4. Estado de Direito Positivo
Como vimos, Robert Von Mohl, o jurista alemão que formulou o conteúdo-base da expressão Estado de Direito, tinha em mente antes de tudo a regulação dos poderes do Estado, na esteira liberal de que a garantia dos direitos individuais seria o melhor remédio de contenção dos ímpetos centralizadores do Estado Moderno. Ou como nos diz Jorge Miranda:
Robert Von Mohl, considerado o autor que lançou o conceito, dizia que a idéia em que se fundamentava o Estado de Direito se resumia nisto: o desenvolvimento o mais humano possível de todas as forças humanas em cada um dos indivíduos (Polizei, 1841, Concepto de policia y Estado de Derecho, in Liberalismo aleman em el siglo XIX – 1815-1848, coletânea de estudos, trad., Madrid, 1987, p. 141). E acrescentava: 'ninguém pode ser sacrificado como um meio ou como uma vítima à idéia de todo' (pág. 142); 'nenhum direito deve ficar sem proteção, (mesmo que) seja demasiado insignificante para o Estado' (pág. 143); 'estado de Direito exige proteção jurídica' (pág. 144) (Miranda, 2000, p. 86).
Quando cita Mohl, ao dizer que Ninguém pode ser sacrificado como um meio ou como uma vítima à idéia do todo, Miranda (2000) está inferindo que o Estado não se sobrepõe ao indivíduo em termos jurídicos, posto que deve prevalecer e se afirmar o princípio de que vige a personalidade jurídica do Estado. O Estado é o responsável pela segurança do princípio da legalidade, da mesma forma como está submetido às suas imposições.
4.1. O Direito Constituído Pela Cultura
Nesse modelo de Estado, é óbvio – mas é preciso afirmar -, o Direito vai progressivamente, constantemente, tornando-se positivo ou positivado. Trata-se do Direito Posto que foi regularizado pela força das instituições positivas do Estado e, já contando com essa força de lei, o Direito também se afastou gradualmente das motivações embrionárias ou revolucionárias que lhe deram origem.
A reivindicação dos direitos antes promovida pela sociedade, e que gradativamente se dá com a promulgação do próprio Direito, torna-se Direito Posto. De emissário, o Poder Social torna-se submisso ao próprio Estado, pois o requerimento social e político vai-se tornando mera instituição do Estado. A força do Poder Social é transviada na forma de regramento do Poder Político – desse modo, as proposituras do direito à revolução acabam como parte integrante do Estado. O direito estranho acaba como política doméstica.
Para visualizar esse efeito de conversação institucional, tomemos basicamente o exemplo da Revolução Francesa e do processo de positivação de direitos que se seguiu até a Constituição de 1793. Posterior a 1793, praticamente tem-se o fim da experiência apelidada pelos franceses de Estado Legal: quando o povo saía às ruas para requerer o cumprimento dos seus direitos, das promessas revolucionárias de 1789.
Desse modo, de Estado Revolucionário (1789-1793), a revolução transformou o Estado francês em simples Estado de Direito Positivo. Este que é, aliás, uma típica modalidade de Estado, em que o conjunto geral do Direito é mais formal do que propriamente resultado de sua fase criadora - da revolução que lhe forneceu toda a bagagem restou apenas o emblema. A partir de 1793, na França, toda a força criativa e inovadora do Poder Constituinte (Revolucionário 34) se converteu em Poderes Constituídos, agora mais a serviço da manutenção do próprio Estado 35.
Aos poucos, mas com a postura impositiva da lei e sob a força coercitiva e punitiva do Estado – isto é, como externalidade jurídica da coerção aplicada pelo Estado à sociedade, por meio do Direito –, a Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão (expressiva do Poder Social) se transfigurou na Primeira Constituição Francesa (como regulação do Poder Político). Entre a Declaração e a Constituição, interpôs-se um processo de institucionalização, em que o Poder Social acabaria subsumido na forma rígida do Poder Político. Mas, o que foi essa Declaração de Direitos?
Quando se diz que toda Declaração de Direitos expressa o Poder Social, também se quer dizer que aí estão relatados os direitos da sociedade, do povo, pois a Declaração de Direitos procura expressar a Vontade Geral. Por sua vez, a Vontade Geral é mais significativa do que a vontade da maioria, ou seja, não se confunde absolutamente com a somatória das idéias porque se exige capacidade de negociação – a política atua como plus social.
Por outro lado, a Declaração de Direitos não traz muito mais do que uma razoável relação de princípios. Pelo fato de não ir muito além de uma intenção de direitos (mesmo que sólida), também não vai muito além de um projeto político de direitos populares e não deixa de ser uma proposição teórica (por mais vontade popular que ela expresse 36). Sob essa condição, a Constituição é muito mais pragmática e política, pois sob efeito da positivação, a Constituição deve positivar a política real, concreta. Mesmo o possível dever-ser postado na Constituição Normativa ou Dirigente 37 deve ser compreendido como parte do Direito Constitucional Positivo.
4.2. A Constituição Sistemática de Uma Regra só Para o Estado
Em que se diferencia uma Declaração de uma Constituição?
A Constituição, ao contrário da Declaração, expressa o Poder Político: o Poder Social simplificado, sistematizado ou tornado "inofensivo" pelo Estado. A Constituição, entretanto, realça os chamados "direitos do Estado", bem como o contorno e os limites políticos e institucionais do Estado 38. Assim é que se tem um Estado de Direito Constituído ou Estado de Direito Positivo.
Na Constituição - ou ao longo do andamento do processo de constitucionalização do poder social - há uma positivação das principais intenções do projeto político originário. Esse processo de subsunção é uma "fase política" em que sistematicamente a Vontade Geral vai sendo sacralizada, pasteurizada e positivada pelo poder normatizador, regulador do Estado. E, neste sentido, o Estado de Direito será conservador (uma tendência a manter o próprio Direito Posto) se comparado ao Estado Constitucional – isto vale para a França pós-1789, como vale para o Brasil de hoje.
Com essa constitucionalização também se inicia e se fortalece o processo de aproximação, de equivalência (de subsunção) entre Poder Político e Poder Público, entre Estado e Vontade Geral. Esta Vontade Geral é a que se vê transformada em Vontade Comum, em vontade da maioria depositada nos referendos regulares do Estado, por exemplo, nas eleições. Dessa equivalência entre Poder Público e Estado, por sua vez, deriva a transformação orgânica/institucional da Vontade Geral em ordem pública.
Neste curso, há transformação da política em lei, com prejuízo da ação política que agora se administra pela burocracia ou pela via legal. As manifestações populares contra possíveis ações de Governo (até mesmo as mais pontuais ou localizadas) são interpretadas como ações contra a ordem pública, contra o Estado. Desse modo, utilizando uma expressão da época (França pós-1789), o Estado Legal vai sendo reduzido a Estado de Direito Positivo. Note-se que esta confusão entre Estado e Governo não é ocasional, mas sim parte do próprio projeto político fundacional do Estado de Direito.
No Estado Legal, o povo questionava a ordem, porque queria veementemente rever, subverter o status quo ante, porque queria revolucionar o Estado Absolutista que servia ao Antigo Regime. No Estado Legal, o povo procurava aprofundar a realidade dos seus direitos, pois buscava as garantias políticas da liberdade, da igualdade, da fraternidade.
Por outro lado, no Estado de Direito Positivo que decorre da Constituição Formal, o povo questionador de seus direitos se vê tratado como subversivo (da ordem jurídica formal), como baderneiro, como insuflador, como pólo crítico, porque estaria se portando como antiestatal. Enfim, ao invés de Vontade Geral Popular e Revolucionária, a França (pós-1793) fez valer a Vontade da Administração Pública.
Com o fim do Estado Legal, viu-se uma mudança nos pólos: no lugar do Poder Constituinte (criador, transformador), afinaram-se os Poderes Constituídos; no lugar do Direito à Revolução, vieram os Direitos do Estado; no lugar da política divergente, pôs-se a lei reguladora/uniformizadora; em substituição ao direito político e constitucional viu-se afirmar o Direito Administrativo; como resposta às pressões sociais, insurgentes, foi posto um Direito Positivo uniforme; como resposta à sociedade, adveio o peso da máquina da Administração Pública.
Em suma, daí por diante, na vigência desse processo de institucionalização (em que o Direito é simplesmente posto), estabeleceu-se o Estado de Direito Positivo em oposição ao Direito Propositivo de outrora; em substituição ao processo político inclusivo do povo, abateu-se uma rotina jurídica focada no Estado. Enfim, em contrapartida ao Direito Proposto, passou a vigir com força total um Estado de Direito Posto. No lugar do Estado Constitucional (iminentemente político) adveio, interpôs-se, institucionalizou-se o Estado de Direito (eminentemente jurídico).
Na Constituição Brasileira de 1988, essa questão da ordem pública é destacada de acordo com a premissa de que o legislador deveria cuidar do status quo (vale dizer, do sistema de propriedades), como tarefa destinada especificamente às polícias e não ao Poder Judiciário. Vejamos o texto da CF/88:
CAPÍTULO III
DA SEGURANÇA PÚBLICA
Art. 144. A segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, através dos seguintes órgãos:
I - polícia federal;
II - polícia rodoviária federal;
III - polícia ferroviária federal;
IV - polícias civis;
V - polícias militares e corpos de bombeiros militares (grifos nossos) 39.
Além da destinação dada à Polícia Federal e que consta dos artigos seguintes, não há dúvida de que a ordem pública (ao contrário da Ordem Jurídica) é uma questão meramente de polícia (repressão, coerção), e não de Direito, de Justiça. Essa questão deveria ter sido contornada, resolvida pela Constituinte de 1986, quando se discutia o modelo de Estado que iríamos implantar na abertura, assim como a democracia que nascia. Mas, o que deve ser uma Constituição no sentido estrito?
4.3. O Estado de Direito é um "Constituir-se": trata-se da constituição do social e da política
O conceito de "Constituição" é um complexo, mas tanto se compreende como verbo, quanto como substantivo, além de ser um conjunto de regras, de posições políticas e sociais mais ou menos definidas e/ou ideais sociais e coletivos que podem orientar a Nação, o Governo e o Estado. Portanto, a Constituição (em maiúsculo) como substantivo político-jurídico, atua como condição teleológica do Povo. E é essa articulação que talvez possa receber o título de Estado de Direito Constitucional.
Em síntese, a palavra "constituição" é empregada com vários significados, tais como:
conjunto de elementos essenciais de alguma coisa.
organização, composição ou formação.
conjunto de normas que regem uma instituição.
ato de se estabelecer questões jurídicas – a exemplo da constituição de uma sociedade anônima.
lei fundamental de um Estado.
No nosso caso, especificamente, estamos falando da Constituição de um Estado, considerando-se como sua lei fundamental. Seria, então, a organização dos elementos essenciais, fundamentais, estruturais do Estado. No dizer de José Afonso da Silva, trata-se de: "um sistema de normas jurídicas, escritas ou costumeiras, que regula a forma do Estado, a forma de seu governo, o modo de aquisição e o exercício do poder, o estabelecimento de seus órgãos e os limites de sua ação" (1991, p. 38).
Podemos dizer que a Constituição é o conjunto de normas que organizam os elementos constitutivos ou os componentes do Estado, tais como sua organização política, econômica, jurídica, social, territorial, ambiental, cultural.
Há autores que conceituam a Constituição sob o aspecto meramente jurídico, outros preferem uma entonação sociológica ou ainda política. Entretanto, entendemos que não se pode prescindir de nenhuma análise, pois o tema não pode ser abordado de forma isolada. A análise que privilegia o conjunto formado de Constituição, Estado de Direito, Democracia, Direitos Humanos e Políticas Públicas Populares deve ser mantida a todo custo.
De certo modo, precisamos redobrar os esforços para analisar esse encontro infindável entre Política e Direito (entre motivação ou pressão política e decisão jurídica) como se tivéssemos uma hermenêutica constitucional global, articulada e sistêmica. Não podemos perder o sentido dialético, essa integração existente entre os vários conteúdos da vida coletiva, que devem ser levados em conta no momento da elaboração de um ordenamento fundamental e considerado supremo, como é o caso da Constituição, e de onde decorrem as demais leis.
Todo conceito jurídico mantém uma relação íntima, ontológica com a história política que o precede e por isso o cerca. Não se trata, portanto, de uma evolução doutrinária pura e simples, mas atua como mecanismo jurídico em contato estrito com o Poder. Com essa postura, deixamos de lado as meras formalidades do Estado de Direito, em busca da legitimidade e do empuxo de sociabilidade que se abriga no Direito Justo.
Desse modo, ainda, a Constituição não deve ser vista apenas como uma norma pura, em seu sentido meramente jurídico, mas como norma que resulta da conexão, da interação com a realidade social que nos cerca, que é o que lhe dá conteúdo e significado, razão de sua existência. Assim, a Constituição do moderno Estado de Direito (Estado Democrático de Direito Social) deve ser vista como o elo entre a Política, o Direito e a Sociedade.
Vista somente pelo ângulo político, definimos Constituição como um conjunto de normas que organizam os elementos constitutivos do Poder Político, pois não há como falar em política sem pensar na relação intrínseca que esta tem com a comunidade, com o destino das pessoas, com o modo de vida e de produção de determinado grupo social. Tanto quanto outras ciências dinâmicas, a Ciência Política e a Teoria do Estado são essencialmente dialéticas, emaranhadas em todos os aspectos da vida, na atualidade, estando presentes na mais simples organização social da vida humana.
Em seu aspecto sociológico, a Constituição corresponde à soma dos "fatores reais do poder que vigoram em um país" (Chimenti, 2005, p. 3), identificados na atuação e na força dos principais movimentos sociais organizados no Brasil como, por exemplo: o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), as Centrais Sindicais, as Federações Empresariais, as organizações militares, as organizações civis de defesa do consumidor ou de determinado grupo econômico, a força dos produtores rurais, das organizações não-governamentais de defesa do meio ambiente ou ainda das minorias como é o caso dos portadores de deficiência, dos homossexuais, dos negros, das mulheres, dos povos da floresta e tantos mais.
Por essa ótica, a Constituição é o resultado da atuação e da reivindicação dos movimentos sociais que dão força e impulsionam a produção de leis que vigoram em determinado ordenamento jurídico. Significa dizer, em suma, que o ordenamento jurídico de determinado Estado deve adequar-se à realidade social de seu povo, à sua história, à ontologia e à dinâmica social, e, mais do que qualquer outra coisa, estar a serviço da promoção do bem público e geral 40. Como afirma Renato Janine Ribeiro, este seria o objetivo do Estado de Direito:
A república está associada ao direito. A modernidade em política constrói duas grandes obras. Uma é a democracia. A outra, mais antiga, avançando desde a Renascença, é o Estado de Direito — ou seja, a idéia de obedecer à lei e não ao arbítrio do poderoso. Em tese, o Estado de Direito não precisa ser democrático. Uma aristocracia de magistrados honestos poderia aplicar imparcialmente a lei 41. É o que se chama o império da lei, rule of law. Mas essa consagração da lei acima dos interesses particulares já significa que ela é coisa pública e não privada. Há aí o princípio republicano da prioridade conferida à res publica (Ribeiro, 2001, p. 65).
Ainda seguindo Renato Janine Ribeiro, o mesmo Estado de Direito — mas agora sob a vigência da República —, no entanto, teria de apresentar um cunho mais fático e incisivo do ponto de vista político. De certo modo, com esse tom político abandonamos o reduto jurídico: "A república é o regime em que a democracia entra no Estado de Direito. Convicções democráticas podem levar a uma revolução, mas o que a converterá em Estado e em direito, em duração, são princípios republicanos. A democracia precisa da república" (Ribeiro, 2001, p. 65).
Contudo, há reveses históricos em que o Estado de Direito se distancia de modo proposital em relação ao Poder Popular e à delimitação democrática. Caso clássico é a passagem do chamado Estado Legal (sob a Revolução Francesa de 1789) e a posterior confirmação do Estado de Direito francês, pós-1789. Mais uma vez com Renato Janine Ribeiro:
Veja-se a Revolução Francesa. Nos anos que a precedem, quem mais enfrenta o arbítrio do rei são os juízes do Parlamento de Paris, que, apesar do nome, é um tribunal e não uma assembléia eleita. Eles assinam documentos corajosos, são banidos, batem-se com denodo para o país ter uma Constituição. Em apenas dois anos, porém, sem terem mudado de ideais, eles passam da oposição radical para a retranca mais conservadora: em 1790 já está evidente que eles defendem seus privilégios, os cargos que possuem (por herança ou compra), a posição de interlocutores destacados do rei, de representantes não-eleitos da sociedade. À medida que aumenta a liberdade de expressão e organização, a sociedade passa a falar por si, a organizar-se, e não mais a casta de juízes como seu porta-voz e tutor (Ribeiro, 2001, pp. 65-66).
Estava assim configurado o Estado de Direito Positivo, sob o sentido preciso de que, a partir de então, tratar-se-ia de um estatuto político conservador e mantenedor da ordem jurídica, do status quo. Exatamente pelos motivos já aventados, a Constituição não pode ser vista, interpretada ou compreendida, se não se tiver em mente essa estrutura de conexão entre as faces jurídicas (formal), sociais (resultado da valoração das relações sociais humanas) e políticas: como organização do poder estatal.
Portanto, a Constituição é um complexo, um somatório de elementos que se entrelaçam em um todo, formando uma unidade, e como resultado das diversas nuances da vida comunitária, dos desejos e anseios de um povo. Por isso mesmo, diz-se que a Constituição é norma fundamental, essencial, suprema, e que no nosso entendimento, para ser legítima, deve ter como base de formação e de transformação o poder que emana do povo e que para ele deveria ser dirigido. E mesmo que se saiba que o Estado de Direito é mais dominado por grupos políticos hegemônicos do que legitimado pelo referendo popular – fenômeno típico de dominação que a crítica social sustenta, ou seja, que a lei está mais próxima do Poder Econômico do que jamais esteve do Poder Popular.
4.4. Estado de Direito e Constituição
4.4.1. Regras Básicas Para Uma Constituição Legítima e Justa
Para Dallari, a Constituição moderna 42 veio à lume para satisfazer três requisitos básicos, de ordem política, econômica e institucional. Primeiro, procurou-se definir e assegurar a liberdade econômica da burguesia e a igualdade necessária para ajuizar de acordo com seus interesses de classe:
A liberdade era entendida como a possibilidade de agir, de celebrar contratos, de realizar negócios e de utilizar o patrimônio sem nenhuma interferência do governo. E a igualdade significava o direito de participar do governo, de ter acesso à educação, de freqüentar os lugares mais refinados, ou seja, de fazer tudo o que até então só era permitido aos nobres (Dallari, 1985, p. 11).
Depois, em segundo lugar, o critério político-institucional tramava a limitação do próprio poder político, isto é, instigava-se a idéia de que era necessário assegurar-se permanentemente o controle e a distribuição do poder. Por fim, a terceira motivação, mas não menos importante, previa a racionalização da sociedade e do governo. Em resumo: "Assim nasceu a Constituição, tendo por objetivos declarar e assegurar os direitos fundamentais dos indivíduos, disciplinar o uso do poder e promover a organização racional da sociedade e do governo, impedindo que o poder político fosse concentrado nas mãos de um ou de alguns" (1985, p. 12). A Constituição, portanto, nasceu intencionalmente atrelada ao sistema de poder.
Do século XVIII ao século XX, algumas coisas mudaram e, conceitualmente falando, mudaram muito. Hoje, por exemplo, percebe-se mais claramente o alcance que a economia tem sobre o Direito:
No século dezoito a afirmação da necessidade de liberdade foi feita em favor dos que já tinham poder econômico [...] Nas sociedades industriais do fim do século vinte o principal inimigo da liberdade individual nem sempre é o poder público. Freqüentemente um indivíduo muito rico ou um poderoso grupo econômico reduzem seriamente a liberdade de muitos indivíduos, ou mesmo de um povo inteiro, por meio da dominação econômica (Dallari, 1985, p. 13).
Só se é livre de fato se há condições materiais, reais para ter, consumir, trabalhar, estudar, participar, enfim, para o indivíduo gozar dos direitos que lhe cabem formalmente. Por isso, mais do que a igualdade formal (apenas diante da lei), é preciso o princípio da igualdade para se viver bem, para ser feliz (como queria o constitucionalista americano do século XVIII). A Constituição do século XVIII trouxe direitos econômicos somente para a burguesia, mas hoje é preciso expandir esse horizonte para os grupos sociais mais pobres. Como utopia possivelmente realizável, também podemos dizer que se trata mais de liberdades positivas, conquistadas e praticadas na ação política popular. Portanto, muito além do sentido legal restrito adaptado às chamadas liberdades negativas.
4.4.2. Elementos da Constituição
Porém, é preciso relembrar que a Constituição deve ser legítima e não basta que isto esteja escrito em um pedaço de papel. A Constituição, para ser verdadeiramente democrática e popular, deverá conter alguns elementos políticos e outros formais, para ir além de um nome pomposo.
De maneira mais solene, como um conceito jurídico-formal, podemos ver na Constituição moderna um texto-base legitimador do Estado Constitucional, ou simplesmente um sistema inicial de normas jurídicas limitativas do poder:
A Constituição é conceituada como sistema de normas jurídicas, produzidas no exercício do poder constituinte, dirigidas precipuamente ao estabelecimento da forma de Estado, da forma de governo, do modo de aquisição e exercício do poder, da instituição e organização de seus órgãos, dos limites de sua atuação, dos direitos fundamentais e respectivas garantias e remédios constitucionais e da ordem econômica e social (Peña, 2003, p. 61).
De certo modo, está aí uma definição de Poder Jurídico que vai embasar as Teorias do Estado, pois esta disciplina trataria especificamente dessa análise conceitual do poder na Constituição Federal. Sob este aspecto estritamente político, a Constituição revelaria o Poder Político conectado democraticamente a um conjunto orgânico de regras e de princípios constitucionais.
No caso brasileiro, as Teorias do Estado deveriam dar cobertura especial ao preâmbulo da Constituição, bem como analisar pormenorizadamente os artigos 1º ao 4º, pois o artigo 5º trata dos direitos individuais. A própria Constituição articula as Teorias do Estado, transformando em artigos os preceitos do Estado Moderno Democrático – em seus artigos desfila a história política do Estado e da sociedade: do liberalismo à democracia; do liberalismo aos preceitos socialistas.
Peña ainda relembra Jellinek: "a Constituição designa o conjunto de normas jurídicas que definem os órgãos supremos do Estado, determinam a forma de sua criação, sua relação recíproca e seu âmbito de atuação, como também fixam a posição do indivíduo em relação ao poder do Estado" (Peña, 2003, p. 61).
Resumidamente: "A Constituição é a declaração da vontade política de um povo, feita de modo solene por meio de uma lei que é superior a todas as outras e que, visando a proteção e a promoção da dignidade humana, estabelece os direitos e as responsabilidades fundamentais dos indivíduos, dos grupos sociais, do povo e do governo" (Dallari, 1985, pp. 21-22).
É importante frisar que se diz solene a Constituição escrita, pois esta será, a partir de então, uma característica essencial das novas Constituições. O fato de ser escrita também inibe a alegação de que a Constituição costumeira dá margem a confusões, uma vez que os costumes poderiam ser interpretados diversamente. A forma escrita ainda empresta à Constituição um caráter de maior durabilidade. A solenidade que recobre a forma escrita, por sua vez, também destaca a necessidade do rito formal que deve ser empregado em sua confecção.
Dessa definição, destacamos alguns elementos: 1) Vontade Política do Povo; 2) Solenidade Necessária; 3) Lei Superior; 4) Proteção e Promoção da Dignidade Humana; 5) Direitos e Responsabilidades dos Indivíduos, do Povo, dos Grupos Sociais e do Governo (Dallari, 1985).
O primeiro implica, obviamente, em que não se pode impor a vontade de um ou de alguns sobre a maioria do povo – se um grupo dominante age dessa forma será uma clara arbitrariedade. Por isso, depois de promulgada pelos Poderes Constituídos, a Constituição deveria ser apresentada para passar pela aprovação (ou não) do referendo popular.
O segundo critério se consagra à apreciação de regras formais que foram decididas anteriormente e de modo democrático, quer dizer, com conhecimento e aprovação popular. O povo deve ter claro que aquelas eleições são especiais, pois se destinam a eleger e a compor a Assembléia Nacional Constituinte – esta é a primeira regra. Desse modo, também indica que o rito para a mudança da Constituição não é como das demais leis ordinárias, trata-se de um rito mais complexo e exigente.
O terceiro critério sustenta a Constituição como a lei que é superior às demais leis, que a própria Constituição deve ser cumprida e que mesmo suas normas programáticas são parte inerente e material da Lei Maior. Ou seja, a chamada norma programática 43 é também direito formal, material.
O quarto critério traz à tona a urgente ou urgentíssima necessidade de provocarmos as transformações sociais, econômicas e políticas que minimizem a miséria, a degradação humana, as desigualdades mais profundas. Trata-se de afinar a busca e os mecanismos que nos levem à Justiça Social, mas agora de modo real e concreto, para além da Constituição.
O quinto critério ainda lembra que, além dos direitos individuais, há direitos sociais, coletivos (consumidor e idoso, por exemplo) e humanitários/globais (como preservar o meio ambiente), que precisam ser resguardados e também efetivados. Neste sentido, não há hierarquia ou preponderância entre direitos individuais e coletivos ou globais. A realidade social dinâmica do século XX e início do XXI mostra uma pluralidade 44 de direitos e de interesses sociais, coletivos e globais genuínos, válidos.
4.4.3. Estado Constitucional e Ordem Jurídica 45
E assim temos um melhor perfil desse chamado moderno constitucionalismo. Trata-se da Constituição reguladora da soberania do Estado, da sociedade e do povo. Pode ser considerada a operação de transformação do Estado Constitucional, a passagem do processo histórico, revolucionário, constitutivo de uma outra ordem jurídica, no modelo institucionalizado, definido, regulado e que é apresentado pelo Estado de Direito.
Este, aliás, é o movimento que se percebeu na formação do Estado Constitucional americano, no período da Revolução. Em 1776, a Revolução Americana formara exatamente o Estado Constitucional, revolucionário, e que se inaugurara com o Poder Constituinte. Já em 1787, também nos EUA, mas agora na vigência da Constituição Americana, o processo constituinte originário, revolucionário e de independência da Inglaterra, estava cessado, interrompido em nome de uma nova ordem jurídica – independente da Inglaterra.
Por isso, se há um processo revolucionário, é possível falar em Estado Constitucional Revolucionário. Mas, em oposição, se há apenas Assembléia Nacional Constituinte (eleita mediante processo eleitoral) e que decorra do amadurecimento democrático ou da necessária transformação legal (sem corte violento na continuidade institucional), então, nesse caso, só podemos falar em Estado Constitucional Derivado 46. Como o Estado Constitucional Originário foi paulatinamente regulado, ainda dizemos que esse Estado Constitucional Derivado é o nosso Estado de Direito.
Porém, não se confunda esse Estado Constitucional Derivado com o chamado Poder Constituinte Derivado, uma vez que o Poder Constituinte nunca pode ser derivado, não pode ser condicionado e nem é mera concessão de qualquer outro poder. Pela lógica e por definição, o Poder Constituinte é soberano, ilimitado, incondicionado, criador.
Essa nova ordem jurídica instituída pelo Poder Constituinte (revolucionário da ordem jurídica anterior e ultrapassada) será definida e presidida exatamente pela Constituição. Nesse sentido, há a distinção de Carlos Ayres Britto: "a sociedade política ou nação é a única a experimentar o Poder Constituinte, nele efetivamente se transfundindo e formalizando-o numa Constituição" (Britto, 2003, p. 95).
Portanto, como poder já soberano, e buscando reconhecimento internacional, os EUA afirmaram-se como Estado de Direito Positivo – o positivo aqui segue a idéia de um Direito Posto, como base dos Poderes Constituídos. Ou seja, de Poder Constituinte, o poder inaugural se converteu em Poderes Constituídos; de Estado Constitucional (em 1776), os EUA se transformaram em Estado de Direito Positivo (1787) 47. Com isso, surgia ainda uma ordem jurídica que vinha para conservar o novo status político - status esse conquistado com a independência do jugo inglês.
Novamente com Britto, vemos a distinção entre o Poder Constituinte e o Poder Constituído: "Se o verdadeiro e único Poder Constituinte é um Poder que pode o mais (elaborar a Constituição), mas sem poder o menos (reformar a sua própria obra legislativa), o Poder Constituído é um Poder que pode o menos (modificar a obra do Poder Constituinte), mas sem poder o mais (trocar uma Constituição por outra)" (Britto, 2003, p. 97).
Mas, será possível, exeqüível que a Constituição do século XIX tenha repartido tanto a seguridade da soberania, antes una, indivisível e inquestionável? A Constituição moderna é a essência das tentativas de regulação da soberania:
A Constituição dos modernos é formada pela sucessão das teorias da soberania do monarca, soberania do povo e soberania do Estado, que antecederam o surgimento das Constituições democráticas do século XX. Em primeiro lugar, a teoria da soberania do monarca, elaborada por Thomas Hobbes (1588 – 1679) e Jan Bodin (1529 – 1596) [...] Em segundo lugar, a teoria da soberania do povo, enunciada por Jean-Jacques Rousseau (1712 – 1778) e Emmanuel Joseph Sieyès (1748 – 1836) denota que o poder seria confiado ao povo [...] Em terceiro lugar, a teoria da soberania do Estado, exteriorizada por Georg Hegel (1770 – 1831) e Joseph de Maistre (1753 – 1821) [...] Por fim, as Constituições democráticas do século XX, visualizadas por Hans Kelsen (1881 – 1973) e Carl Schmitt (1888 – 1985) são caracterizadas pela retomada da dimensão política (Peña, 2003, pp. 64-65).
Tem-se, assim, uma segunda proposta de análise da formação das Constituições modernas, com um lastro histórico mais largo, pois retoma Jean Bodin e Hobbes. Nossa posição, no entanto, é a de que o moderno constitucionalismo nasceu com o desenvolvimento do pensamento liberal, justamente para fazer frente a essa teoria da soberania do monarca, para destronar o Antigo Regime.
Essa definição inicial de Estado Constitucional e de sua Constituição reguladora do poder nos permite sinalizar a natureza jurídica que recobre essa jurisdicição da política, ou seja, a política e o poder tornados Direito por força do Estado Constitucional Regulador. Sua natureza jurídica aponta três categorias ou níveis subjacentes: sociológico, político e jurídico.
O sentido sociológico é aquele já apontado por Ferdinand Lassale, isto é, sinaliza os principais fatores reais do poder que condicionam a Constituição. O sentido político teria sido dado por Carl Schmitt, quando ressaltava a decisão política fundamental, que é a vontade expressa pelo Poder Constituinte. Já a posição jurídica derivaria de Hans Kelsen e implicaria em definir a Constituição como a lei fundamental da organização estatal – uma força normativa superior sobre a qual nenhum poder seria soberano (Peña, 2003, pp. 65-66).
Esse Estado Constitucional europeu e que, aos poucos, tornou-se referência para muitas Constituições latino-americanas, a partir da década de 1980, como nos diz Hesse, é um tipo de Estado com direitos:
"Estado Constitucional" indica um tipo de Estado, cuja Constituição, nos âmbitos dos direitos fundamentais e da construção estatal, mostra princípios gerais e, com isso, comunidades que no desenvolvimento europeu recente ganharam significado crescente; nesse aspecto, o conceito circunscreve pontos de referência para a compreensão e o desenvolvimento da Constituição (Hesse, 1998, p. 26).
Sob esse princípio constitucional de organização do poder e de garantia da sociedade, opera-se o que Hesse denomina como o encontro entre unidade política (Estado) e ordem jurídica (Constituição seguida de ordenamento jurídico). No fundo, temos aqui apenas um único conjunto histórico: "Unidade política’, ‘Estado’ e ‘coletividade’ são empregados aqui, portanto, como designações de conexões de efeito distintas que, em grande medida, são sustentadas pelos mesmos homens e, por causa disso, não devem ser entendidas no sentido de uma coexistência separada e somente para melhor demonstração, como ‘âmbitos" (Hesse, 1998, p. 34).
Então, se o Estado Constitucional é aquele que, sem dúvida, tem suporte na Constituição e no controle democrático do poder, o que será ordem jurídica?
Novamente, de acordo com Hesse, trata-se de:
[...] uma ordem determinada, que garante o resultado da colaboração formadora de unidade e o cumprimento das tarefas estatais e que exclui um abuso das faculdades de poder confiados ou respeitados por causa daquele cumprimento de tarefas – em que tal garantia e asseguramento é, não só uma questão da normalização, mas, sobretudo, também da atualização da ordem jurídica (Hesse, 1998, p. 35).
Isto já indica ou retoma a necessidade de se pensar que a própria ordem jurídica deva ser legítima, ou seja, para que não ocorra desvio ou concentração de poder é preciso criar novos instrumentos que garantam o sentido de coletividade e que sejam consoantes à própria Constituição inspiradora de 1988. Com isso, também podemos definir ordem jurídica sob o olhar sociológico:
Ordem jurídica está dada, além disso, em um sentido mais amplo. A coletividade precisa da sua, porque convivência humana sem ela não seria possível, de todo, na situação da atualidade que fundamenta a necessidade de ordem e coordenação objetiva ampla das condições e âmbitos da vida econômica e social. Como o Estado, essa ordem não está determinada em um direito supra-histórico, desprendido da existência humana e atividade humana, existente em si e por si, ou nas objetivações de uma "ordem de valores" encontrada; senão ela deve, como ordem histórica, pela atividade humana ser criada, posta em vigor, conservada e aperfeiçoada (Hesse, 1998, p. 35-36).
A ordem jurídica expressa o Poder Político, mas também deve regular esse mesmo poder que lhe deu origem. A ordem jurídica é realidade social e, por isso, implica na unidade política. E aí está claro, com todas as letras, a necessidade de que esta ordem jurídica (decorrente do Poder Constituinte e da Constituição derivada) deva ser ela mesma legítima e constantemente legitimada.
De certo modo, entende-se o porquê de Carlos Ayres Britto dizer da Constituição como de uma poesia que precisa de realidade política e do contexto social articulados para não ser um simples repertório de palavras. Tal qual o poema, a Constituição tem um sentido expresso (escrito, solene) e outro não-escrito (o espírito da justiça – e mesmo que também possa/deva ser articulado como justiça social). Como afirma Britto, iniciando pela Constituição:
Ela consubstancia um tipo tão articulado de unidade que faz lembrar a composição e o sentido de um poema. Se este se constitui de palavras, tais palavras somente conservam íntegro o seu papel de servir a uma obra de arte se permanecem no contexto da poesia e no exato lugar em que se encontrem. Permutá-las, substituí-las, destacá-las do conjunto, seccioná-las, enfim, é quase sempre repetir o fenômeno que decorre de se colocar, hipoteticamente, um pouco de qualquer das ondas do mar em um balde: a onda removida perde instantaneamente a qualidade de onda, que é uma coisa viva ou em movimento, e passa à condição de simples água salobra, que é uma coisa morta ou sem mobilidade própria. No caso da poesia, o que era a riqueza de um poema fica rebaixado à pobreza de simples vocábulos, como tantos outros (Britto, 2003, p. 99).
A Constituição é, pois, vida social, e que ainda se expressa por meio da unidade política e da ordem jurídica. Neste modelo de Estado Constitucional, a política ou os conflitos políticos estão na origem da própria Constituição e de sua ordem jurídica. Os membros politicamente ativos desta sociedade teriam chegado, hipoteticamente, à conclusão lógica, racional, óbvia de que não há sociedade sem conflitos políticos e ideológicos. Também teriam chegado à conclusão de que um meio racional de se equilibrar a disputa política (porque não há como suprimí-la) seria criando normas ou regras para a ação política – este conjunto de regras políticas seria a Constituição. Assim, o objetivo da Constituição seria contornar os conflitos políticos e ideológicos:
"Formação da unidade política" não significa a produção de um Estado harmônico de concordância geral, de todo, não a abolição de diferenciações sociais, políticas ou organizacional-institucionais por unificação total [...] Conflitos são capazes de preservar do entorpecimento, de ficar parado em formas superadas [...] Se eles faltam, ou se eles são reprimidos, então isso pode conduzir ao imobilismo de uma estabilização do existente, isto é, porém, à incapacidade de ajustar-se às condições transformadas e produzir novas configurações [...] Sobretudo, não só tem importância que haja conflitos, mas também que sejam regulados e vencidos (Hesse, 1998, p. 30).
A Constituição, portanto, seria um eficiente instrumento racional (o moderno contrato político e jurídico) de organização e de estruturação das relações políticas mais conflituosas. Isto é, a origem da Constituição (Poder Constituinte) é o conflito político e não a pretensa harmonia social. Eis a análise que vimos, por exemplo, com Hesse.
Com esses dados podemos reformular a questão clássica: todo Estado de Direito é um Estado Constitucional? Há inúmeros pontos discordantes, mas há alguns de assemelhamento, como a simetria que estabelecemos entre seus princípios ou postulados. Se tomarmos que o Estado Constitucional tem por base o iluminismo, o contratualismo e o individualismo, então, não será difícil relacionarmos tais princípios ao Estado de Direito.
O individualismo do Estado Constitucional está para a prevalência dos direitos individuais, proposto no Estado de Direito, assim como o contratualismo (Locke, Rousseau) está para a separação de poderes, em Montesquieu (também um contratualista). Aliás, é da vigência do contrato social que deve ser formulado o Estado que sirva à sociedade, diferentemente do Estado Absolutista.
Entretanto, o famoso império da lei não pressupõe a mesma sintonia de interesses, valores e de validade com o iluminismo. Basta-nos pensar que há leis injustas e até Estado de Direito baseado nesse tipo de leis, como foi o Estado Nazista, o regime do apartheid e a realidade americana na década de 1960, antes de vigirem os direitos civis. Neste sentido, portanto, não devemos reduzir o Estado de Direito ao princípio do império da lei e nem confundir Estado Constitucional com a limitação de uma Constituição rígida.
O Estado de Direito pode declarar válida a Constituição (formalmente, solenemente), mas sem que se verifique o mínimo necessário à universalização do preceito do iluminismo. O Estado de Direito que se sustente em uma Constituição formal, que até mesmo indique a busca da ordem pública, mas que não patrocine políticas públicas (populares e sociais), não é um Estado Constitucional no rigor na expressão. Neste rumo, aliás impopular, pode estar a caminho de se tornar um Estado de não-Direito – fato, inclusive, que desde os anos 80 vem gerando críticas políticas mais severas. Uma crítica mais materialista ao Estado de Direito foi endereçada por parte do movimento socialista.
4.4.4. Uma Crítica Socialista ao Estado de Direito
Nos anos 80, manuais de Ciência Política e de Teoria Geral do Estado, intitulados de socialistas e editados em Moscou, também debatiam a figura do Estado de Direito. Nestes manuais via-se, igualmente, uma espécie de contra-acusação dirigida a algumas críticas ocidentais: os ideólogos do Ocidente acusavam o Estado Socialista de ser dualista, ora usava do Direito, ora da força, da mera coerção para resolver os conflitos individuais e sociais. Diante dessa acusação, os ideólogos do leste atacavam os horizontes do Estado de Direito:
Os partidários desta concepção afirmam que no Estado socialista, diferentemente do "Estado de direito" do Ocidente, atuam – dizem – dois elementos: o sistema de força e o sistema do Direito, sendo a força a mais importante dos dois. De acordo com esta concepção dualista, nos países socialistas os atos governamentais têm prioridade diante da lei (ZHIDKOV, 1980, p. 27).
Na verdade, essa modalidade de crítica dual (aos amigos tudo, aos inimigos a lei), em que a corrupção institucional remove montanhas, é muito mais próxima do nosso próprio Estado de Direito (a praga se volta contra o praguejador). Com a benção e a proteção das chicanas e dos infindáveis debates processuais, com grande apego ao formalismo infindável e impraticável, o Estado de Direito no Brasil ainda é incapaz de promover alguma Justiça Social substancial.
Entretanto, não devemos hoje pensar o Estado de Direito atrelado à justiça? Mas, isto seria um ideal ou ideologia? O Estado de Direito está incapacitado de promover Justiça Social condizente com nossas necessidades:
E o que parece ser um dos pontos importantes dessa concepção é a vinculação do Estado de Direito a uma ordem estatal justa, que compreende o reconhecimento dos direitos individuais, garantia dos direitos adquiridos, independência dos juízes, responsabilidade do governo, prevalência da representação política e participação desta no Poder Legislativo (Bastos, 2001, p. 468).
De certo modo, à crítica ao legalismo exagerado que se verifica em torno da definição e do debate acerca do Estado de Direito, podemos estender uma crítica ao contexto institucional brasileiro.