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Estado de Direito

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07/01/2006 às 00:00
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5. Estado de Direito?

Assim, pensando de modo concreto, histórico, será que no Brasil, definido como República Federativa – sob os auspícios do Estado Democrático de Direito 48 - realmente há uma estrutura jurídica mínima assentada nas bases do Estado de Direito?

Para tanto, deveríamos indagar, ainda, se o próprio liberalismo jurídico é realidade no país, pois é fácil inquirir até onde estão presentes idéias-fortes como os princípios da liberdade, igualdade, legalidade, isonomia e a própria ânsia pelo Direito. É fácil demonstrar que a coisa se complica se pensarmos na eficiência e na legitimidade desse Estado e do seu Direito, e não apenas na formalidade e na legalidade.

De forma bem mais simples, mas sempre no plano teórico, é possível articular Estado de Direito e Estado Constitucional, no Brasil? É como se a estrutura institucional-formal do Estado de Direito no Brasil não fosse suficiente para o enraizamento dos princípios liberais da liberdade e da legalidade – como se não tivéssemos o chão da famosa Revolução Burguesa por que pisar.

Tomemos o exemplo do artigo 5º da CF/88 - aliás, um dos textos mais célebres, universais e humanistas que o Direito já produziu. Ora, sem que se respeite o direito adquirido de trabalhadores ou de aposentados, será válido dizer que o tal artigo 5º está em vigor? Quando se vê, infelizmente de forma regular, que pessoas são presas ou detidas por furtarem (não dissemos roubarem!) galinhas, isso se dará na vigência do Estado de Direito e estará de acordo com o artigo 5º? Quando um prefeito resolve construir um estádio de futebol em vez de escolas primárias (havendo falta crônica de vagas escolares), estará seguindo e servindo o "espírito constituinte do Estado de Direito" e do artigo 5º?

O Estado de Direito no Brasil ainda não é realidade. Dessa forma, efetivar os preceitos do Estado de Direito no Brasil seria um procedimento/processo revolucionário porque, neste caso, a lei teria algum significado, alcance ou eficácia universal, global, e não a cínica declaração de que – mesmo incrustando/condenando milhares à miséria absoluta – "todos são iguais perante a lei". Porém, ainda se pode indagar: neste Estado de Direito, é correto dizer/afirmar que o direito à liberdade concede ao mendigo/inválido ou desvalido/miserável escolher a ponte que melhor lhe aprouver para se abrigar?

Alguém diria que sim, alegando que o Estado de Direito concedeu tal direito ao andarilho, e outros regimes não o fariam em hipótese alguma. Para os donos dessa convicção, cabe uma última questão: por que, diante de casos ou quadros sociais de total pilhéria do ser humano, o Estado de Direito deveria acusar/condenar o morador das pontes, baseado na alegação de que ali se pratica o "crime de vadiagem" 49?

Neste Estado de Direito, os pobres podem ser condenados por serem pobres 50? Lembremo-nos de que não é de hoje que a miséria e a pobreza são definidas como "questão de polícia" e não de política. Somente para a classe média é fundamental existir esse Estado de Direito. Historicamente, as elites sempre fizeram uso da coerção do Estado de Polícia (entre os inimigos sociais) e da atual arbitragem (para adversários comerciais).

Por isso, o que temos consubstanciado ainda é um Estado de Direito Indireto, pois nem há fumaça de bom direito. Enfim, parece-nos que é um caso exemplar em que o Direito precisa de mais realidade, de concretude do que de definição ou de retórica.

Neste sentido, também não soa estranho que de concepções deformadas do conceito de Estado de Direito derivaram a concepção/aplicação do Estado Judicial, como Estado que deve prover a moral oficial ao povo e que, por sua vez, nada tem a ver com a finalidade pública do Estado ou com a justiça. De acordo com José Afonso da Silva (1991):

Disso deriva a ambigüidade da expressão Estado de Direito [...] ou de um "Estado de Justiça", tomada a justiça como um conceito absoluto, abstrato, idealista, espiritualista, que no fundo encontra sua matriz no conceito hegeliano do "Estado Ético", que fundamenta a concepção do Estado fascista [...] Diga-se, desde logo, que o "Estado de Justiça", na formulação indicada, nada tem a ver com Estado submetido ao Poder Judiciário, que é um elemento importante do Estado de Direito (p. 100).

Em parte, essa desfiguração há muito tempo tem permitido justificar o Estado de não-Direito, tão marcadamente presente no fascismo e no nazismo, como Estado de Direito. Essa inversão ideológica dos pólos, obviamente, é intencional e serve à produção de injustiças.

De modo complementar, mas contraditoriamente, a estrutura jurídica do Estado de Direito é justamente o que está ausente, quando pensamos na fórmula do Estado Paralelo. Aliás, mais exatamente, os temas prementes do chamado Estado de não-Direito.


NOTAS

01 Sabe-se que nossa inspiração veio do constitucionalismo português, da inversão da denominação lusa do Estado de Direito Democrático.

02 Não se refere ao Estado Neoliberal, como ausência de participação estatal na área social e econômica.

03 Sob esse sentido estrito, talvez o melhor fosse dizer que houve uma progressiva constitucionalização dos direitos políticos.

04 Hoje, certamente, poderíamos falar da necessidade desses dados e de uma imprensa livre, crítica e investigativa.

05 Não se confunda com Estado Judicial, analisado na crítica de José Afonso da Silva e que parte de Carré de Malberg, como veremos adiante.

06 Conceito que será retomado a seguir, em análise mais detalhada.

07 É de se aceitar a análise de que o Direito realmente aceito – reconhecido como valor, partilhado nas práticas sociais – acaba por afastar a incidência da coerção. Sob esse prisma, Direito e coerção são antagônicos, excludentes.

08 Historicamente, esta é a garantia institucional atribuída à conquista do direito de petição.

09 Em nota seguinte ao texto que corresponde à citação de Comparato, ainda se lê: "a noção de garantia institucional, como um mecanismo objetivo de organização do Estado, objetivando a proteção das liberdades civis, foi elaborada pela doutrina alemã a partir de 1919" (conforme nota 85, p. 47). É de se lembrar que em 1919 tem-se, com a Constituição de Weimar, o Estado Social.

10 Ou simplesmente entendido como império e vigência da lei.

11 Esta que também é uma constituinte e legítima fonte política do Direito, nesta determinada ordem jurídica estabelecida pela democracia representativa.

12 Trata-se de documento de domínio público.

13 Têm-se aqui o tino evidente e claro dos princípios da liberdade, legalidade, responsabilidade e probidade administrativa. A citação foi mantida – mesmo que longa – para que não se perdesse a idéia de conjunto que os artigos arrolados devem transmitir.

14 Uma conhecida elaboração jurídica foi o direito de petição.

15 Também podemos dizer que a isonomia é o meio e que a eqüidade é o fim almejado – isso, é óbvio, de acordo com uma leitura teleológica do Direito e do Estado.

16 Ninguém é obrigado a fazer ou a deixar de fazer algo, senão em virtude de lei.

17 Tratar os iguais, igualmente e os desiguais, desigualmente.

18 Eficácia jurídica como verificação real das especificações da lei.

19 Da mesma forma, a jurisdicização da política é decorrente, e a constitucionalização da política é precedente.

20 Entendido o Estado Judicial como uma deturpação moralista, autoritária e fascista do Estado de Direito.

21 As citações a seguir, sempre entre aspas, são parte de uma tradução livre e constituem um breve resumo de Malberg (2001) organizado para este texto, e compreende um resumo pessoal do período entre as páginas 449 a 461. Portanto, é uma tradução com interferência direta. Recortamos uma citação tão longa porque se trata de obra de difícil acesso, e também o autor é considerado um dos pensadores clássicos do Estado de Direito, na linha evolutiva direta de V. Mhol.

22 Também parece claro que não é o caso de se pensar num governo de magistrados.

23 Cláusulas pétreas.

24 Hoje seria o caso evidente de se interpor as garantias institucionais e os remédios jurídicos.

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25 Ou poder-se-ia dizer simplesmente Estado de Direito Positivo, tornado ordenamento jurídico escrito (solene), formalizado, publicado e reconhecível perante a soberania popular.

26 Podemos definir o Estado de Direito como a anatomia do corpo jurídico.

27 Nossa relação com o presidencialismo é tão forte que, inclusive, temos um presidente de cada processo, que é o juiz natural ou o juiz responsável por determinado processo.

28 Todo esse item se refere ao chamado império da lei.

29 Aqui temos um quarteto articulado: 1) legalidade; 2) reserva legal; 3) isonomia; 4) eqüidade. A legalidade, por sua vez, pressupõe a igualdade ("Todos são iguais perante a lei"), pois sem a igualdade só há privilégios. Na anatomia do corpo jurídico, a legalidade (igualdade) corresponde ao fluxo sangüíneo.

30 Daí o princípio da isonomia: tratar os iguais, igualmente; os desiguais, desigualmente.

31 Neste item subentende-se a idéia de República e de Federação.

32 Sob esse quesito se esconde todas as características patrimonialistas do Direito.

33 Com destaque para os direitos e as garantias institucionais, a exemplo do próprio direito de petição.

34 Não há Poder Constituinte de fato que não seja revolucionário.

35 O que leva a alguns definirem (equivocadamente) como Poder Constituinte Derivado.

36 Neste sentido, ainda se diz que a Declaração de Direitos é cultural, uma vez que irradia a cultura popular que lhe dá sustentação. Só há sentido em se falar de Declaração de Direitos se há aceitação e reconhecimento.

37 Por exemplo, erradicar toda miséria social.

38 Por isso, também podemos dizer que as Declarações de Direitos têm muita afinidade com o intuito geral, popular, ou seja, têm um caráter muito mais cultural (a consciência do Direito), ao passo que a Constituição relata bem os direitos já aceitos e incorporados pela ordem estatal.

39 É certo que uma hermenêutica constitucional mais democrática e pluralista deverá ler o artigo cominado com o alcance social interposto no espírito da Constituição. Porém, para o caso deste trabalho, trata-se de artigo-símbolo dessa figura do direito-autoritário, da nossa cultura jurídica de que o Direito está a reboque do patrimônio e dos privilégios. De certo, é ainda um exemplo de que o proto-fascismo do Estado Novo não está totalmente curado, nem mesmo no âmbito constitucional.

40 Ainda que, em grande parte da história política brasileira, tenha prevalecido (ainda prevalece) juridicamente, politicamente a vontade dos grupos economicamente privilegiados e das classe sociais dominantes.

41 E certamente não se colocariam o problema de investigar se as leis em questão seriam justas ou não.

42 Dallari (1985) sinaliza para a Constituição da Colônia da Virgínia (depois Estado) como a primeira Constituição moderna, promulgada a 29 de junho de 1776, ou seja, quatro dias antes da Declaração de Independência das Colônias inglesas (4 de junho de 1776).

43 Normalmente as que projetam as ações estatais para o futuro: o Estado Constitucional Teleológico.

44 É curioso que, no Brasil, ao mesmo tempo em que discutimos direitos de 5ª Geração, apregoados diante do mundo virtual da telemática, também tenhamos o mesmo grito pela defesa dos Povos da Amazônia, os índios que primeiro ocuparam nosso país. Talvez nenhum outro povo ou Estado conheça tamanha diversidade e pluralidade de interesses e de direitos.

45 Aprofundaremos o debate acerca do Poder Constituinte Originário porque a operação em que este se transforma em Poderes Constituídos Derivados ilustra muito bem a passagem ou transformação do Estado Constitucional em Estado de Direito Positivo.

46 A não ser que ocorra uma revolução jurídica passiva e daí se transformem radicalmente as demais instituições. O que, do ponto de vista histórico e político, não parece muito plausível.

47 Só nesse aspecto da análise histórica é que se pode afirmar que o Estado Constitucional é um Estado de Direito.

48 Como se sabe, trata-se explicitamente do preceito do art. 1º da CF/88.

49 Kowarick, 1987.

50 O crime contra os pobres clássico que encontramos no Brasil, além da corrupção pública, enquadra-se nos crimes contra a economia popular e para estes deveria servir a ação civil pública e a ação popular.

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Sobre o autor
Vinício Carrilho Martinez

Pós-Doutor em Ciência Política e em Direito. Coordenador do Curso de Licenciatura em Pedagogia, da UFSCar. Professor Associado II da Universidade Federal de São Carlos – UFSCar. Departamento de Educação- Ded/CECH. Programa de Pós-Graduação em Ciência, Tecnologia e Sociedade/PPGCTS/UFSCar Head of BRaS Research Group – Constitucional Studies and BRaS Academic Committee Member. Advogado (OAB/108390).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MARTINEZ, Vinício Carrilho. Estado de Direito. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 920, 7 jan. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/7786. Acesso em: 26 abr. 2024.

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