III. O REGIME JURÍDICO DO CONTRATO DE TRABALHO NO MUNDO CONTEMPORÂNEO. PRINCIPIOLOGIA: REDISCUTINDO A AUTONOMIA DOGMÁTICA DO DIREITO DO TRABALHO
Referíamos, na introdução, a obra de AMÉRICO PLÁ RODRIGUEZ (entre nós, o divisor de águas no seu tema). Mas o estudo sério dos princípios juslaborais obviamente não começa e nem termina com os escritos do jurista uruguaio. Não são poucos os autores que, na doutrina mundial, procuraram isolar e densificar os chamados princípios do Direito do Trabalho. Tal constatação já denota a importância capital desse estudo para a Ciência do Direito do Trabalho. Dentre tantos ilustrados, e à vista dos limites materiais deste artigo, ater-nos-emos a dois deles, cujas obras destacaram-se pela notoriedade e pela sistematicidade. Ambos fizeram escola em seus respectivos continentes: na Europa ocidental, o espanhol MIGUEL HERNAINZ MARQUES; na América Latina, o próprio AMÉRICO PLÁ RODRIGUEZ. A partir desses escólios, examinados em cotejo, discutiremos os possíveis caminhos de atualização da principiologia juslaboral. Focalizaremos, outrossim, os princípios que mais relevam para o Direito Individual do Trabalho, uma vez que os princípios inerentes ao Direito Coletivo do Trabalho [32] são de diversa inflexão e merecem abordagem apartada, noutra ocasião.
Na Espanha, para além dos princípios gerais de direito que se aplicam ao Direito do Trabalho, HERNAINZ MARQUES [33] já apontava, na década de cinqüenta, princípios específicos da disciplina, observando que a resposta à questão da sua existência autônoma dependeria do desenvolvimento alcançado pelo Direito do Trabalho em cada país, bem como da armação doutrinal conjunta e homogênea construída em torno da lei com o contributo dos aportes científicos dos doutos. Nessa linha, para o caso espanhol, indicava os seguintes: o princípio da irrenunciabilidade [34], o princípio «pro operario» [35], o princípio do rendimento [36] e o princípio da continuidade [37]. Para além desses, PLÁ RODRIGUEZ enunciou o princípio da primazia da realidade, o princípio da boa-fé e o princípio da razoabilidade.
Convém, agora, confrontar as versões das duas obras para buscar um sentido unívoco e, no que couber, reponderá-las.
O princípio da proteção, a que temos feito alusões, equivale ao "princípio pro operario" de HERNAINZ MARQUEZ, numa concepção mais atual e pedagógica. Reputa-se-o o mais importante entre os princípios específicos de Direito do Trabalho. Corresponde
ao critério fundamental que orienta o Direito do Trabalho pois este, ao invés de inspirar-se num propósito de igualdade, responde ao objetivo de estabelecer um amparo preferencial a uma das partes: o trabalhador [38].
Para PLÁ RODRIGUEZ, o princípio da proteção se expressa sob três formas distintas (subprincípios ou, na dicção do autor, "regras"), a saber: (a) a regra "in dubio pro operario", que consiste em um critério de interpretação pelo qual, entre os vários sentidos possíveis de uma norma, deve o juiz ou o intérprete optar por aquela que seja mais favorável ao trabalhador (com reflexos ponderáveis, p. ex., na distribuição do ônus da prova [39]); (b) a regra da norma mais favorável, que determina a chamada "hierarquia dinâmica" do Direito do Trabalho [40]: no caso de haver mais de uma norma aparentemente aplicável ao caso, deve-se optar por aquela que seja mais favorável, ainda que não corresponda aos critérios clássicos de hierarquia das normas (assim, e.g., o contrato individual de trabalho que preveja jornada de seis horas diárias e trinta horas semanais prevalece sobre a lei ordinária ou sobre a própria Constituição, caso prevejam duração maior [41]); (c) a regra da condição mais benéfica, que ajusta o princípio do direito adquirido à cambialidade e à profusão normativa do Direito do Trabalho: a aplicação de uma nova norma trabalhista não pode servir para diminuir as condições mais favoráveis já fruídas pelo trabalhador [42] (as condições antigas só podem ser alteradas pelas novas regulamentações ou por disposições subseqüentes de caráter geral, aplicáveis a todo um conjunto de situações trabalhistas, se, em relação às novas condições, não forem globalmente mais benéficas).
O princípio da irrenunciabilidade é enunciado como a impossibilidade jurídica de o empregado privar-se voluntariamente de uma ou mais vantagens concedidas pelo Direito do Trabalho (objetivo) em seu benefício. Mas, nesse aspecto, PLÁ RODRIGUEZ diverge nominalmente de HERNAINZ MARQUEZ, por entender que o princípio da irrenunciabilidade não se limita a obstar a privação voluntária de direitos em caráter amplo e abstrato (e.g., a renúncia geral ao direito de gozar férias), mas também a privação voluntária de direitos em caráter restrito e concreto (e.g., a renúncia às férias adquiridas entre os anos de 2003 e 2004), e previne "tanto a que se realize por antecipação como a que se efetue posteriormente" [43]. Esse princípio tem fundamento na indisponibilidade de certos bens e direitos (e.g., a saúde e a integridade física do trabalhador), no cunho imperativo de certas normas trabalhistas (e.g., as normas que garantem o direito ao repouso semanal remunerado [44]) e na própria necessidade de limitar a autonomia privada como forma de restabelecer a igualdade das partes no contrato de trabalho. Fora desses pressupostos, porém, é de se admitir a renúncia "a posteriori" de direitos trabalhistas, notadamente quando se consume no imo de uma transação, mediante concessões recíprocas.
Do princípio da continuidade tratamos há pouco, sob a ótica de HERNAINZ MARQUEZ (supra, nota n. 37). A mais do que já se disse, acresça-se, com PLÁ RODRIGUEZ, que esse princípio não se circunscreve à preferência pelos contratos de duração indefinida, desdobrando-se ainda no próprio dinamismo dos contratos de trabalho (que admitem amplo espectro de transformações durante a sua execução, sem prejuízo do prosseguimento da relação contratual), na viabilidade de manutenção do contrato apesar dos incumprimentos e das nulidades e, por fim, na resistência em se admitir a rescisão do contrato por exclusiva vontade patronal [45].
Segue-se o princípio da primazia da realidade, que não é referido por HERNAINZ MARQUEZ. Presta-se aos casos de desajuste entre a realidade e as formas, as formalidades ou as aparências: "em matéria de trabalho importa o que ocorre na prática, mais do que aquilo que as partes hajam pactuado de forma mais ou menos solene, ou expressa, ou aquilo que conste em documentos, formulários e instrumentos de controle" [46]. Ou seja: os fatos primam sobre as formas. Esse princípio relaciona-se à idéia do contrato de trabalho como contrato-realidade: à diferença dos contratos de direito civil, a produção de efeitos jurídicos e a aplicação do Direito dependeriam do cumprimento mesmo da obrigação contraída, não bastando o acordo de vontades; noutras palavras, "no direito civil o contrato não está ligado a seu cumprimento, enquanto no do trabalho não fica completo senão através da sua execução" [47]. PLÁ RODRIGUEZ sugeria, com isso, que o contrato de trabalho só teria relevância (ou mesmo existência) no plano juslaboral quando houvesse manifestação fenomenológica do fator trabalho, i.e., quando a obrigação de prestar trabalho fosse efetivamente cumprida; de fato, só então o contrato desafiaria a incidência de todo o arcabouço normativo juslaboral. Já no Direito Civil, as normas têm incidência útil desde o momento lógico/histórico do acordo de vontades, independentemente da execução contratual.
Pensamos que essa distinção, clássica no Direito do Trabalho, peca pelo excessivo maniqueísmo e não resiste à variedade dos instrumentos jurídicos de consenso que permeiam o tráfico socioeconômico contemporâneo. Se fosse assim, o pré-contrato de trabalho jamais atrairia a aplicação de normas trabalhistas tipicamente tuitivas (regras e princípios), o que fere a boa técnica e o senso de justiça, além de contradizer o princípio da equiparação, que rege universalmente o instituto do contrato preliminar (= contrato-promessa), conquanto seja meramente intuitivo na legislação brasileira (vide artigos 462 a 466 do NCC) [48]. Além disso, estariam alheios à regulação especial da Consolidação das Leis do Trabalho até mesmo os contratos de trabalho definitivos que, por culpa do empregador, caso fortuito ou força maior (e.g., moléstia súbita do contratado), deixassem de ter execução, mensurando-se eventual indenização sob os parâmetros imprecisos do Direito Civil. A jurisprudência demonstra não ser essa a percepção preponderante nos quadros da Justiça do Trabalho (como, p. ex., nos casos de admissão em sábado não trabalhado, seguida pela interrupção fortuita do contrato de trabalho e ulterior resilição por iniciativa do empregador, antevendo a incapacidade ulterior do contratado): mesmo antes da EC n. 45/2004, as declinações de competência eram incomuns, dando-se à hipótese tratamento celetário. É que os deveres comunitários de fidelidade, colaboração e assistência dimanam do próprio tipo contratual, independentemente de sua execução mais ou menos integral.
Com efeito, ao Direito do Trabalho contemporâneo interessa também o processo de formação do contrato de trabalho, o acordo de vontades e o próprio modo de se obtê-lo, independentemente da execução do contrato "a se". Eis o que justifica todas as construções em torno da teoria das nulidades no Direito do Trabalho e ― insista-se ― confere sentido à investigação do contrato-promessa no marco do Direito laboral; são, ambos, temas que têm recebido destacada atenção, tanto na doutrina juslaboral quanto no próprio Direito positivo (assim, e.g., em Portugal, onde o contrato-promessa de trabalho mereceu positividade no Código do Trabalho de 2003). Logo, ainda que se reconheça o sentido e a entidade do princípio da primazia da realidade ― como pessoalmente reconhecemos ―, é mister redimensioná-lo em face da nova fenomenologia à qual o Direito do Trabalho tem estado permeável desde os finais do século XX: negociações preliminares, contratos preliminares de trabalho, contextos de culpa "in contrahendo", vícios de formação, etc. Ao lado da realidade factual (= execução do objeto do contrato), há a realidade pactual (= acordo de vontades típico), que não pode ser ignorada.
O princípio da razoabilidade é provavelmente o mais elástico de todos os princípios juslaborais, carreando sempre boas doses de subjetividade. Corresponde à idéia de que o ser humano, em suas relações trabalhistas, procede e deve proceder conforme à sua razão. É certo não se tratar de princípio exclusivo do Direito do Trabalho; antes, é um princípio geral de Direito (sem nota de especificidade ― cfr., supra, a nota n. 11), imanente à ordem jurídica em sua globalidade. Não por outro motivo, é freqüentemente invocado por constitucionalistas, civilistas e penalistas. Nos lindes do Direito do Trabalho, presta-se à medição da verossimilhança de determinada explicação ou solução; assim, p.ex., não é razoável supor que os ex-empregados de uma dada empresa tenham espontaneamente se demitido e constituído uma cooperativa entre si para, a partir do mês seguinte, prestar serviços à mesma empresa, por preço unitário e sem os encargos sociais de praxe [49]. O princípio da razoabilidade induz, nesses casos, à presunção da fraude. Trata-se, porém, de uma incidência que não inspira qualquer originalidade em matéria trabalhista.
PLÁ RODRIGUEZ ainda identifica o princípio da boa-fé como um princípio específico do Direito do Trabalho, derivando-o do que é (ou foi) o princípio do rendimento. Para o autor,
se se acredita que há obrigação de ter rendimento no trabalho, é porque se parte da suposição de que o trabalhador deve cumprir seu contrato de boa-fé e entre as exigências da mesma se encontra a de colocar o empenho normal no cumprimento da tarefa determinada [50].
Com isso, pretendeu-se banir,do panteão axiológico a sistematizar, o princípio do rendimento ― provavelmente pela sua captação fascista. Mas a justificação de PLÁ RODRIGUEZ não foi, a esse propósito, explícita [51]. Para recusá-lo, ponderou que o princípio não é universal (não alcançaria relações de trabalho subordinado que não acrescem à produção nacional, como o trabalho doméstico), tem motivação político-patriótica (justificação mais próxima àquela que sugerimos), seu papel é meramente compensatório e secundário (não serviria para justificar o Direito do Trabalho como ramo autônomo), desprega-se a olhos vistos dos demais (falta-lhe a finalidade tuitiva) e é pragmaticamente unilateral ("tudo se reduz a uma série de obrigações a cargo do trabalhador" [52]). São todos argumentos verdadeiros. Numa perspectiva atualizadora, o princípio do rendimento pode ser apreendido, hoje, como princípio da prevalência dos interesses de gestão (supra, nota n. 36), reequilibrando-se o edifício dogmático e abandonando-se o viés paternalista. Mas, ainda assim, estará subordinado ao princípio da proteção (que prevalecerá, na maior parte dos conflitos), dada a primazia da dignidade humana como fundamento da República.
Ao mais, embora o princípio da boa-fé não seja tampouco um princípio exclusivo do Direito do Trabalho, sustentou-se que, no seu bojo, sobejasse em importância, porque a relação de emprego não se resume a um negócio circunstancial ou a uma fugaz transação mercantil, mas contém vínculos sociológicos pessoais e permanentes [53]. Assim,
a justificação e a aplicação deste princípio têm um significado, uma duração e uma necessidade muito superiores às que podem ter em contratos que se esgotam em um intercâmbio único de prestações ou em uma simples correspondência de prestações materiais [54].
De nossa parte, cremos que, se é inegável que o princípio da boa-fé ganha especial dimensão nos lindes do Direito laboral (especialmente em face do caráter ontológico do objeto da prestação contratual, que é emanação da própria personalidade da pessoa humana trabalhadora), também é certo que, tal como ocorre com a razoabilidade, um estudo apartado do instituto da boa-fé nos estritos limites do Direito do Trabalho não se justifica, senão como compêndio de casuísmos. Melhor será que, à mercê da sua universalidade e da sua plasticidade, a boa-fé inspire estudos de corte epistemológico transversal, que a desenvolvam em todas as suas manifestações disciplinares (inclusive nas searas do Direito público), com visão de conjunto [55].
Por derradeiro, interessa dirimir uma questão de fundo lógico-estrutural que, longe de ser cerebrina, tem repercussões ideológicas contundentes no manejo e na hermenêutica do Direito do Trabalho.
Enunciar princípios próprios do Direito do Trabalho significa reconhecer-lhe autonomia dogmática [56], para além da autonomia enciclopédica (há muito conquistada no universo acadêmico, mediante cadeiras independentes e especializações disciplinares), da autonomia judiciária (mais aguda em alguns países ― como no Brasil e na Alemanha, que mantêm ramos autônomos do Poder Judiciário para a resolução dos litígios oriundos das relações de emprego [57] ― e menos evidente em outros ― como, e.g., em Portugal ou Espanha, que possuem tão-só unidades judiciárias especializadas na matéria [58], sem autonomia corporativa) ou, como se verá, da própria autonomia sistêmica.
Objeta-se, porém, que os princípios em questão não são mais que princípios de Direito Civil refigurados (e.g., o princípio de tutela do contraente débil e o princípio da primazia da materialidade subjacente), de modo que o Direito do Trabalho não teria cariz principiológico autônomo. Diz-se, ainda, que a dogmática civil já basta à resolução das questões laborais e o Direito do Trabalho não seria mais que o Direito civil do contrato de trabalho e da relação jurídica que se segue (logo, sem autonomia dogmática).
No Brasil, são dilemas taxonômicos que já (ou ainda) não se põem e tampouco se renovam; em Portugal, porém, a discussão persiste em acesa polêmica [59]. Não há, neste artigo, espaço hábil para exaurir um debate de tais proporções. Por isso, cingimo-nos a expressar nosso entendimento.
O Direito do Trabalho tem três características que reclamam uma dogmática própria e o despregam do Direito Civil. A uma, é um Direito de (re)composição social e econômica: existe basicamente para mediar e (re)equilibrar o secular conflito entre capital e trabalho (cuja existência é insofismável, ainda que se refutem os demais pressupostos do pensamento marxista). A duas, é um Direito essencialmente tuitivo (ao contrário do Direito Civil, que é apenas acidentalmente tuitivo). A três, é um Direito de blindagem: resguarda a dignidade humana ao regular a mais visível das projeções da personalidade do "homo faber" ― o seu trabalho ―, antepondo a última barreira à mercantilização vil e cabal da mão-de-obra. Nesse particular, está mais próximo do Direito Penal, que blinda o "jus libertatis", que do Direito Civil, que regula a circulação de riquezas. Não se pode, portanto, reconduzi-lo pura e simplesmente, sob quaisquer pretextos, à dogmática juscivilista [60] ― o que não impede, porém, que a dogmática juslaboral empreste teorias e conceitos daquela primeira, ou a favoreça com elementos próprios (como se deu, e.g., com a "apropriação civilista" do princípio da proteção e das suas concretizações [61]). Deve-se ter em mente que os ramos do Direito não são compartimentos lógico-formais estanques, mas sim abstrações científico-pedagógicas que freqüentemente se comunicam.
Tampouco se pode afirmar que a autonomia do Direito do Trabalho seja meramente sistemática ou que não haja particularidades no direito do empregador à atividade do trabalhador [62]. À diferença de outras áreas suscetíveis às fórmulas gerais do Direito das Obrigações, o mundo do trabalho envolve um objeto útil que é, em termos absolutos, um bem "extra commercium", indissociável da própria personalidade humana: a força de trabalho do contraente-empregado. Admitir o contrário significaria supor a licitude do escravagismo sob o pálio da autonomia de vontades. Não se concebe, por outro prisma, que a força de trabalho subordinada possa ser "locada" à maneira de bens móveis ou imóveis, sem uma rigorosa especialidade tuitiva. Seria o mesmo que supor a licitude de servidões humanas "pro tempore" ou, na casuística recente de precarização das relações de trabalho, cogitar da validade e da eticidade das odiosas operações de "marchandage" de mão-de-obra humana [63].
Não há, a rigor, qualquer outro tipo contratual idôneo a regular e limitar, no nascedouro, um bem da vida com mesma dignidade constitucional. Assim, p. ex., não existem contratos que alienem ou disponibilizem, sob condições de sujeição hierárquica, a vida, a liberdade ou a integridade física do contraente [64]. Ou, se existem, não têm validade à luz do Direito [65].
Parece-nos, portanto, que o princípio da proteção e os seus consectários doutrinais concernem à própria natureza da relação de emprego, distinguindo-a ontológica e axiologicamente das demais relações contratuais ou obrigacionais (ainda que se admita, hodiernamente, o relativo "abandono" da idéia do "favor laboratoris" [66] em razão dos influxos ideológicos da filosofia liberal-econômica e do escamoteamento do conflito social pela lógica da exclusão [67]). Tal imanência confere à relação de emprego uma inarredável singularidade, de ordem científica e dogmática. E a especialidade não decorre apenas da intensidade com que os elementos personalíssimos se apresentam nas relações de emprego, mas também ― e sobretudo ― daquela condição ontológica de especial vulnerabilidade do contraente-empregado em seus atributos de personalidade, que é da essência mesma do contrato de trabalho (subordinação jurídica), não o sendo em quaisquer outros. Isso ainda é assim, como foi outrora e será amanhã, porque
O direito privado clássico considerava a autodeterminação individual, no sentido da liberdade negativa de fazer ou não fazer o que se deseja, garantida suficientemente através dos direitos da pessoa e da proteção jurídica contra delitos, através da liberdade de contratos (especialmente para a troca de bens e de serviços), através do direito à propriedade, que incluía o direito de utilizar e de dispor, inclusive no caso de herança, e através da garantia institucional do casamento e da família. No entanto, tal situação modificou-se radicalmente com o surgimento de novas áreas do direito (como é o caso do direito econômico, social e do trabalho) e com a materialização do direito penal, do direito de contrato e do trabalho. Houve uma mistura e uma união de princípios que antes estavam subordinados ao direito privado ou ao público. Tudo indicava que o objetivo do direito privado não podia limitar-se à autodeterminação individual, devendo colocar-se também a serviço da realização da justiça social […]. Sob este ângulo, considerações de ética social infiltram-se em regiões do direito privado que até então se limitavam a garantir a autonomia privada [como o Direito dos contratos]. O ponto de vista da justiça social exige uma interpretação diferenciadora de relações jurídicas formalmente iguais, porém diferentes, do ponto de vista material, sendo que os mesmos institutos jurídicos preenchem funções sociais distintas [68].
Nessa última peculiaridade ― a renovação funcional dos institutos jurídicos clássicos, baseada nos princípios e nas condições especiais necessárias ao desenvolvimento e ao exercício da personalidade e das capacidades individuais do trabalhador subordinado, como também ao desenvolvimento e ao exercício da cooperação coletiva no nível da empresa ("Gemeinschaftsverhältnis") ― reside, afinal, a identidade dogmática do Direito do Trabalho. A não ser desse modo, até o Direito Penal ― que envolve, em última instância, a liberdade pessoal dos cidadãos, a par do seu patrimônio ― também estaria circunscrito ao âmbito privatístico, visto como esses dois bens da vida são igualmente objetos históricos do Direito Civil [69].