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Direito e Antropologia:

os direitos humanos como espaço de diálogo

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Ainda hoje, qualquer proposição que intente discutir a temática dos Direitos Humanos (DH) pode, imediatamente, despertar uma sensação de dejà vu. Em parte, isso se deve à conotação que a história da luta em defesa dos DH assumiu no Brasil. Afinal, como se sabe, em que pese o fato de ser extenso o rol de violações desses direitos na história brasileira e de que subjazem inúmeras formas de desrespeito à vida, foi por ocasião da ditadura militar que as iniciativas para garantir a integridade física e da vida dos presos políticos ganharam projeção. Naquele momento, também a luta pela reconquista das liberdades democráticas constava na pauta dos grupos de defesa dos DH.

Muitas vezes esses grupos foram inspirados por um marxismo ingênuo: ao negarem a interpretação de cunho liberal de que a ‘lei deve atender a todos’ desconsideraram a instância jurídica, o campo do Direito, como espaço possível com instrumentos à disposição para a sua luta. Contudo, limites para a utilização desses instrumentos de fato existiam (e existem!): a falta de regulamentação de normas constitucionais e a ineficácia de mecanismos previstos em lei ante uma "cultura" da magistratura que inviabiliza a rapidez de julgamento de questões. Esse, por exemplo, é o caso do habeas-corpus, em geral concedido após a autoridade coatora prestar informações sobre o coagido, quando então qualquer medida de proteção pode ser tardia.

Já em outra conjuntura política, reduzidas as violações aos DH provocadas pelo "regime de exceção", a chamada transição política e as resistências de diferentes ordens impuseram novas demandas à defesa desses direitos, nem sempre respondidas com ações eficazes e organizados sob o rótulo de "DH" e sem o mesmo apelo dos meios de comunicação. Nessa perspectiva, a promulgação da Carta Magna de 1988 foi um desses momentos em que as várias lutas que vinham sendo construídas pelos direitos dos trabalhadores e das minorias convergiram e avançaram.

No que diz respeito aos negros, por exemplo, resultante de um processo de discussão de militantes e estudiosos da questão interétnica, especialmente antropólogos que se dedicam à temática, a Constituição definiu o racismo como crime inafiançável e imprescritível. Porém, mesmo depois de definidos os crimes resultantes de preconceito de raça ou de cor pela lei 7.716, deve-se considerar que, ainda, a tipificação desse crime é problemática. Para garantir o respeito aos seus direitos, muitos negros valem-se da estratégia de obter respaldo no Código Penal, no qual crimes como constrangimento ilegal, calúnia e difamação estão previstos. O acesso à justiça continua estreitamente relacionado aos níveis de renda e escolaridade da população brasileira, o que parece ratificar o tratamento oferecido aos de negros e outros segmentos discriminados como cidadãos de segunda categoria.

São inúmeras as dificuldades que advogados, militantes e estudiosos das relações interétnicas têm enfrentado para criminalizar o racismo no país, através dos canais legais existentes. Como lembra Hédio Silva Jr., analisando a intersecção entre direito e relações raciais no país, "a inscrição do princípio da não-discriminação e as reiteradas declarações de igualdade têm sido insuficientes para estancar a reprodução de práticas discriminatórias na sociedade brasileira"(1998, p. VI). De qualquer maneira, a coletânea de leis brasileiras anti-racistas, organizada por esse autor, buscou "explorar outras respostas disponíveis no ordenamento para a violação do direito à igualdade, a exemplo da responsabilidade civil objetiva por discriminação prevista no Art. 1º da Convenção 111 e no Art. 6º da Convenção contra todas as formas de discriminação racial"(p.VIII-IX). De fato, essas duas convenções [01], assim como a Convenção relativa à luta contra a discriminação no campo do ensino [02], podem oferecer argumentos importantes para a implementação de políticas de ação afirmativa para os negros no campo educacional, essa polêmica discussão da atualidade. Desde que também sejam devidamente contextualizadas, uma vez que o ordenamento jurídico não pode ser dissociado de necessidades sociais construídas historicamente.

Anos depois, a ausência de regulamentação de muitos artigos da "Constituição cidadã", a manutenção e a agudização de um quadro social que tem penalizado amplas parcelas não só da população brasileira mas da mundial, por si, justificam a continuidade da luta pelos DH. Não fosse por isso, a "aparência da mesmice" na discussão sobre os DH se desfaz completamente, quando se resgata o contexto histórico do surgimento dessa preocupação em termos universais. Nessa perspectiva, somos obrigados a admitir seu caráter ainda jovem, de pouco mais de 50 anos.

Se a discussão sobre os direitos do homem inicia-se no século XVIII, com o ordenamento jurídico dos Estados e, no século XIX, toma corpo com o estabelecimento da ordem burguesa cujo marco de maior expressão foi a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, uma das conquistas da Revolução Francesa, é somente em 1948, com o término da Segunda Guerra Mundial que, criada a ONU, os Direitos Humanos passam a fazer parte da agenda internacional.

Com base na Declaração Universal, a aprovação do Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos e de outros textos importantes, em 1966, os Direitos Humanos deixaram de ser assunto de responsabilidade interna e exclusiva aos Estados. Nesses pactos internacionais, em vigor desde 1976 - mais uma vez demonstrando o pouco tempo de existência dessa preocupação-, é definido o direito à autodeterminação:

Todos os povos têm o direito à autodeterminação. Em virtude deste direito estabelecem livremente a sua condição política e determinam, outrossim, seu desenvolvimento econômico, social e cultural (apud Goffredo, 1989, p 89).

Desse modo, são consubstanciados o caráter universal e singular dos Direitos Humanos. Nessa perspectiva, recoloca-se, nessa discussão, o problema central da Antropologia: pensar a humanidade formada por seres que compartilham uma mesma e única natureza, como uma coisa só; de outro lado, compreender e definir essa natureza humana em relação à diversidade sócio-cultural produzida como sua marca distintiva e necessária.

Em outra oportunidade, defendemos uma antropologia de alcance universal, que não deve abrir mão de uma característica que dirige os trabalhos de pesquisadores desse campo do conhecimento: a busca constante de dados empíricos que caracterizem o cotidiano de grupos estudados. Isso sem se furtar ao compromisso científico de inserir tais micro-realidades  num contexto mais amplo de compreensão (Valente, 1997). Nessa perspectiva, também as reflexões de autores europeus, muitas de cunho pragmático porque relacionadas com táticas políticas a serem desenvolvidas na estratégia da transformação social, sinalizaram que a conjunção do singular, do particular e do universal poderia potencializar um novo modelo de integração. Supõe-se idealmente que cada um se reconheça numa visão política comum, para além das diferenças individuais e de grupo, porque a democracia não é possível senão quando um direito comum regula a coexistência das liberdades individuais e particulares.

Assim, já não basta afirmar a pluralidade do universal, mas é preciso buscar respostas para as possibilidades de articulação dos valores universais e das especificidades culturais. Não se trata mais de apenas pensar a construção de sociedades democráticas, mas de salvaguardar os seus princípios como prática e como idéia, posto quer a "democracia está à prova, lá mesmo onde se acreditava que estivesse solidamente instalada" (Wieviorka, 1993, p. 10). Isto porque a desafiam o nacionalismo, o populismo, a etnicidade, o racismo, as violências urbanas, a exclusão e a grande pobreza que marcam a nossa época.

Como diagnostica Touraine,

O Estado nacional (...) que era sobretudo um conjunto de mediações entre a unidade da lei ou da ciência e a diversidade das culturas, se dissolveu no mercado ou, inversamente, se transformou em um nacionalismo identitário intolerante que desemboca no escândalo da purificação étnica e condena as minorias à morte, à deportação, à violação ou ao exílio. Entre a economia mundializada e as culturas agressivamente fechadas sobre si mesmas e que proclamam um multiculturalismo absoluto pleno de recusa do outro, o espaço político se fragmenta e a democracia se degrada (1994, p. 10).

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Nos termos explicitados por Wieviorka, as respostas que devem ser buscadas referem-se à seguinte interrogação: 

(...) é possível rearticular a razão e a cultura, o universal e os particularismos, não viver num universo pós-moderno no qual as tribos se esbarrariam ou se enfrentariam enquanto que as estratégias das grandes empresas, passando por sobre a cabeça dos Estados, viveriam sem comunicação com as forças tribalizadas das sociedades por toda a parte atomizadas e individualistas? (1994, p. 111).

Para Giraud, a crise de legitimidade e de identidade nacional poderá ser enfrentada na invenção de novas modalidades de regulação social e política, de novas formas de exercício da democracia. Trata-se de ver se  "é possível emergir um ‘ novo modelo republicano ’ que permita conjugar o singular o particular e o universal, ao invés e no lugar da disjunção atual dessas realidades, e que constituiriam uma via mediana entre assimilacionismo e pluralismo "(1994, p.120).

Ou ainda, para Gosselin, "o ‘direito à diferença’ não pode constituir-se em fundamento do Estado de direito se ele não é ligado ao que chamaria de um pacto de cidadania". Desse modo,

(...) o apelo aos valores universais, em primeiro plano nos quais a unidade do homem - que funda os limites do relativismo cultural - permite assim, suscita e mesmo exige, uma pedagogia dessa relatividade, um aprendizado das diferenças. Fora dessa afirmação ética, como ser partidário de uma ‘sociedade pluricultural’ sem renunciar ao Estado de direito?(Gosselin, 1994, p.133-4).

Ou, "como ser partidário de um mundo rico de suas diferentes culturas sem renunciar à identidade mesma do homem, à sua igualdade na dignidade?"(Gosselin,1994, p. 137).

Assim, o campo de estudo da Antropologia pode desenvolver um trabalho rico na discussão dos DH, em particular no diálogo com a instância jurídica, com o campo do Direito propriamente dito, nem sempre sensível á articulação necessária entre direitos universais e os direitos à autodeterminação, à diferença. Não deixa de ser uma tarefa árdua e complexa, na medida em que é terreno atravessado por conflitos, contradições e ausência de consenso. Contudo, essa discussão deve ser enfrentada.


Referências Bibliográficas

GIRAUD, Michel. la démocratie entre universel et particulier. In: GOSSELIN; OSSEBI. Op. cit., p.115-129.

GOFFREDO, Gustavo Sénéchal de. Direitos Humanos e nova ordem econômica internacional: a trajetória do Terceiro Mundo. In: FESTER, Antonio Carlos Ribeiro(org.) Direitos Humanos- Um debate necessário. São Paulo: Brasiliense, 1989.

GOSSELIN, Gabriel; OSSEBI, Henri (dir.) Les sociétés pluriculturelles. Paris: L’Harmattan, 1994.

GOSSELIN, Gabriel. Les ambiguités du droit à la difference. GOSSELIN;OSSEBI. Op. cit., p.131-140.

SILVA JR., Hédio. Anti-racismo – coletânea de leis brasileiras – federais, estaduais e municipais. São Paulo: Editora Oliveira Mendes Ltda., 1998.

TOURAINE, Alain. Qu’est-ce que la démocratie? Paris: Fayard, 1994.

VALENTE, Ana Lúcia E. F. Por uma antropologia de alcance universal. Cadernos Cedes. Campinas, 43, pp. 58-74, 1997.

WIEVIORKA, Michel. La démocratie à l’épreuve - nationalisme, populisme, ethnicité. Paris: La Découverte, 1993.

__________. La nouvelle question urbaine en France. In: GOSSELIN, OSSEBI. Op. cit., pp. 103-114.


Notas

01 A primeira foi promulgada em 1968, no Decreto n. 62.150, de 23 de janeiro, e a outra no Decreto 65.810, de 8 de dezembro de 1969 (Silva Jr., 1988, p.10-4 e p.22-35).

02 Promulgada pelo Decreto n. 63.223, de 6 de setembro de 1968 (Silva Jr., 1988, p. 15-21).

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Sobre os autores
Ana Lúcia Eduardo Farah Valente

Doutora em Antropologia Social - USP. Professora e pesquisadora da UnB. Pós doutorado na Université Catholique de Louvain. Pós doutorado em Economia em andamento na UnB.

Rodolfo Farah Valente Filho

bacharel em Direito em São Paulo (SP)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

VALENTE, Ana Lúcia Eduardo Farah ; VALENTE FILHO, Rodolfo Farah. Direito e Antropologia:: os direitos humanos como espaço de diálogo. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 905, 25 dez. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/7734. Acesso em: 16 abr. 2024.

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