do poder de polícia administrativa são demarcados pelo interesse social em conciliação com os direitos fundamentais dos indivíduos assegurados na Constituição da República [40]. Do absolutismo individual evoluímos para o relativismo social. Os Estados democráticos como o nosso inspiram-se nos princípios de liberdade e nos ideais de solidariedade humana. Daí o equilíbrio a ser procurado entre a fruição dos direitos de cada um e os interesses da coletividade, em favor do bem comum. Aliás, a idéia de reparação é uma das mais velhas idéias morais da humanidade, como já dizia RIPERT, citado por CAIO MÁRIO [41].

            Referida sujeição do direito individual aos interesses coletivos ficou bem marcada na vigente Constituição da República, ao estabelecer-se que a ordem econômica e social tem por fim realizar o desenvolvimento nacional e a justiça social, com base dentre outros fatores, na «função social da propriedade» [42].

            Por meio de restrições infligidas às atividades do indivíduo que afetem a coletividade, cada cidadão cede parcelas mínimas de seus direitos à comunidade e o Estado lhe retribui em segurança ordem, higiene, sossego, moralidade e outros benefícios públicos, propiciadores do conforto individual e do bem-estar geral. Para concretizar essas restrições individuais em favor da coletividade, o Estado se utiliza desse poder discricionário, que é o poder de polícia administrativa. Tratando-se de um poder discricionário, a norma legal que o confere, não minudencia o modo e as condições da prática do ato de polícia. Esses aspectos são adjudicados ao prudente critério do administrador público. Mas se a autoridade ultrapassar o admitido em lei, incidirá em abuso de poder, corrigível por via judicial. O ato de polícia, como ato administrativo que é, fica sempre sujeito à invalidação pelo Poder Judiciário, quando praticado com excesso ou desvio de poder.

            2.2 atributos do poder de polícia

            O poder de polícia possui atributos específicos e peculiares ao seu exercício. Há os gerais e há o específico. Dentre os gerais, encontram-se a presunção de legitimidade, a auto-executoriedade e a imperatividade, também chamada de coercitividade ou exigibilidade. No que se refere ao atributo específico, encontra-se a "discricionariedade".

            A discricionariedade, que se pretende destacar neste momento, traduz-se na livre escolha, pela Administração, da oportunidade e da conveniência em se exercer o poder de polícia, bem como de aplicar as sanções e empregar os meios conducentes a atingir o fim colimado no caso em concreto, que é a proteção de algum interesse público determinado. Neste particular, e desde que o ato de polícia administrativa se contenha nos limites legais e a autoridade se mantenha na faixa de opção que lhe é atribuída, a discricionariedade é legítima. Exemplo: se a lei permite a apreensão de mercadorias deterioradas e a sua inutilização pela autoridade sanitária, esta pode apreender e inutilizar os gêneros imprestáveis para a alimentação, sem nenhuma interferência de outro poder, inclusive do Judiciário. Porém, se a autoridade é incompetente para a prática do ato, ou se o praticou arbitrariamente sem prévia comprovação da imprestabilidade dos gêneros para sua destinação, ou se interdita o estabelecimento fora dos casos legais, a sua conduta poderá ser impedida ou invalidada pela Justiça. No uso da liberdade legal de valoração das atividades policiadas e na graduação das sanções aplicáveis aos infratores é que reside a discricionariedade do poder de polícia.

            De qualquer sorte, a liberdade máxima consentida não é jamais o pleno arbítrio, mas o ´´prudente arbítrio´´ ou o poder discricionário, que permite ao seu titular escolher os interesses para os quais deverá exercê-lo, mas proíbe que ele possa prescindir de tal avaliação. Se uma função for exercida por interesse distinto, daquele que lhe constitui a base, dá lugar a um comportamento ilegítimo, que recebe o nome de ´´desvio de poder [43].

            2.3 o controle externo da polícia judiciária

            Na Espanha, as investigações preliminares estão a cargo do Ministério Público que tem como auxiliares subordinados a polícia judiciária. Em Portugal, a "instrução preparatória" é secreta e fica a cargo do Promotor, estando a polícia judiciária na posição de órgão auxiliar do Ministério Público. Nos países da América Latina, a posição do Ministério Público é sempre a de orientador da Polícia na apuração das infrações Penais.

            No Brasil, a posição do Ministério Público é a de controlar externamente a atividade policial [44]. A iniciativa de principiar a investigação criminal compete ao Delegado de Polícia, de ofício, por intermédio da requisição do Ministério Público, ou a requerimento da parte ofendida. Aqui não existe uma relação direta de subordinação entre o Ministério Público e a Polícia Judiciária. Contudo, a lei maior impôs ao titular da ação penal a obrigação de executar uma supervisão direta do trabalho da polícia.

            O controle externo permite ao Promotor requisitar e fiscalizar o cumprimento de diligências junto à autoridade policial. Pode também instaurar, sob sua presidência, procedimentos administrativos para apuração de infrações penais, desde que entenda necessário. Nunca poderá, no entanto, é lógico, causar prejuízo às investigações concomitantes da autoridade policial.

            O espírito do legislador em dilatar os horizontes da atuação ministerial se revela mais evidente se observarmos o conteúdo do artigo 201 do Estatuto da Criança e do Adolescente. Nele, se estabelece, no inciso VII que é atribuição do Ministério Público instaurar sindicâncias, requisitar diligências e determinar a instauração de inquérito policial, para apuração de ilícitos ou infrações às normas de proteção da infância e juventude.

            A regra é a investigação policial ser presidida pela autoridade policial. Todavia, há outras modalidades de investigação presididas por Autoridades diversas. Os inquéritos policiais militares, presididos por militares, as comissões parlamentares de inquérito, presididas por membros do legislativo e, finalmente, o inquérito civil [45], presidido pelo membro do Ministério Público, são exemplos disso.

            A Constituição, ao estabelecer a atribuição da polícia civil não afirmou, em momento algum, que a investigação de ilícitos penais lhe cabe de maneira privativa.

            Dessarte, conclui-se, sem esforço algum de cunho intelectual, que as investigações criminais podem ser presididas por outros órgãos sem que a Constituição seja ferida.

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Sobre o autor
Roger Spode Brutti

Delegado de Polícia Civil no RS. Doutorando em Direito pela Universidad Del Museo Social Argentino (UMSA) de Buenos Aires/Ar. Mestre em Integração Latino-Americana pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Especialista em Direito Penal e Processual Penal pela Universidade Luterana do Brasil (ULBRA). Especialista em Direito Constitucional Aplicado pela Universidade Franciscana do Brasil (UNIFRA). Especialista em Segurança Pública e Direitos Humanos pela Faculdade de Direito de Santa Maria (FADISMA). Graduado em Direito pela Universidade de Cruz Alta/RS (UNICRUZ). Professor Designado de Direito Constitucional, Direito Processual Penal e Direito Penal da Academia de Polícia Civil do Estado do Rio Grande do Sul (ACADEPOL/RS). Membro do Conselho Editorial da Revista IOB de Direito Penal e Processual Penal. especializando em Segurança Pública e Direitos Humanos pela Faculdade de Direito de Santa Maria (FADISMA), professor de Processo Penal da Academia de Polícia Civil do Estado do Rio Grande do Sul (ACADEPOL/RS)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BRUTTI, Roger Spode. O princípio da insignificância e sua aplicabilidade pela Polícia Judiciária. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 899, 19 dez. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/7722. Acesso em: 26 abr. 2024.

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