Transplantes de órgãos e tecidos sob as perspectivas jusnaturalista e juspositivista

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O objetivo deste trabalho é discutir acerca da remoção de órgãos, tecidos e partes do corpo humano para fins de transplante e tratamento, de acordo com a lei vigente no ordenamento jurídico pátrio, sob o enfoque jusnatualista e juspositivista.

Resumo: O objetivo deste trabalho é discutir acerca da remoção de órgãos, tecidos e partes do corpo humano para fins de transplante e tratamento, de acordo com a lei vigente no ordenamento jurídico pátrio, sob o enfoque jusnatualista e juspositivista. Diante do avanço tecnológico, da genética e das inovações trazidas pelas ciências biomédicas a tendência é que questões relativas à bioética e biodireito apareçam cada vez mais. Nesse sentido, o presente trabalho baseia-se em pesquisa bibliográfica e documental a fim de discutir a respeito dos transplantes sob o enfoque do direito natural e do direito positivo.

Palavras-chave: Transplante de órgãos. Filosofia do direito. Jusnaturalismo. Juspositivismo.


INTRODUÇÃO

Atualmente, estima-se que pouco mais de 35 mil pacientes ativos em lista de espera de transplantes, de acordo com dados atualizados em junho/2019 pela Associação Brasileira de Transplante de Órgãos – ABTO, sem mencionar os pacientes pediátricos. No ordenamento jurídico brasileiro, há leis especificas que regulamentam sobre os transplantes, incluindo os requisitos legais que devem ser preenchidos.

Contudo, a Lei 9.434/97, regulamentada pelo Decreto nº. 2268/97 e alterada pela Lei nº. 10211/2001, que dispõe acerca da remoção de órgãos, tecidos e partes do corpo humano para fins de transplantes trouxe várias modificações originando algumas polêmicas.

Diante deste quadro, parece aceitável que a decisão de optar pela doação de órgãos e tecidos seja incumbida ao cônjuge ou aos familiares? Como a manifestação de vontade do falecido pode ser interpretada pela visão jusnaturalista?

O que infere-se com o presente trabalho é brevemente demonstrar, que por trás da norma positivada, existe preceitos dotados de caráter universal intrínseco a natureza do homem, denominado pela ciência jurídica como direito natural.


TRANSPLANTES “POST MORTEM” E “INTER VIVOS” E A NORMA VIGENTE

A engenharia genética, a embriologia, as inovações proporcionadas pelas ciências biomédicas e outras tecnologias aplicadas à saúde trouxeram questões referentes à disposição de partes do corpo humano culminando em um embate ético-jurídico dos valores relativos à liberdade científica. Nesta seara, destaca-se a bioética e o biodireito como ramos do direito destinados à solucionar tais questões.

Neste sentido Maria Helena Diniz (DINIZ, 2010, p.19) aduz que:

“Com reconhecimento do respeito à integridade humana, a bioética e o biodireito passam a ter um sentido humanista, estabelecendo um vínculo com a justiça. Os direitos humanos, decorrentes da condição humana e das necessidades fundamentais de toda pessoa humana, referem-se à preservação da integridade e da dignidade dos seres humanos e à plena realização de sua personalidade. A bioética e o biodireito andam necessariamente juntos com os direitos humanos (...)”.

Sucintamente, em relação à disposição de partes do corpo humano, podendo ser “post mortem “ ou “ inter vivos”, a aplicabilidade da norma jurídica faz-se fundamental. Em linhas gerais, a retirada “post mortem” de tecido, órgãos e partes do corpo humano para fins de transplantes ou tratamentos deverá ser precedida de prova incontestável da morte encefálica, consubstanciada em declaração médica acerca da cessação da atividade cerebral. No caso de transplantes de órgãos e tecidos “inter vivos”, a doação voluntária pode ser feita por escrito por pessoa juridicamente capaz, na presença de duas testemunhas, especificando o material a ser transplantado. No caso, observa-se que a doação de órgãos ou tecidos “inter vivos” é uma decisão exclusiva da pessoa, de forma que a pessoa não pode ser obrigada a doar seus órgãos em vida, em respeito ao princípio da dignidade da pessoa humana.

No que tange à disposição de remoção de órgãos, tecidos e partes do corpo humano, em vida ou “post mortem” para fins de transplantes e tratamento, a Lei nº. 9434/1997 introduziu no ordenamento jurídico brasileiro alterações que acarretaram em embates polêmicos. Entre eles a doação presumida de órgãos e tecidos, com efeito “post mortem”, mediante diagnostico de morte encefálica de acordo com Resolução nº. 1480/97 do Conselho Federal de Medicina que não possui eficácia e vigência por força da Lei nº 10.211/2001. Conforme dispõe os arts. 13 c/c 22 da Lei 9434/97, que para fins de retirada de órgãos para serem utilizados em transplantes, quando na morte encefálica, a instituição hospital deve, obrigatoriamente, notificar à Central de Notificação, Captação e Distribuição de Órgãos de sua respectiva unidade de federação, (DINIZ, 2009, p. 316-317).

Outra questão suscitada pela referida lei, tratando-se de transplante “post mortem” o doador será aquele que não manifestar em vida vontade contrária, ou aquele cujo cônjuge ou parente em linha reta ou colateral até o segundo grau consentir a retirada de seus órgãos, conforme dispõe o art. 4º da Lei 9434/97.

Por outro lado, o Enunciado nº. 277 do Conselho da Justiça Federal afirmou ser válida a disposição gratuita do próprio corpo para depois da morte, de forma que a manifestação expressa do doador de órgãos em vida prevaleça sobre a vontade dos familiares, restando que a aplicação do art. 4º supracitado fica restrita à hipótese de silencio do potencial doador (DINIZ, 2009, p. 317).

Neste sentido, observando que os operadores do direito consideraram outro aspecto em relação à manifestação de vontade do doador de órgãos, importante ressaltar acerca da essência da interpretação da norma, vez que o órgão o jurídico, os indivíduos e o Direito como ciência terão uma interpretação diferenciada a respeito da norma jurídica. Nos ensinamentos de Hans Kelsen:

quando o Direito é aplicado por um órgão jurídico, este necessita de fixar o sentido das normas que vai aplicar, tem de interpretar estas normas. A interpretação é, portanto, uma operação mental que acompanha o processo da aplicação do Direito. (...) os indivíduos, que tem – não de aplicar, mas – de observar o Direito, observando ou praticando a conduta que evita a sanção, precisam de compreender e, portanto, de determinar o sentido das normas jurídicas que por eles hão de ser observadas. E, finalmente, também a ciência jurídica, quando descreve um Direito positivo, tem de interpretar as suas normas”. (KELSEN, 2003).

Para Kelsen, a interpretação do Direito pelo órgão que o aplica será distinta da interpretação do Direito pela pessoa privada e, especialmente, pela ciência jurídica.


TRANSPLANTE DE ÓRGÃOS SOB O ENFOQUE DO JUSNATURALISMO E JUSPOSITIVISMO

Inicialmente, afirma-se que o direito no sentido dogmático pode ser estudado sob dois sentidos, sendo eles norma e faculdade. Precisamente, o direito norma significa a lei, a regra social obrigatória, enquanto que o direito faculdade trata do direito subjetivo, “facultas agendi” (SIQUEIRA, 2009, p.16;26).

Em relação ao direito norma, a acepção de direito possui significados e realidades diferentes no que tange ao direito positivo e ao direito natural.

Nesse sentido, duas correntes filosóficas se destacam em relação ao direito, sendo elas o jusnaturalismo e o juspositivismo. Em sentido amplo, o jusnaturalismo, ou naturalismo jurídico, considera o direito natural como superior ao direito positivo. Cabe ressaltar que sempre quando ocorrer um conflito entre o direito natural e o direito positivo, prevalecerá o direito natural.

Por outro lado, para o juspositivismo não há que pensar sobre direito natural, pois para esta corrente só existe o direito positivo. Ao reconhecer o direito positivo como único direito, o estudo científico-jurídico fica limitado ao estudo das legislações positivas.

Na Idade Média, o direito natural passou a confundir-se, sob a influência da teologia, com a moral, cuja origem era a Lei Divina. (...) Nessa época, o direito natural passou a ser considerado superior ao positivo, na medida em que não era mais visto como um simples direito comum, mas como norma fundada na vontade divina. Desta visão teológica do direito natural derivou a tendência permanente no pensamento jusnaturalista, de considerar o direito natural superior ao direito positivo, em oposição ao positivismo jurídico, que considera que não existe outro direito senão o positivado. (SIQUEIRA, 2009, p.21)

Historicamente, o jusnaturalismo precede ao juspositivismo, pois sua origem está entrelaçada com a civilização greco-romana, no início do século VIII a.C. Em sentido estrito, o jusnaturalismo restringe-se ao período entre os séculos XVII e XVIII (BOBBIO, 1995). Ainda, nas palavras de Rizzato Nunes:

“...o jusnaturalismo, que tem longa tradição, vindo desde os filósofos gregos, passando pelos escolásticos, na Idade Média, pelos racionalistas dos séculos XVII e XVIII, indo as concepções modernas de Stammler e Del Vecchio (...)Pode-se dizer, em linhas gerais, que essa escola é fundada no pressuposto de que existe uma lei natural, eterna e imutável; uma ordem preexistente, de origem divina ou decorrente da natureza, ou, ainda, da natureza social do ser humano.”

De forma sucinta, “o direito positivo é o conjunto de normas estatais em vigor em determinado país numa determinada época. (...) É o direito posto, imposto, positivado pelo Estado”, (SIQUEIRA, 2009, p. 23). Neste sentido o juspositismo assegura que a norma vigente de um determinado Estado seja efetivamente cumprida. No caso em tela, a doação, em transplante “post mortem” de órgãos, tecidos ou partes do corpo humano, desde que preenchidos os requisitos legais e com fundamento na ética médica, incumbirá ao consentimento do cônjuge ou parentes em linha reta ou colateral até o segundo grau. Observa-se que tal fato também é evidenciado de acordo com o art. 2º da Lei 10211/2001, em que as manifestações de vontade relativas à retirada “post mortem” de órgãos e tecidos constantes na Carteira de Identidade Civil e Carteira Nacional de Habilitação perderam sua validade a partir de dezembro de 2000.

Dessa feita, considerando que para essa corrente o único direito existente é o positivo, em sentido amplo, a manifestação de vontade relativa à doação de órgãos e tecidos pelo “de cujus” não surtirá qualquer efeito, haja vista que os familiares se responsabilizarão por tal ato.

Por outro lado, a corrente jusnaturalista, consubstanciada no direito natural que surge da natureza humana, por intermédio da razão, intuição ou da revelação (SIQUEIRA, 2009, p.23), poderá vincular a manifestação de vontade do doador para fins de transplantes “post mortem” com certa relevância. Primeiramente, pela própria definição de direito natural como conjunto mínimo de preceitos dotados de caráter universal, imutável, que surge da natureza humana, (SIQUEIRA, 2009, p. 22), vez que conjunto mínimo de preceitos não significa necessariamente norma positivada, mas induz que o ser humano seja capaz de dispor de seu corpo para fins de transplante se assim o desejar. Em segundo lugar, os princípios fundamentais devem ser sempre relembrados ao tratar de temas relativos à vida. No caso, o princípio da dignidade da pessoa humana, disposto no art. 1º, inc. III, da Constituição Federal, trazido como fundamento de um Estado Democrático de direito, tem por finalidade precípua garantir que qualquer cidadão tenha seus direitos respeitados pelo Estado, incluindo seus valores pessoais.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Em razão do impacto social de novas tecnologias aplicadas à saúde e inovações introduzidas pelas ciências biomédicas, a norma jurídica positivada se faz presente no cotidiano social. Entretanto, no ordenamento jurídico pátrio, a Lei nº. 9.434/97, conhecida como a Lei dos Transplantes, trouxe diversas polêmicas ao disciplinar sobre o tema.

No caso de doação de órgãos e tecidos “inter vivos”, a decisão do doador é considerada um ato solidário e altruístico. Além disso, o doador não poderá ser obrigado à dispor de partes de seu próprio por força do princípio da dignidade da pessoa humana. Nesse caso, observa-se que a manifestação de vontade do doador é fator determinante para efetivar a doação ou não.

Contudo, observa-se que no caso de doação de órgãos, tecidos e partes do corpo humano “post mortem” para fins de transplantes dependerá da declaração de vontade do cônjuge ou parentes, independente da vontade do falecido. À luz da corrente juspostivista, decorrente do direito positivo que surge do Estado, o fator determinante para efetivação do transplante não incumbirá ao falecido, mas aos que com ele convive ou seus familiares. A lei vigente não impõe ao morto a obrigação de decidir pela doação ou não.

Por outro lado, a corrente jusnaturalista, consubstanciada no direito natural, que é inerente à pessoa humana por meio da intuição ou da razão, primazia pela manifestação de vontade do próprio ser, enquanto em vida, manifestar pelo desejo de dispor ou não de seu corpo após sua morte.

Neste caso, se evidencia que a ciência jurídica deslumbra-se sobre temas que aparentemente, ao senso comum, pode parecer irrelevante. Contudo, o direito, como norma positivada, existe no cotidiano de todos os cidadãos dirimindo seus atos e, ainda, dirimindo sobre questões polêmicas como as suscitadas.


REFERÊNCIAS

BOBBIO, N. O positivismo jurídico. Lições de filosofia do direito. São Paulo: Ícone, 1995.

BRASIL. LEI Nº 9.434, DE 4 DE FEVEREIRO DE 1997. Dispõe sobre a remoção de órgãos, tecidos e partes do corpo humano para fins de transplante e tratamento e dá outras providências. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L9434.htm>. Acesso em 03.ou.2019.

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>. Acesso em: 04 out 19.

Associação Brasileira de Transplante de Órgãos. Registro Brasileiro de transplantes. Jan-Jun/2019. Disponível em <http://www.abto.org.br/abtov03/Upload/file/RBT/2019/rbt2019-1sem-leitura.pdf>. Acesso em: 03.out.2019.

DINIZ, M. H. O estado atual do biodireito. 7ª Ed. São Paulo: Ed. Saraiva, 2010.

KELSEN, H. Teoria Pura do direito. 2003.

NUNES, R. Ciência Jurídica.

Revista Brasileira de Direito. Positivismo Jurídico e os Direitos da Personalidade. V.14, nº 2 (2018). Disponível em <https://seer.imed.edu.br/index.php/revistadedireito/article/view/1812/1841>. Acesso em: 03.out.2019.


Abstract: The purpose of this paper is to discuss about the removal of organs, tissues and parts of the human body for transplantation and treatment, according to the law in force in the country, under the jusnatualist and juspositivist approach. Faced with technological advances, genetics and innovations brought by the biomedical sciences, bioethics and bio-rights issues tend to appear more and more nowadays. In this sense, the present paper is based on bibliographic and documentary research in order to discuss about the transplants under the focus of natural law and positive law.

Keywords: Philosophy of Law. Jusnaturalism. Juspositivism.

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Sobre os autores
Thiago Pires

Acadêmico de Direito na Faculdade de Ciências Aplicadas e Sociais de Petrolina - FACAPE

Fausto Granja Souza

Acadêmico de Direito na Faculdade de Ciências Aplicadas e Sociais de Petrolina - FACAPE

Clesio de Oliveira Morgado

Acadêmico de Direito na Faculdade de Ciências Aplicadas e Sociais de Petrolina - FACAPE Possui graduação em letras português e suas literaturas pela Universidade de Pernambuco (2012). Especialização em Educação Contextualizada UNEB (2014). Atualmente é professor de Literatura e Língua Portuguesa no Colégio Dom Bosco (CDB) e no Instituto Federal do Sertão Pernambucano - IF SERTÃO PE Petrolina Zona Rural, ministra aulas particulares para concursos em geral. Profissional dinâmico e profícuo na área de educação.

Osmun Tadeu Mendes de Almeida

Acadêmico de Direito da Faculdade de Ciências Aplicadas e Sociais de Petrolina - FACAPE

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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Trabalho elaborado como pré-requisito avaliativo da disciplina de Introdução ao Estudo de Direito II.

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