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Usucapião tabular e convalescença registral

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14/01/2006 às 00:00
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CANCELAMENTO ADMINISTRATIVO DO REGISTRO E A USUCAPIÃO TABULAR

            Embora a usucapião não possa ser formalmente declarada na via administrativa, com a eficácia de ato de inerência ao próprio registro – sentença declaratória, com efeito erga omnes –, nada impede e tudo recomenda seja indiretamente aferida, incidenter tantum, no próprio procedimento administrativo. Aos interessados competirá, se caso, com base em outras provas, rediscutir a questão na esfera jurisdicional.

            Questão interessante trazida à lume por Afranio de Carvalho (1998:169), quando da análise dos princípios da presunção e da fé pública, diz respeito à constitucionalidade da Lei 6.739/79, declarada pelo STF, cujo voto vencedor prolatado pelo relator Ministro Moreira Alves, permitindo o cancelamento administrativo do registro, muito acrescenta ao tema. [07]

            Ainda que presente o axioma Roma locuta causa finita, ou seja, o STF se pronunciou, causa finda, certo é que parcela considerável da doutrina considera de discutível constitucionalidade a permissão dada pela Lei 6.739/79: "a requerimento de pessoa jurídica de direito público ao Corregedor-Geral da Justiça, são declarados inexistentes e cancelados a matrícula e o registro de imóvel rural vinculado a título nulo de pleno direito, ou feitos em desacordo com o art. 221 e seguintes da Lei 6.015, de 31 de dezembro de 1973, alterada pela Lei 6.216, de 30 de junho de 1975". Para o cancelamento do registro faz-se necessário o devido processo legal, administrativo ou judicial, desde que revestido de contraditório amplo.


CONCLUSÃO

            Indubitavelmente, a nulidade absoluta não se purifica nem se convalida com as transmissões seguidamente efetuadas a terceiros, se não expurgada do vício original. Todavia, em homenagem à necessidade de fixarem-se marcos que permitam o convívio social, não se pode ignorar ser o direito um reflexo da realidade social.

            Ainda que o ato absolutamente nulo não encontre convalidação em nosso ordenamento, outros princípios paralelos à legalidade, em especial a boa-fé e a aparência, repercutem no sistema de nulidades fixado pelo Código Civil, e por ele mesmo excepcionado, a exemplo do adquirente de boa-fé do proprietário aparente previsto em seus arts. 968 e 1.600. Tais preceitos excepcionalizadores do sistema respondem diretamente à função constitucional e social da propriedade e à própria finalidade social da norma, nos termos do art. 5.º da Lei de Introdução ao Código Civil.

            Com a usucapião tabular protege-se o adquirente de boa-fé sob o pálio do transcurso temporal, preservando-se o trânsito jurídico como presente na máxima romana: Bona fides est primum mobice et spiritus vivificans commercii (A boa-fé é o primeiro móvel e o espírito vivificador do comércio).

            Essa convalidação fática protege o registro constante do fólio real, agora expressamente estatuída no art. 214, § 5º, da LRP, tornando a situação jurídica precedente ineficaz de alterar o novo status proprietatis.

            Desse modo, a teoria da aparência, associada ao tempo, permite ao terceiro de boa-fé, desde que o erro seja escusável, convalidar sua propriedade registrada pelo advento da prescrição aquisitiva.


BIBLIOGRAFIA

            CARVALHO, Afrânio de. Registro de Imóveis. Forense. Rio de Janeiro, 4ª edição, 1998.

            CORRÊA DE MELLO, Henrique Ferraz C. de. O Princípio da Convalescença Registral e a Boa-Fé – IN: Revista de Direito Imobiliário 53, IRIB: São Paulo, julho-dezembro 2002.

            SOARES NETO, Júlio. O Novo Código civil e o registro de imóveis - Usucapião Tabular. Anoreg/BR, acesso http://www.anoregbr.org.br /?action=doutrina &iddoutrina=106 em 06.06.2004.


Notas

            01 Art. 1.817. São válidas as alienações onerosas de bens hereditários a terceiros de boa-fé, e os atos de administração legalmente praticados pelo herdeiro, antes da sentença de exclusão; mas aos herdeiros subsiste, quando prejudicados, o direito de demandar-lhe perdas e danos.

             Parágrafo único. O excluído da sucessão é obrigado a restituir os frutos e rendimentos que dos bens da herança houver percebido, mas tem direito a ser indenizado das despesas com a conservação deles.

            2 Evicção- consiste na perda, parcial ou total, que sofre o adquirente duma coisa em conseqüência da reivindicação judicial promovida pelo verdadeiro dono ou possuidor.

            03 "RE 66.673-PI, j. 27.02.1970, 2.a T., rel. Min. Thompson Flores; RE 58.524, j. 20.08.1965, 2.a T., rel. Min. Victor Nunes Leal; RE 58.131-GB, j. 02.06.1967, rel. Min. Luiz Gallotti. Da mesma forma, o STJ, REsp 208.521-RS, j. 06.12.1999, 4.a T., rel. Min. Ruy Rosado de Aguiar, embora não seja pacífico o entendimento, conforme se extrai do REsp 38.549-SP, j. 08.06.2000, 3.a T., rel. Min. Antonio de Pádua Ribeiro. Ainda pela prescritibilidade do ato nulo, verificam-se os seguintes julgados: ApCiv 53.966-4, Campinas, 5.a Câmara de Direito Privado, TJSP, rel. Des. Marcus Andrade, 25.02.1999 e ApCiv 261.621-2, Sorocaba, 11.a Câm. Civil, TJSP, rel. Des. Gildo dos Santos, 03.08.1995. Interessante julgado do STJ no REsp 115.966, rel. Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira, j. 17.02.2000, conclui que o ato inexistente é imprescritível. A hipótese era de alienação de imóvel pertencente a sociedade em instrumento firmado por apenas um dos sócios."

            04 Art. 1.268. Feita por quem não seja proprietário, a tradição não aliena a propriedade, exceto se a coisa, oferecida ao público, em leilão ou estabelecimento comercial, for transferida em circunstâncias tais que, ao adquirente de boa-fé, como a qualquer pessoa, o alienante se afigurar dono.

            § 1o Se o adquirente estiver de boa-fé e o alienante adquirir depois a propriedade, considera-se realizada a transferência desde o momento em que ocorreu a tradição.

            § 2o Não transfere a propriedade a tradição, quando tiver por título um negócio jurídico nulo.

            Art. 1.827. O herdeiro pode demandar os bens da herança, mesmo em poder de terceiros, sem prejuízo da responsabilidade do possuidor originário pelo valor dos bens alienados.

            Parágrafo único. São eficazes as alienações feitas, a título oneroso, pelo herdeiro aparente a terceiro de boa-fé.

            05 Arestos : na captação de recursos no mercado financeiro – REsp 276.025-SP, rel. Min. Ruy Rosado de Aguiar, 4.a T., DJ 12.03.2001; na venda de mercadorias por gerente ou pessoa equiparada – REsp 12.811-MS, rel. Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira, 4.a T., DJ 30.08.1993; no pagamento de aluguéis ao alienante do imóvel locado – REsp 12.592-SP, rel. Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira, 4.a T., DJ 26.04.1993.

            06 CIVIL E PROCESSUAL. EMPREENDIMENTO IMOBILIÁRIO. HIPOTECA INCIDENTE SOBRE A TOTALIDADE DO IMÓVEL. VENDA ANTERIOR DE UNIDADES AUTÔNOMAS. CONSTRUTORA QUE NÃO HONROU SEUS COMPROMISSOS PERANTE O BANCO FINANCIADOR. EXCLUSÃO DO GRAVAME REAL.

            I. O adquirente de unidade autônoma somente é responsável pelo pagamento integral da dívida relativa ao imóvel que adquiriu, não podendo sofrer constrição patrimonial em razão do inadimplemento da empresa construtora perante o banco financiador do empreendimento, posto que, em face da celebração da promessa de compra e venda, aqui, inclusive, em data anterior à constituição da hipoteca, a garantia passa a incidir apenas sobre os direitos decorrentes do contrato individualizado, nos termos do art. 22 da Lei n. 4.864/65, não podendo subsistir se o débito já foi quitado pelo comprador junto à vendedora.

            II. Precedentes do STJ.

            III. Recurso especial não conhecido.

            Acórdão

            Vistos e relatados estes autos, em que são partes as acima indicadas, decide a Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça, à unanimidade, não conhecer do recurso, na forma do relatório e notas taquigráficas constantes dos autos, que ficam fazendo parte integrante do presente julgado. Participaram do julgamento os Srs.Ministros Sálvio de Figueiredo Teixeira, Cesar Asfor Rocha e Fernando Gonçalves. Ausente, ocasionalmente, o Sr. Ministro Barros Monteiro.

            (RESP 433688 / DF ; RECURSO ESPECIAL 2002/0052153-4 Relator(a) Ministro ALDIR PASSARINHO JUNIOR Orgão Julgador - QUARTA TURMA Data do Julgamento 23/09/2003 DJ 28.10.2003 p.00289.)

            DIREITO CIVIL. HIPOTECA CONSTITUÍDA SOBRE IMÓVEL JÁ PROMETIDO À VENDA E QUITADO. INVALIDADE. ENCOL. NEGLIGÊNCIA DA INSTITUIÇÃO FINANCEIRA. INOBSERVÂNCIA DA SITUAÇÃO DO EMPREENDIMENTO. PRECEDENTE. RECURSO DESACOLHIDO.

            I - Os arts. 677 e 755 do Código Civil aplicam-se à hipoteca constituída validamente e não à que padece de um vício de existência que a macula de nulidade desde o nascedouro, precisamente a celebração anterior de um compromisso de compra e venda e o pagamento integral do preço do imóvel.

            II - É negligente a instituição financeira que não observa a situação do empreendimento ao conceder financiamento hipotecário para edificar um prédio de apartamentos, principalmente se a hipoteca se deu dois meses antes da concessão do habite-se, quando já era razoável supor que o prédio estivesse concluído, não sendo igualmente razoável que a obra se tenha edificado nesse reduzido período de tempo.

            III - É da jurisprudência desta Corte que, "ao celebrar o contrato de financiamento, facilmente poderia o banco inteirar-se das condições dos imóveis, necessariamente destinados à venda, já oferecidos ao público e, no caso, com preço total ou parcialmente pago pelos terceiros adquirentes de boa fé".

            Acórdão Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros da Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça, na conformidade dos votos e das notas taquigráficas a seguir, por unanimidade, não conhecer do recurso. Votaram com o Relator os Ministros Barros Monteiro, Cesar Asfor Rocha, Ruy Rosado de Aguiar e Aldir Passarinho Júnior.

            RESP 329968 / DF ; RECURSO ESPECIAL 2001/0077393-0 Relator Ministro SÁLVIO DE FIGUEIREDO TEIXEIRA ; Órgão Julgador - QUARTA TURMA ; Data do Julgamento

            09/10/2001 ; Data da Publicação DJ 04.02.2002 p.00394 RJADCOAS VOL.:00036 p.00081 RSTJ VOL.:00156 p.00382 RT VOL.:00802 p.00188."

            07 O Min. Moreira Alves (relator): 1. Em nosso sistema jurídico, ao contrário do que ocorre no Direito alemão, o registro do título de aquisição de imóvel é causal e gera, apenas, a presunção juris tantum de propriedade. O que importa dizer que, inválido o título, inválido será o registro, desfeita, assim, a aparência de transferência da propriedade.

            Por isso mesmo é que, para não haver dúvida de que a propriedade é de quem tem o imóvel registrado em seu nome, é mister verificar-se se a cadeia sucessória de que dá notícia o Registro Imobiliário perfaz período de tempo capaz de propiciar a propriedade por usucapião.

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            A modificação que a Lei 6.739, de 5.12.79, introduziu em nosso sistema imobiliário foi a de permitir, como exceção ao princípio estabelecido no art. 250, I, da Lei de Registros Públicos em vigor (que exige decisão judicial transitada em julgado), a possibilidade de autoridade judiciária - o Corregedor Geral da Justiça - no desempenho de função de natureza administrativa, declarar inexistente e cancelar a matrícula e o registro de imóvel rural vinculados a título nulo de pleno direito, ou feitos em desacordo com os arts. 221 e ss. da Lei 6.015, de 31.12.73, alterada pela Lei 6.216, de 30.6.75.

            O que, aliás, não é nada de extraordinário, certo como é que as Súmulas 346 e 473, parte inicial, reconhecem que: "A Administração Pública pode declarar a nulidade dos seus próprios atos" e: "A Administração pode anular seus próprios atos, quando eivados de vícios que os tornem ilegais, porque deles não se originam direitos".

            2. A circunstância de o cancelamento na forma prevista na Lei 6.739/79 só ser possível se requerido por pessoa jurídica de Direito Público não fere, evidentemente, o princípio constitucional da isonomia, sob a alegação de que essa faculdade não é estendida às demais pessoas jurídicas e às pessoas físicas.

            Quando se trata desigualmente os desiguais, na medida de sua desigualdade, não se viola, evidentemente, o princípio da isonomia.

            E é o que no caso ocorre. A restrição atende ao interesse público, uma vez que a extensão dessa faculdade a toda e qualquer pessoa poderia gerar insegurança e incerteza no sistema do Registro Imobiliário. Ademais, o circunscrever-se tal faculdade apenas às pessoas jurídicas de Direito Público não só é mais um dos meios legítimos de preservação dos bens públicos - nunca ninguém sustentou que a impossibilidade de usucapir bens públicos, inclusive dominicais, ofende o princípio constitucional da isonomia - mas, também, de certa forma, protege o interesse de terceiros privados, facilitando o cancelamento de registros nulos e desfazendo, portanto, aparências de propriedade legítima, aparências, essas, que, por serem os bens públicos insuscetíveis de usucapião, não podem vir a transformar-se em realidades.

            Note-se, ademais, que à parte que teve o registro cancelado não se retira o direito de socorrer-se do Poder Judiciário, por meio de ação anulatória, como se vê do art. 3.º da lei em causa.

            3. Igualmente, a declaração de nulidade, resultante, inclusive, de vício de ilegalidade, não fere, obviamente, direito adquirido, uma vez que de atos com tal eiva não se originam direitos.

            Ademais, a Lei 6.739 não criou causas novas de nulidade, mas apenas modificou, parcialmente, o procedimento para a obtenção do cancelamento ou da retificação da matrícula e do registro de imóvel rural, e não há direito adquirido a procedimento.

            4. Não tem sentido, por outro lado, a alegação de que essa lei violaria o princípio a que alude o § 15 do art. 153 da CF.

            Esse princípio, como já o tem declarado esta Corte inumeráveis vezes, só se aplica a processos de natureza penal, em que há acusado, e não há processo ou procedimento de natureza civil, como o presente.

            5. Também não fere a lei em causa o direito de propriedade, e, portanto, o § 22 do art. 153 da CF.

            Sendo o registro, em nosso sistema jurídico, causal, e, por isso mesmo, só gerando presunção juris tantum de propriedade, esta só existe se for válido o título levado a registro. E quando se declara a nulidade do registro não se desconstitui o direito de propriedade, mas apenas se declara que ele não chegou a surgir.

            E o § 22 do art. 153 da CF só protege direito de propriedade existente.

            6. Por fim, igualmente sem razão a alegação de que essa lei infringe o § 36 do art. 153 da CF, uma vez que o permitir-se declaração de nulidade por autoridade de natureza administrativa não viola qualquer garantia decorrente do regime e dos princípios que a Constituição adota. Não fosse assim e as Súmulas 346 e 473, parte inicial, seriam inconstitucionais.

            7. Em face do exposto e acolhendo o parecer da Procuradoria-Geral da República, julgo improcedente a representação. (RDI 14)

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Sobre o autor
Eber Zoehler Santa Helena

consultor de orçamento e fiscalização financeira da Câmara dos Deputados

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

HELENA, Eber Zoehler Santa. Usucapião tabular e convalescença registral. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 925, 14 jan. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/7820. Acesso em: 7 mai. 2024.

Mais informações

Artigo publicado nos Cadernos Aslegis nº 24 (setembro/dezembro de 2004), da Associação dos Consultores Legislativos e de Orçamento e Fiscalização Financeira da Câmara dos Deputados.

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