A função contramajoritária do Supremo Tribunal Federal em omissões penais prejudiciais às minorias

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Diante de lacunas legislativas referentes à não concretização de mandamentos constitucionais de criminalização, a atuação da Corte Suprema em prol de direitos e garantias fundamentais torna-se necessária, mas enfrenta uma minuciosa problemática.

Introdução

Finalidade precípua de uma Constituição, que consubstancia sua razão de ser, consiste em, além de constituir um Estado e limitar seus poderes inerentes, instituir defesas à suas minorias políticas. Por conseguinte, merece análise as situações de omissões penais em desfavor de grupos minoritários, sob a ótica da (necessária) atuação do Supremo Tribunal Federal.

 

O NEOCONSTITUCIONALISMO E A FUNÇÃO CONTRAMAJORITÁRIA DO SUPREMO

A partir do neoconstitucionalismo, pós 2ª Guerra Mundial, consequência dos esforços dispendidos para superar as barbáries facistas e evitar o advento de novos Estados autoritários, com base em estudos como os de Konrad Hesse (1991), surgiu a necessidade de dotar as Constituições de uma mais efetiva força normativa. Nessa linha, Luís Roberto Barroso (2017, p. 07):

(...) passou a ser premissa do estudo da Constituição o reconhecimento de sua força normativa, do caráter vinculativo e obrigatório de suas disposições. Vale dizer: as normas constitucionais são dotadas de imperatividade, que é atributo de todas as normas jurídicas, e sua inobservância há de deflagrar os mecanismos próprios de coação, de cumprimento forçado.

 Neste cenário, o Poder Judiciário, em especial as supremas cortes dos países que adotaram o controle de constitucionalidade concentrado, assumiu posto de destaque, sendo responsável por defender o texto magno, controlando atos dos demais poderes. Na medida em que tal possibilidade fornece a juízes togados, não eleitos, a possibilidade de decidir e até mesmo invalidar atos de agentes eleitos e representativos, representa verdadeira função contramajoritária, condicionando a vontade de uma maioria à ordem constitucional (BARROSO, 2017, p. 27). Trata-se de verdadeiro esforço para adequar a representatividade ao Estado constitucional, democrático e pluralista. Consoante a Daniel Innerarity (2017, p. 59):

(...) muitas vezes, pode ser necessário corrigir a representação; não para que ela reflita, como um espelho, a sociedade, e sim para evitar a dominação histórica de certos grupos por outros quando a teórica igualdade de condições não é suficiente para que haja participação efetiva de todos.

  as omissões inconstitucionais e os mandamentos constitucionais de criminalização          

A Constituição Federal brasileira prevê expressamente em seu artigo 102, inciso I, alínea “a”, a atribuição do Supremo Tribunal Federal para o julgamento das Ações Declaratórias de Inconstitucionalidade, de efeito erga omnes. Compreendida em tal atribuição está não só a declaração de inconstitucionalidade positiva, a qual ocorre quando há a infração de dispositivos magnos através de um comportamento ativo, mas também a declaração de inconstitucionalidade por omissão, prevista no artigo 103, § 2º da Constituição Federal, que advém da inércia em concretizar dispositivos e princípios constitucionais. Corolário de tal advento, a Corte Suprema, vez que tutela a Carta Magna, sendo capaz de sobrepujar as decisões dos demais poderes aos mandamentos constitucionais, assume a árdua tarefa de defender as minorias políticas, contra infrações (ativas ou omissivas) de seus direitos fundamentais.  

 Nessa linha, sendo notório que o Estado pluralista e Constitucional da atualidade requer a erradicação de certos comportamentos repressivos a grupos minoritários, como é possível depreender de enfáticos dispositivos que disciplinam a essência da Constituição Federal brasileira, por exemplo, tais quais o artigo 1º, incisos III e V, c/c artigo 3º, incisos I e IV, surgem verdadeiros mandados constitucionais de criminalização. O próprio fundamentalíssimo artigo 5º da Carta Magna expõe, em seu inciso XLI que:

XLI. A lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais.

 Entretanto, estes mandamentos acabam por não serem concretizados pelos Poderes representativos, visto que são justamente constituídos pelas maiorias diametralmente opostas.  O Supremo Tribunal Federal, portanto, neste contexto, é a única instância a que podem estes grupos se socorrer, para, no exercício de mencionada função contra majoritária, enfrentar as omissões penais constitucionalmente relevantes.

POSSÍVEIS EFEITOS DE UMA DECISÃO DO SUPREMO: OS PRINCÍPIOS EM CONFLITO 

Recentemente, a citada Suprema Corte enfrentou, em polêmico julgamento, a ADO nº 26, que tratava da criminalização da homofobia. Visava a ação a declaração da mora do Congresso Nacional em cumprir o mandamento incriminador do dispositivo retro transcrito, omitindo-se em dar concretude a criminalização de uma forma de discriminação que nitidamente atenta contra direitos e liberdades fundamentais.

  Entretanto, o resultado da atuação do Supremo em casos como este enfrenta certos óbices. O conflito começa a se enraizar na medida em que, caso a decisão nestas causas tenha efeito meramente “apelativo”, qual seja o de “declarar a mora” do Poder Legislativo, sem, contudo, utilizar-se de nenhum mecanismo para compeli-lo a efetivar o mandamento constitucional, a força normativa da Constituição, tão buscada pelo neoconstitucionalismo, é desvencilhada, na medida em que não é imposta, mas “recomendada”, voltando neste ponto ao mesmo sentido de mera norma programática que possuía antes do século XX. Tal efeito é criticado, por exemplo, por Flávio Martins (2019, p. 579), para o qual enquanto o provimento final consistir em mero apelo há provocação da máquina jurisdicional de modo inútil.

  Consoante a Gilmar Mendes (2008, p. 13), inobstante, a própria jurisdição constitucional brasileira tem desenvolvido diferentes técnicas de decisão, considerando que, para o caso de omissão, a invalidação prevista nas ações por atos inconstitucionais não seria eficaz.

  Contudo, por outro lado, caso a decisão emanada tenha o condão de impor ao poder omisso o suprimento da lacuna inconstitucional, haverá confronto com o princípio da tripartição dos poderes e da legalidade, posto que, de acordo com o artigo 5º, inciso XXXIX, cabe à lei criminalizar condutas e esta é resultado de processo do Poder Legislativo, e não do Poder Judiciário. Mesmo caso a decisão tenha efeito similar ao de uma “sentença aditiva”, a indicação de uma norma para reger a omissão penal ou do modo com o qual a omissão deva ser tratada dificilmente não contrariar-se-á o princípio da reserva legal.

PROPOSTA DE SOLUÇÃO

Ante ao nítido contexto problemático narrado, verifica-se urgente necessidade de uma solução obtida através da ponderação dos princípios em questão, de forma a prosperar o caminho que garanta a melhor aplicação possível de todos eles. 

Conforme já apontado, o relevante papel assumido pelo Judiciário, em especial o Supremo Tribunal Federal no Brasil, remonta aos esforços para garantir força normativa à Constituição e aos direitos e garantias fundamentais contidos em seu bojo. Logo, em uma situação como esta, em que se coloca em cheque a eficácia de mandamentos constitucionais de tal relevo, requer-se imperiosamente a adoção de medidas que possam evitar a erosão de sua força normativa, tendente a dar guarida a crises humanitárias. 

Por consequência dos fatores históricos e evolutivos apresentados, é necessário que a Suprema Corte, no exercício de sua legítima função jurisdicional, seja colocada como um óbice à inércia do Poder Legislativo, de tal modo que esta atuação não represente uma usurpação de poderes, mas sim uma verdadeira concretização do sistema de freios e contrapesos idealizados por Montesquieu.

Logo, interessante resolução seria analisar situações análogas de interação dos Poderes, para tentar estruturar um sistema para o enfrentamento das omissões inconstitucionais penais prejudiciais aos grupos minoritários que considere e preserve a vasta gama de princípios em jogo.

Assim, verifica-se que no caso das ADIN's, diante de inconstitucionalidades positivas,  há eficácia em concretizar os emanamentos constitucionais, bem como há aceitação doutrinária unânime, visto que o STF se atém a declarar a inconstitucionalidade, sem usurpar a função legislativa, mas, ao mesmo tempo, o ordenamento garante vinculatividade a essa decisão. 

Ademais, outra interessante interação de Poderes reside nos procedimentos das Medidas Provisórias, que coloca o Executivo e o Legislativo em dialética, concretizando nítido exemplo do sistema de freios e contrapesos. Interessante trazer à tona, neste contexto, mais especificamente, o efeito do trancamento de pautas, que serve para compelir o Poder Legislativo a apreciar a matéria do ato (com efeito de lei) emanado pelo Presidente da República. 

Portanto, interessante solução à controvérsia em tela consiste na definição de um mecanismo jurídico constitucional próprio para as omissões penais inconstitucionais prejudiciais às minorias, que tenha o condão de declarar a mora do Poder Omisso, mas não fique apenas na esfera apelativa, revestindo-se do efeito de "trancar a pauta" do Legislativo enquanto não solucionada a omissão apontada pela Corte Suprema.

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Ainda, por óbvio, deve este instrumento proposto ser revestido por limites rigorosos e minuciosos, com o intuito de evitar ativismos judiciais demasiadamente irrazoáveis, que possam dar origem a uma verdadeira "ditadura judiciária". 

conclusão

Ante a todo conteúdo abordado, resta-se evidenciado a polêmica residente no fato de que conflituam princípios e valores basilares do Estado Democrático no qual se assenta a República Federativa do Brasil.

Ademais, indo além, trata-se de uma controvérsia que diz respeito a aplicabilidade da Constituição e de direitos e garantias fundamentais, remontando à evolução histórica mundana para evitar novas bárbaries humanitárias. Evidente que qualquer argumentação gerará contraposições e incitará discussões, mas há urgente necessidade do uso da dialética para que uma solução seja definida. Presente artigo ateve-se a descrição do contexto problemático criado e emanou uma proposta de intervenção, pautada no fato de que concretizar a letra da Constituição é essencial e deve ser o principal norte de qualquer estudo acerca do tema. 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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BARROSO, Luís Roberto. Countermajoritarian, Representative, and Enlightened: The roles of constitutional tribunals in contemporary democracies. Revista Direito e Práxis, [s.l.], v. 9, n. 4, p.2171-2228, out. 2018. FapUNIFESP (SciELO). http://dx.doi.org/10.1590/2179-8966/2017/30806

BARROSO, Luís Roberto. Neoconstitucionalismo e constitucionalização do direito: O triunfo tardio do Direito Constitucional no Brasil. Jus Navegandi, Teresina, v. 10, n. 851, 1 nov. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/7547. Acesso em: 09 set. 2019.

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil, de 05 de outubro de 1988. Brasília, DF, 05 out. 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm. Acesso em: 10 set. 2019.

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FONTES, Paulo Gustavo Guedes. Criminalização da homofobia: decisão do STF preserva legalidade e anterioridade penal. 2019. Disponível em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/criminalizacao-da-homofobia-decisao-do-stf-preserva-legalidade-e-anterioridade-penal-11062019. Acesso em: 09 set. 2019.

HESSE, Konrad. A Força Normativa da Constituição. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1991. 34 p.

INNERARITY, Daniel. A política em tempos de indignação: a frustração popular e os riscos para a democracia. Rio de Janeiro: LeYa, 2017. 303 p.

MARTINS, Flávio. Curso de Direito Constitucional. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2019. 1632 p.

MENDES, Gilmar. Curso de Direito Constitucional. 11. ed. São Paulo: Saraiva, 2016. 1504 p.

MENDES, Gilmar. Jurisdição Constitucional no Brasil: o problema da omissão legislativa inconstitucional. 2008. Disponível em: http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=90357&sigServico=noticiaArtigoDiscurso&caixaBusca=N. Acesso em: 10 set. 2019.

MONTESQUIEU. Espírito das Leis. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1996.

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Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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Artigo escrito para fundamentar apresentação em Programa de Iniciação Científica do VIII CICTED (Congresso Internacional de Ciência, Tecnologia e Desenvolvimento) realizado pela Universidade de Taubaté, no ano de 2019.

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