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Fronteiras entre o direito público e o direito privado

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28/12/2005 às 00:00
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3. A Privatização do Direito Público

Se é certo esteja o Direito Privado publicizado ou socializado, estará o Direito Público "privatizado"? É de responder positivamente. O Estado, ao longo do tempo, veio tomando para si as atividades antes deixadas à discrição do particular. No contrato de trabalho, por exemplo, substitui a autonomia da vontade plena para dirigir as condições da avença. Mas, ao mesmo tempo em que "socializa" o Direito Privado, o Estado tem se valido de mecanismos peculiares a esse ramo para executar algumas de suas tarefas, como se vê nos contratos que o poder público entabula com os particulares.

O município que adquire veículos para recompor a frota de ambulâncias pratica um negócio jurídico com o particular, sob a disciplina do contrato de compra e venda (CC, arts. 481 e ss.). Outro exemplo significativo está no contrato de parceria público-privada previsto na Lei 9790/99, que cria as Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público. Aqui, tem-se um caso em que o Estado contrata uma pessoa jurídica de direito privado, associação ou fundação constituída por particular, para a consecução de determinado escopo público (promoção da saúde, educação, patrimônio artístico, meio ambiente etc). Rege-se o negócio, preponderantemente, pela principiologia dos contratos presente no sistema privado.

Agora, tem-se um ente público agindo sob a égide e orientação da lei privada e um ente privado exercendo funções que deveriam ser do Estado. Em síntese, tem-se o poder público agindo na esfera privada e um ente privado exercendo função tipicamente pública.

O particular está consciente de que, no mundo contemporâneo, a responsabilidade não é só do Estado, mas também sua. Esse compartilhar de tarefas repercute na vida particular, de forma que o indivíduo, ao agir por si mesmo, estará a agir para a comunidade em que vive, a fim de não excluí-la do desenvolvimento e garantir-lhe os direitos fundamentais da cidadania. Trata-se de uma nova realidade, fundada na responsabilidade social [10].

Essa questão tem sido pouco discutida no Brasil, embora a doutrina européia há muito a venha percebendo e estudando. A questão parece preocupar mais ao publicista, especialmente do Direito Administrativo, que vê seu terreno ser invadido pelo sistema privado. O campo mais fecundo do fenômeno ocorre na empresa. Vê-se rapidamente a proliferação de empresas geridas pelo Estado com critérios de economia concorrencial; entes públicos que se lançam na atividade empresarial em regime de concorrência e a participação dos entes públicos em sociedades de capitais [11]. O Direito Administrativo já não está infenso à norma privada.

E não é apenas na empresa que o fenômeno ocorre. A responsabilidade civil do Estado, oriunda de dano aos particulares, rege-se também pela norma civil, nela buscando o conceito e a sistemática do ato ilícito e das formas de sua reparação. No Brasil, se o preposto do Estado provoca dano a um particular, a Constituição só será chamada a dizer o fundamento da responsabilidade, no caso responsabilidade objetiva (art. 37, § 6º.). Tudo o mais, como a apuração do ilícito (autoria, dano e nexo causal) e a extensão e reparação do dano (dano emergente, lucros cessantes e dano moral), será ditado pela norma civil (CC, arts. 186 e 944 e ss.).

A publicização do Direito Civil e a atividade de direito privado exercida pela administração pública (contratação e responsabilidade civil) tornam mais tênue e permeável as fronteiras na summa divisio do Direito. A asserção de que o Direito Privado estaria sendo absorvido pelo Direito Público ou a afirmação segundo a qual a divisão entre os dois ramos já não se justificaria, uma e outra idéia soçobram diante daquela constatação. Classificar o Direito, dividindo-o em ramos, é tarefa da qual não se pode furtar o jurista, que é, antes de tudo, um cientista. Não quer isso implicar o estancamento das várias disciplinas jurídicas, afinal todas elas concorrem para um mesmo fim: a dignidade da pessoa humana e o ideal da justiça.


4. Novas Técnicas de Compreensão do Direito

Mais recentemente, novas técnicas permitem uma melhor visão do sistema jurídico. Dentre elas destacam-se o estudo interdisciplinar, multidisciplinar e transdisciplinar dos ramos científicos. Sob essas novas angulações, capta-se o direito privado a partir da ótica constitucional, entendida a Constituição como fator aglutinador da sociedade, a cujos objetivos, fundamentos e princípios preside. Antes, o Texto só era chamado em situações especiais; agora, figura como fundamento material do direito privado.

O Direito Civil deixou de constituir um sistema fechado e agora interroga outras disciplinas, mesmo metajurídicas, para oferecer a melhor solução ao caso concreto. Exemplo palpitante encontra-se no biodireito, em que o jurista é obrigado a socorrer-se do biólogo para solucionar o problema do embrião e das células-tronco. No futuro, as relações entre Direito e Biologia tornar-se-ão ainda mais estreitas, na medida em que o ser humano se aproxima da clonagem de si mesmo, evento do qual não está muito distante, pois a especulação científica jamais reverenciou a ética.

Assiste-se ao fenômeno da repersonalização do direito privado. O sujeito, não o patrimônio, passa a ser o centro de preocupação e o fator de interesse da norma privada. Como pondera MARIA CELINA BODIN DE MORAES, enquanto o Código dá prevalência e precedência às situações patrimoniais, no novo sistema de Direito Civil fundado na Constituição a prevalência é de ser atribuída às situações existenciais, ou não patrimoniais, porque à pessoa deve o ordenamento jurídico inteiro, e o ordenamento jurídico particular, dar a garantia e a tutela prioritárias [12].

Disso decorre que a abordagem do Direito Privado, especialmente no tocante aos contratos, mas sem excluir a propriedade e a família, não pode ver o Código como uma ilha, mas como parte integrante de um sistema complexo, um polissistema, presidido por uma base comum, a Constituição.

Logo, falar sobre os contratos, a propriedade, a família ou a empresa é tarefa a ser empreendida à luz da Constituição da República e de alguns outros sistemas, como o consumerista. Não há negar, nos tempos atuais, que o contrato, assim como a propriedade e a família, vistos desde a concepção oitocentista até agora, vêm ganhando uma conotação cada vez mais publicista. Sua principiologia, seus contornos, limites e conteúdo ora se embebem dispositivos privados ora vão socorrer-se da norma de Direito Público. Cuida-se de uma simbiose característica dos sistemas jurídicos contemporâneos.


5. O Interesse Social nas Situações Privadas

5.1. Contrato

O direito de livre contratar é expressão maior do ideário burguês pós-revolucionário, constituindo um princípio vinculado à noção de liberdade e igualdade presente na decantada Declaração de Direitos. É um dos pilares do Código de 1804 e está presente em todos os sistemas do mundo ocidental. Mercê desse cânone, à pessoa humana, enquanto ser dotado de personalidade e como cidadão livre, é dado pactuar nas condições que julgar adequadas, contratando como, com quem e o que desejar. Trata-se da faculdade de dispor cláusulas, firmando o conteúdo da avença e criando, inclusive, movas modalidades, vale dizer, os contratos atípicos.

Há uma explicação histórica para essa liberdade. Livre das peias do absolutismo, a sociedade pós-revolucionária pode interagir e buscar o que há de melhor para si, cumprindo ao Estado intervir apenas para assegurar a execução do contrato não cumprido, ou seja, para fazer valer a palavra empenhada e não honrada. A essa esfera de poderes, que impede a ingerência do Estado, abrindo espaço para a movimentação do particular, costuma-se chamar direitos de primeira geração.

A plena liberdade na contratação parte da premissa de que a vontade de ambos os contratantes tem o mesmo peso e que a contratação é lícita e legítima pelo só fato de respeitar-lhes a vontade. Disso resultaram aforismos caros à burguesia, como o contrato faz lei entre as partes e o combinado não é caro. Essa premissa permitiu, por exemplo, que trabalhadores europeus, no auge da Revolução Industrial, fossem contratados para laborar mais de doze horas por dia em troca de um salário de fome e sem qualquer assistência social, conforme referido no item 2 retro.

A ambição burguesa leva ao extremo o papel da vontade, firmando uma falsa idéia: a de que, sendo os homens naturalmente livres e iguais, a vontade do contratante, sendo livre e igual à do outro, é suficiente para legitimar a convenção. Tal raciocínio seria verdadeiro se os homens fossem naturalmente livres e iguais, mas não o são nem o poderiam ser. Os textos pós-revolucionários estabelecem o primado da liberdade e igualdade para todos, mas isso não vai além do formalismo. Igualdade material, que pressupõe tratamento desigual para situações desiguais, é algo não cogitado ou propositadamente esquecido no script burguês.

HOBBES, no Leviatã, via no homem um lobo na relação com o semelhante. ROUSSEAU, em seu Contrato Social e com a teoria do bom selvagem, dizia ser o homem bom por natureza, porém corruptível na vida gregária. Não se trata de uma visão pessimista do gênero humano; é uma visão realista. Nos últimos anos do Século XIX e primeiros do Século XX, o governo brasileiro estimulou a vinda de braços europeus para trabalhar nas fazendas de café do Sudeste. Aqui chegando, enfrentaram ambiente hostil e salário miserável e muitos se queixavam, trabalhando contrariados. Não entendia o barão do café, em sua mentalidade misoneísta, como alguém podia se queixar de cumprir a palavra empenhada, afinal o combinado não é caro. Que alternativa restava ao infeliz imigrante senão submeter-se aos desígnios do empregador? Por isso, tanto o governo alemão como o italiano, ainda no Século XIX, proibiram a emigração para o Brasil, decisão revista só revista décadas mais tarde.

Chegou um tempo em que o Estado interveio no campo dos contratos. Primeiro, fê-lo na locação de serviços, disciplinando o contrato de trabalho para o fim de delimitar a jornada diária, estabelecer o direito a férias, ao salário mínimo, à assistência previdenciária, dentre outros benefícios. Mais recentemente, na disciplina consumerista, reconheceu a condição de inferioridade do consumidor, assegurando-lhe direitos até recentemente impensáveis, como a facilitação do acesso à justiça com a inversão do ônus da prova e, especialmente, na disciplina dos contratos de adesão.

Num e noutro caso percebe-se a tentativa do Estado de preservar o equilíbrio contratual impondo um contrapeso na balança. As partes (empregador e empregado, fornecedor e consumidor) são materialmente desiguais; a vontade de uma, detentora da riqueza, prepondera sobre a da outra, carente da riqueza (o consumidor precisa do produto; o empregado não pode prescindir do salário). Logo, do poder público se exigem providências para manter o equilíbrio, seja pelo dirigismo contratual seja pela delimitação da vontade, seja, finalmente, pela criação de mecanismos facilitadores de direitos à parte em desvantagem. Como atesta LORENZETTI, a ordem jurídica atual não deixa em mãos dos particulares a faculdade de criar ordenamentos contratuais, equiparáveis ao jurídico, sem um interventor [13]. No caso, ao Estado reserva-se o papel de fiel da balança.

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O princípio da autonomia da vontade continua válido e informa todo o sistema contratual, mas não subsiste senão interagindo com outros princípios. Ao seu lado, convivem outras regras, como o da função social e o da boa-fé, aos quais se somam a possibilidade de revisão por fato imprevisto e a relatividade. É o que claramente se vê dos arts. 421, 422, 478 e outros do Código de 2002. No âmbito do consumidor, vêem-se os arts. 46 e ss. da Lei 8078/90 como mecanismos de controle da relação contratual [14].

A funcionalização do contrato, como fator de resguardo do interesse coletivo, é tema recorrente na doutrina e ideal perseguido pelos sistemas jurídicos. Precisar a amplitude do interesse público, porém, não é tarefa tão fácil quanto parece. Em relação à propriedade, o tema encontra-se sedimentado, pois sua função social está positivada no sistema desde 1934. Mas a função social do contrato, como norma positivada, era cânone desconhecido da legislação anterior a 2002. Às vezes têm-se critérios seguros para apurar a funcionalização das convenções: não haverá função social quando ilícito ou impossível seu objeto, como no exemplo do transporte de entorpecentes (ilicitude) ou no caso de alienação de coisa fora de comércio (impossibilidade). No primeiro caso, o ato refoge à ordem social, que conhece os males provocados pela droga; no segundo, não existe circulação de riquezas. Nenhum dos contratos interessa à sociedade, porque ambos lhe são hostis.

Mas, diante de numerosos casos, o intérprete se vê na dúvida e a ausência de preceito expresso não traz segurança para adotar uma solução. A questão repousa em saber qual o limite da vontade e em que caso o interesse público é violado. No exemplo do contrato de trabalho ofensivo à dignidade do operário, parece haver um conflito axiológico, representado pela colisão entre dois valores: o direito à livre iniciativa (autonomia da vontade em submeter-se ao trabalho) e a dignidade do operário (função social). Ninguém há duvidar de que a dignidade do homem constitua um interesse público, pois à sociedade repugna tanto a escravidão quanto o trabalho degradante. Então, a solução para o problema é de hermenêutica, repousando em saber se o trabalho desempenhado é ou não degradante de sua honra.

A exegese de um contrato, já se vê e já se deduz do rumo a que se deu a esta dissertação, às vezes escapa ao campo privatista e alcança o terreno constitucional. Na interpretação de uma convenção privada há de levar em conta, antes de tudo, o rol dos fundamentos e objetivos propostos para a Nação e, entre nós, estão eles no art. 1º. a 4º. do Texto de 1988. Um deles é primaz e jamais será esquecido em qualquer negócio jurídico. Trata-se do princípio da dignidade da pessoa humana, valor para o qual converge todo o sistema privado brasileiro. Por força desse cânone de aplicação plena, o ser passa a desempenhar um papel maior que o ter. A idéia da repersonalização derroga a mentalidade da patrimonialização do contrato.

Logo, o contrato cumpre uma função social quando, respeitando a dignidade do contratante, não viola o interesse da coletividade, à qual não interessam nem a ilicitude do objeto nem a ociosidade das riquezas. Para assegurar a funcionalização das avencas, foi preciso que o Estado interviesse no campo contratual, qualificando seu conteúdo e dando ensejo aos referidos direitos de segunda geração. Há um evidente contraste, pois os direitos de geração anterior eram caracterizados pela ausência do Estado; os direitos oriundos da função social do contrato são marcados pela postura contrária, vale dizer, pela ingerência do poder público no campo privado.

5.2. Propriedade

Tradicionalmente se conceitua a propriedade como um feixe de poderes, distribuído nos direitos de uso, gozo, disposição e reivindicação de uma coisa. A definição corresponde ao modelo romano, centrado nas idéias do jus utendi, fruendi et abutendi. A partir da concepção romana, os textos legislativos e a doutrina do Século XIX procuraram caracterizá-la como um direito absoluto, não no sentido de ser exercível erga omnes, como os direitos reais em geral, mas porque insuscetível de limitação pelo Estado. O Código Napoleão é a expressão da propriedade como poder ilimitado, sendo bastante conhecido seu art. 554, que definia o domínio como o direito de usar uma coisa da maneira "mais absoluta".

Contudo, esse egoísmo que impregna o direito de propriedade começou a ruir já no Século XIX. A teoria da humanização, referida no item 2, ressurge na Europa como tentativa de delimitar o uso da propriedade, de forma a qualificar seu exercício. Tal concepção ganha densidade graças ao esforço do juscivilismo francês. Merece destaque, nesse passo, a obra de LOUIS JOSSERAND. Sua grande contribuição nesse campo repousa na teoria do abuso do direito, exposta em De l’Esprit des droits et de leur relativité e, mais tarde, em Cours de Droit Civil Positif Français. Na visão de JOSSERAND, o direito de propriedade não pode ser exercido à discrição do titular, pois encontra limites no direito de terceiros. A propriedade tende, dessa forma, a encher-se de altruísmo e a converter-se no centro de obrigações positivas, despojando-se de seu caráter absoluto e estático para situar-se como um direito relativo e dinâmico [15].

Reconhecendo na propriedade uma faculdade individual, JOSSERAND entende-a limitada, porque seu exercício há de estar condicionado à observância dos interesses alheios. Exercendo-a contra esses interesses, o titular estaria a praticar o abuso, porque seus atos excederiam os limites pelos quais o direito lhe foi reconhecido pela coletividade. Dentre os abusos, menciona o da extração de água do subsolo, de modo a interromper o fluxo nos imóveis vizinhos [16].

Outra corrente a sustentar a funcionalização da propriedade parte de LÉON DUGUIT, em cuja obra Les Transformations Générales du Droit Privé Français dépuis le Code Napoléon, publicada em 1912, encontram-se as sementes de fundo jurídico que iriam determinar a opção pelo modelo social. Essa obra examina o absolutismo chancelado pelo Código de 1804 em confronto com os movimentos ideológicos que afligem a Europa naquele século, como o liberalismo e o marxismo, para concluir que o domínio, sendo um bem a serviço de todos, não pode ser exercido sem observar os interesses da sociedade.

Segundo a ótica desse autor, anotado do por SERPA LOPES [17], na sociedade moderna, onde impera a consciência da solidariedade entre os entes sociais, a liberdade implica o dever de os indivíduos empregarem sua atividade e talento no desenvolvimento dessa interdependência. Isso também deve ocorrer no exercício da propriedade, que, embora consistindo uma expressão da liberdade do homem, impõe ao detentor da riqueza a obrigação de manter e aumentar a solidariedade no tecido social.

A propriedade assume, nesse contexto, uma importância fundamental, pois é um instrumento destinado à produção de riquezas e à promoção do bem-estar. É que, achando-se as terras nas mãos de uma escassa minoria e constituindo-se elas no elemento natural de sustento do homem, urge conciliar o individualismo do domínio com as expectativas da sociedade. A dependência intersubjetiva, verificável em toda coletividade moderna, impõe restrições ao uso das coisas, notadamente dos bens imóveis, como forma de atender às necessidades coletivas.

Concluindo seu raciocínio, explica DUGUIT, mais uma vez citado por SERPA LOPES [18] que, hoje em dia, os mais ardentes defensores da propriedade individual, os economistas mais ortodoxos, se vêem obrigados a reconhecer que se a afetação de uma coisa à utilidade individual está protegida, deve-se antes de tudo à utilidade social dela resultante. De notar que as palavras de DUGUIT foram escritas dois anos antes da Primeira Grande Guerra, cujas causas não foram outras que não a disputa de terras entre as potências européias.

A teoria de DUGUIT pode ser vista como um marco na evolução do Direito Civil. Mas é passível de crítica quando afirma que o direito de propriedade "é" uma função social. Um direito subjetivo não pode ser uma função, senão metaforicamente. O direito de propriedade é e dificilmente deixará de ser uma faculdade individual. Quando se fala sobre a funcionalização, pretende-se aludir ao uso dos imóveis, quer urbanos quer rurais, segundo as diretrizes traçadas pelo ordenamento jurídico, que determina a política da propriedade sob os postulados da ordem econômica. Assim, a função social pode ser entendida como uma meta a ser seguida pelo titular de um imóvel urbano ou rural, que, ao utilizá-los, deverá fazê-lo segundo os balizamentos de Direito Público relativos à ordem econômica.

Cumpre registrar, contudo, que, quando foram concebidas, as teorias da função social tiveram em conta as riquezas agrárias. Não se detiveram a examinar outras importantes irradiações do domínio, como as relações entre proprietário e trabalhadores e os recursos naturais, assim como não se estenderam à propriedade urbana. Com o correr do tempo, porém, novas limitações foram sendo impostas em favor da coletividade, sendo as mais recentes as relativas ao meio ambiente. Logo, não só a significação do direito de propriedade é fruto de uma lenta transformação, como a própria extensão do princípio da função social vem evoluindo neste século.

De qualquer forma, a funcionalização do direito de propriedade é um dos mais claros sinais da inter-relação entre Direito Público e Direito Privado.

5.3. Família

Os olhos com que hoje se vê família são significativos da interpenetração entre os ramos do Direito. Houve um tempo, não muito distante na verdade, em que a instituição familiar se organizava em torno de duas idéias: a preponderância do marido na administração do lar e o casamento como sua fonte exclusiva. Agora, os textos legislativos não só aboliram a "chefia" da sociedade conjugal, como também prevêem outras organizações familiares, como a convivência e o monoparentesco. Essa nova visão tem duplo significado: primeiro, atende ao princípio da igualdade material entre os cônjuges; segundo, reconhece a afeição, e não o formalismo, como causa justificadora da organização familiar.

O Código de 2002 não se furtou a essas orientações. No tocante à isonomia no lar, observam-se dispositivos como o do art. 5º., I, que permite aos pais, não apenas ao "pai", emancipar o filho; do art. 1567, que prescreve ser direito-dever de ambos os cônjuges a condução da família, tarefa antes exercida pelo "cabeça do casal"; ou ainda do art. 1630, onde se fala em poder familiar, não mais "pátrio poder". No tocante às formas de constituição de família, dignos de realce são os arts. 1723 e ss., que aludem à figura da convivência. Tais disposições afinam-se com a linha de pensamento adotada pelas legislações ocidentais na disciplina da família.

Tais dispositivos fundam-se no princípio da dignidade da pessoa humana, aqui já referido e positivado no art. 1º., III, do Texto de 1988. A família é um núcleo que se organiza a partir da afeição e que se destina à busca de objetivos comuns. Entre o casal se estabelece uma comunhão de interesses, dos quais a criação dos filhos é um dos vértices. Na família, a criança e o adolescente têm sua formação e nela terão as primeiras noções sobre a vida gregária, as noções sobre o certo e o errado, o justo e o injusto, o individual e o coletivo. O ambiente familiar deve ser propício à auto-realização de cada um de seus membros. Marido e mulher, companheiro e companheira, pais e filhos, todos têm na família um espaço para o exercício dos direitos de personalidade. Na ordem anterior, a família, como instituição, era superior aos seus componentes; agora, superiores são seus membros, considerados em sua individualidade.

Como explica SCALISI, a pessoa não é mais o sujeito de direito considerado em termos econômico-produtivos, mas sim o sujeito histórico-real, visto na multiplicidade de suas manifestações e como portador de valores, como a dignidade, a igualdade e a liberdade [19]. A pessoa, destinatária última dos valores perseguidos pela sociedade e pelo sistema jurídico, é o alvo para o qual converge a organização familiar. Numa palavra, disciplina-se a organização familiar para assegurar a auto-realização do indivíduo. No mesmo sentido posiciona-se TEPEDINO, para quem a família, com o Texto de 1988, passa a ser valorada de maneira instrumental, na medida em que se constitui num ambiente de desenvolvimento da personalidade dos filhos e da promoção da dignidade de seus componentes [20].

Quaisquer discriminações estão, destarte, vedadas. A mulher não pode exercer seu verdadeiro papel de mãe e esposa se o Direito a põe numa situação de mera coadjuvante na administração da família; os filhos não encontrarão seu real espaço se tratados desigualmente, como até 1988 ocorria. As crianças de hoje já não crescem ostentando o estigma de "filho ilegítimo", "filho adulterino" ou "filho sacrílego", dentre outras nomenclaturas não menos desairosas e que, em alguns casos, comprometiam gravemente o desenvolvimento de sua personalidade. Também já não se discrimina a união entre homem e mulher não casados, pois, na proteção que se confere à família, não se pode levar em conta sua forma de constituição, mas sim o interesse dos que dela participam. Por isso que a família, na dicção de PERLINGIERI, é formação social, lugar-comunidade tendente à formação e ao desenvolvimento da personalidade de seus participantes; de maneira que exprime uma função instrumental para a melhor realização dos interesses afetivos e existenciais de seus componentes [21].

Essa releitura da disciplina familiar, que tende à repersonalização do instituto, refletirá claramente no tecido social. Ao valorizar o indivíduo e assegurar-lhe um real papel na família, o sistema estará buscando a ordem social. Aqui se enquadra, por exemplo, a figura da adoção. Em Roma, ela se justificou pela necessidade de dar filhos a pessoas que os não podiam ter. Morrer sem herdeiros era, para o romano de priscas eras, um mal maior que a própria morte. Posteriormente, o tema da adoção inverte seu eixo e, agora, a causa reside em dar pais a crianças que, por não os ter, encontram-se em desamparo. Hoje, a adoção é ainda vista como mecanismo de proteção do menor, porém está ela funcionalizada para atender a interesses coletivos. Deixar o menor ao desamparo é atentar contra a paz social e impedir que a criança abandonada de hoje converta-se no criminoso do porvir.

A busca pela ordem social, tendo como um de seus vértices a revaloração da família, confere contornos publicistas ao instituto. Por isso o Estado interveio e, sob a premissa de que a família é merecedora de sua espacial proteção (CF, art. 226, caput), atraiu para si determinadas funções, como a do planejamento familiar gratuito (CF, art, 226, § 7º). Tal como nos contratos e na propriedade, a família agora também pode ser encarada sob a perspectiva do Direito Constitucional, pois, como explica GAMA, em todos os cantos do planeta, o modelo tradicional de família vem perdendo terreno para o surgimento de uma nova família, que é essencial para a própria existência da sociedade e do Estado, mas funcionalizada em seus partícipes [22].

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Sobre o autor
Roberto Wagner Marquesi

mestre em Direito, professor dos cursos de graduação e pós-graduação em Direito Civil da Universidade Estadual de Londrina

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MARQUESI, Roberto Wagner. Fronteiras entre o direito público e o direito privado. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 908, 28 dez. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/7788. Acesso em: 19 abr. 2024.

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