Cena 1 - Um histórico "Dia D", longo demais para ser esquecido
Em meados de 2019 foram comemorados os 75 anos do "Dia D", a invasão aliada da Normandia, quando soldados ingleses, americanos e canadenses foram morrer em terra estrangeira para libertar a Europa Ocidental que, exaurida desde a Retirada de Dunquerque, estava submetida à tirania nazi-fascista.
Em 6 de junho de 1944, que ficou conhecido como"o mais longo dos dias", a parte mais próspera, mais influente, mais admirada do continente europeu, que havia elevado a civilização aos píncaros, foi o palco de batalhas sangrentas e, a partir de vitórias com muitas baixas, houve o reencontro das várias nações com o que ficou conhecido como "a libertação", sucedida pela descoberta indissimulável do submundo que os nazistas haviam implantado, com os campos de extermínio, as experiências biológicas inúteis e grotescas, o sequestro dos bens culturais e a política da terra arrasada, que deixou extensas áreas europeias sob escombros.
A vitória foi comandada por um general que não teve, em toda a sua carreira, nenhuma experiência de combate e que comparecia ao front somente para visitas, fora das batalhas, quase sempre trajando uniforme de passeio. Ironia suprema foi o alijamento dos generais combatentes mais prestigiados, George Patton, no Ocidente, e Douglas MacArthur, no Oriente, que haviam sido testados ainda jovens em batalhas já na I Guerra Mundial,
As principais ações de ataque pelo norte da Europa foram inicialmente comandadas pelo general inglês Bernard Montgomery e pelo general americano Omar Bradley, enquanto o comandante geral Dwight Eisenhower - transformado em um herói de guerra que nunca combateu -, fazia o planejamento das operações. Talvez fosse bom nessa coordenação, o que se subentende pelo resultado, com a derrota do nazi-fascismo, mas nunca praticou ato heroico e também nunca se envolveu com o sacrifício. Além disso, havia afastado o brilhante tático de guerra que era o general George Patton, principal comandante na invasão da Itália pelo sul, porque antipatizava com sua conduta de comando.
No Oriente, onde servia MacArthur, a conquista do Japão obedeceu a um plano do almirante Chester Nimitz. A estratégia de conquista de ilha por ilha levou a alguns desastrosos revezes e prolongou a guerra. Afinal, o Japão só libertou-se do fascismo e se democratizou diante da hecatombe bíblica da bomba atômica e com a perda da condição de um imperador-deus que legitimou, como suprema honra decorrente de um destino japonês superior, todas as atrocidades praticadas na Coreia, Manchúria chinesa, Filipinas e Indochina.
As estratégias de Eisenhower e de Nimitz custaram muitas vidas; nunca se saberá se inutilmente, pois a proporção da guerra era tal que todos os sacrifícios eram tidos como 'condizentes' com o que se pretendia.
Porém, o mundo nunca honrará suficientemente aqueles que invadiram a Europa e o Japão, morrendo em terra estranha, talvez tendo bem presente seus objetivos de combate, mas só remotamente o das suas causas.
Gerações e mais gerações terão de quebrar o orgulho de serem inventoras de 'seu' mundo e reconhecer, com humildade e grandeza, o quanto devem aos que se sacrificaram e refizeram os padrões históricos em meados do Século XX, para que a civilização tivesse um fôlego e pudesse estender suas regras de convivência e de criação, bem como suas leis, por mais tempo.
Cena 2 - As "guerras" travadas nos tribunais: de quem é o êxito e quem se sacrifica
O escritor alemão Bertolt Brecht, que viu a ascensão do nazismo belicoso, em seguida o arrasador conflito mundial de cinco anos e, afinal, o pós-guerra, com seu país destruído (e dividido até o fim da sua vida); que escreveu versos conhecidos que tratam da glória dos generais e do sacrifício dos soldados, em todos os tempos; que quis falar aos "operários letrados" para que o entendessem e pensassem sobre as causas que determinam as ações em suas vidas, independente do que tenham escolhido; que perdeu amigos queridos, como o filósofo Walter Benjamin, no 'suicídio inútil' que tantos foram levados a praticar, sob muitas formas, uns por omissão, outros por medo, outros ainda por desespero ou desânimo, como também aconteceu com Stefan Zweig no Brasil; que acreditou em transformações que não vieram e que foram terrivelmente distorcidas em sua pátria sob Walter Ulbricht e Erich Honecker e, afinal, calaram sua boca por dissuasão e confiscaram sua pena pelo cansaço de suas ideias, a ponto de ter sido criticado por Stalin, por não ter mais produzido nada de significativo depois que se tornou diretor da Ópera de Berlim (Oriental); esse mesmo Brecht deixou uma preciosa apreciação sobre uma outra 'guerra', que se trava nos tribunais, na forma de um poema para ser musicado ou declamado em um entreato da peça teatral "A Exceção e a Regra". Essa outra guerra não nos pode ser ignorada; dela nós conhecemos as entranhas.
É um trecho pouco conhecido, o que o faz tanto perspicaz como raro em nosso meio:
A canção dos tribunais
(Lied von den Gerichten)
No seguimento das hordas do bando de ladrões
Os tribunais emergem
Quando o inocente é assassinado
Os juízes juntam-se sobre ele e o condenam
Junto ao túmulo do que é assassinado
Seu direito será assassinado.
Os veredictos do tribunal
Caíram como as sombras de um punhal
Ah! A sombra de um punhal ainda não é suficientemente forte!
O que é preciso
Como comprovação da sentença?
Olhe o voo!
Para onde vão os abutres?
O deserto desprovido de alimento os expulsa:
Os salões do tribunal irão alimentá-los.
Para lá voam os assassinos.
Os perseguidores estão lá em segurança. E lá
os ladrões escondem seus roubos,
enrolados em um papel, sobre o qual está a lei.
(Tradução de Suzana Campos de Albuquerque Melo, autora da tese “A Exceção e a Regra, de Bertolt Brecht, ou a exceção como regra”, dissertação de pós-graduação em literatura alemã na USP, 2009, publicada na Internet)
Cena 3 - A dimensão distorcida do "Dia 3D", nefando demais para ser lembrado no futuro
Nos dias que correm, o Supremo Tribunal Federal encontra-se debruçado sobre um problema que ele mesmo criou. Com os julgamento decorrentes da Operação Lava-Jato já bem adiantados, foi ali aprovada a tese de que a execução provisória começaria após o julgamento confirmatório de segundo grau, porque a causa já teria sido submetida a uma apreciação colegiada que esgotaria a matéria de fato e, portanto, encerraria o exame da prova. A partir de então, os recursos cabíveis, que são o especial, para o STJ, e o extraordinário, para o STF, só poderiam tratar das questões de direito que envolvem o enquadramento legal e a aplicabilidade das regras, a jurisprudência vinculativa ou predominante e os incidentes de rito, como de todas as demais questões processuais relativas à legalidade e à constitucionalidade.
Essa tese foi vitoriosa pela primeira vez no julgamento do HC-SP 126292, denegado em 17.12.2015, tendo ficado vencidos quatro ministros, R. Lewandowski, R. Weber, C. de Mello e M. Aurélio. Na verdade, foi invocado pela maioria o precedente das Súmulas 716 e 717, do próprio STF, pois elas preveem expressamente o direito à progressão de pena quando a sentença condenatória venha sendo cumprida mesmo sem o trânsito em julgado, o que implica no reconhecimento implícito, tanto quanto necessário, da execução provisória.
Estabelecido isto desde então, por quase quatro anos, o que se seguiu foi o 'imbroglio' que o próprio Supremo armou ao passar a considerar fatores de ordem empírica, como as circunstâncias da prisão de determinados sentenciados, a repercussão nos meios partidários, as manifestações de simpatizantes dos condenados, a hostilidade à Operação Lava-Jato, localizada nas pessoas com ela envolvidas ou com seus métodos, mas - principalmente - o alcance da operação, atingindo políticos, ministros, grandes empresários, parentes de pessoas que se julgam importantes socialmente, celebridades e "tutti quanti" em uma sociedade acentuadamente desigual se consideram "mais iguais do que os outros".
O 'imbroglio' foi-se formando gradativamente com argumentos descosidos que expressavam a necessidade de resguardar poderes, de respeitar limites, de não criminalizar a atividade política e não judicializar temas que deveriam estar reservados aos partidos e ao exercício parlamentar. Começou-se a falar, embora de uma forma totalmente delirante, mas reiterada, em poder moderador, que não está previsto em absolutamente nenhuma regra do Direito Positivo.
Depois, predominou o discurso sobre podar excessos. Por fim, em impedir ações investigatórias que tinham alcance 'espetacular' e, então, em reprimir disciplinarmente juízes, policiais e o MP, não sem antes cassar sistematicamente suas decisões e iniciativas investigatórias, até desembocar na tese, inspirada talvez na "solução final" de Hitler, de anular tudo.
Poucas vezes na história do país tantos interesses diversos se reuniram sob o signo da autoproteção, seja para resguardar os seus titulares, seja para a defesa de seus negócios, status e reserva de ganhos como classe ociosa, isto é, através de manobras ilegais, de favorecimento, troca de influência, do nepotismo ou, simplesmente, de negociatas.
Hoje o Supremo está atolado no caminho que ele próprio traçou para sua atuação.
Presidido por um ministro que obteve o cargo por notória vinculação partidária - e exclusivamente em razão dela - que nunca produziu nenhuma análise teórica de matéria jurídica, não tem igualmente nenhuma titulação acadêmica que o recomende bem para o cargo, nada publicou e, para coroar, foi reprovado duas vezes em concursos para juiz de Direito no Estado de S. Paulo.
Também é composto por outro ministro - o mais novo na Corte, a quem o primeiro encarregou de ser 'delegado de polícia' com plenos poderes para exercer investigação em qualquer lugar do país, envolvendo qualquer pessoa, tudo devidamente resguardado pelo segredo de justiça e sem a participação deliberativa da autoridade policial, como do MP -, cuja notoriedade vem do fato que comercializou (e continua fazendo, pela Internet) apostilas de Direito Constitucional, muito conhecidas pelos que prestam concursos públicos, sendo que o Brasil conta com grandes constitucionalistas teóricos, com produção e erudição reconhecidas nessa área.
Apostila é uma coisa, teoria constitucional é outra. E a diferença é brutal.
No julgamento que está em curso, sobre a anulação de processos oriundos da Operação Lava-Jato, o Supremo não encontrará a saída, pois entrou em um labirinto em que todas as posições, inclusive as mais volúveis, todas as fidelidades a teses, incluindo as mais levianas, foram adotadas e abandonadas em sucessão caótica.
Não existe nenhuma oposição de tendências 'garantistas' e 'legalistas' e pensar o contrário é um fogo-fátuo que será perseguido sem êxito. Os garantistas de hoje são os legalistas de ontem, ou vice-versa, e se forem escolhidos outros nomes para tais supostas tendências ocorrerá o mesmo.
O Supremo não só invade a competência legislativa, como invalida leis processadas regularmente e ainda elabora intermináveis 'efeitos modulatórios', uma panaceia que é invocada, por falsa osmose do Direito americano, para desdizer o que foi dito no julgamento, e seguido invalidou regras que estavam bem mais claras antes do acórdão que as desfez.
Por isso, "o mais longo dos dias" do STF não será apenas um dia; talvez seja um dia estendido por vários.
Não será também nenhum "dia D" a ser lembrado pelos tempos afora, pois falta comando, organização, objetivo lícito, autenticidade e heroísmo. Todos querem se "salvar", mas o quadro é de tamanha deterioração que não há salvação possível para ninguém.
Não é, pois, especulativo - e muito menos aberrante - que se situe na mentalidade (chamemos assim por cortesia) que a Corte Suprema implantou mirando o éter, o fator determinante da conclusão que virá no "dia 3D".
"3D" porque será o dia da consagração do dissenso.
O Tribunal não sabe para onde vai e, portanto, conforme o entendimento fabulado, não lhe interessa a direção do vento. Todos dissentem de todos e os que se mais se aliam são os que mais se digladiavam anteriormente.
O STF também consagrará uma orientação dissonante.
Dissonante do que ele tem construído historicamente. Não importa mais o que se disse antes e o que se dirá depois. O momento é o do costumeiro salve-se quem puder. Talvez um ministro, mais falsamente circunspecto, diga que tal momento é o da "manus in jectio", como era conhecida essa prática pelos navegadores da antiguidade: diante da procela, jogue-se a carga ao mar.
Ainda não se sabe se é o que será feito, nem se foi isso o que ocorreu com os barris de petróleo jogados sobre as praias nordestinas.
Mas o resultado será o mesmo.
Por fim, o terceiro "D" com que o Supremo coroa sua exaltação está no papel dissolutório que assumiu.
Nada mais ficará em pé.
Enfim nossa Corte Suprema encontrou uma aplicação "jurídica" para a 'realidade líquida' mencionada pelo sociólogo polonês Zygmunt Bauman, sobre quem - injustamente - recaiu um esquecimento precoce após sua recente morte.
Só que o STF não será beneficiado pelo esquecimento.
Cena final: a Constituição negada
Como salientou em sua obra "A Constituição na Vida dos Povos", Dalmo de Abreu Dallari tem no mais alto grau de garantia a regra que está inscrita no artigo 16 da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 26.08.1789, logo no início da Revolução Francesa, pois ela contém o anátema da ilegalidade:
"Toda sociedade na qual a garantia dos direitos não esteja assegurada, nem a separação dos poderes determinada, não tem Constituição."
Esta é a situação presente do Brasil, a da Constituição que não temos, porque sua interpretação pelo Supremo a nega.
Como no poema de Brecht, a exceção vituperou a regra.
Se o povo invadisse o prédio do STF não seria para agredir os ministros, mas para obrigá-los a ler em voz alta, fixando com orgulhosa altivez a câmara da TV Justiça, o artigo 16 da Declaração escrita pelos revolucionários franceses e para recitar o poema brechtiano de "A Exceção e a Regra".
Se uma Suprema Corte não garante direitos, como eles foram previamente descritos, nem limita seus poderes, como eles foram também previamente distribuídos, então ela está sem controle. É isso o que dizem os textos da imprensa nos dias de hoje, ou seja, no "dia 3D" do STF.
Por fim, a falta de controle institucional sobre as práticas do Supremo não é conspiração da imprensa internacional. Em 2016, o respeitado jurista Fábio Konder Comparato, a propósito do arquivamento de uma proposta que fez de impeachment do ministro G. Mendes, disse o mesmo, e sua formação não é conservadora, nem ele está voltado para as relações de negócio.
Neste "mais longo dos dias" que a principal corte judiciária do país nos reservou, é possível que haja um consenso na nossa sociedade multifacetada: como o STF se mostra incapaz de estabelecer regras, que não pretenda reger nossas vidas com a exceção.