RESUMO: Após o fracasso global consubstanciado na eclosão de duas grandes guerras, aliado ao crescimento exponencial da criminalidade transnacional, os Estados perceberam que havia a necessidade de uma atuação conjunta tanto para manutenção da paz, como para atuação e repressão de ilícitos que atingiam relevantes interesses e direitos. Nesse cenário surgem e evoluem os diversos mecanismos de cooperação internacional.
Palavras-chave: Direito Internacional. Contexto Social. Surgimento. Canais de cooperação.
1 INTRODUÇÃO
Mormente após o término das grandes guerras mundiais, os Estados passaram a se compreender como verdadeiros garantidores de direitos mínimos do ser humano, o que implica a defesa e proteção não apenas dos seus nacionais.
É nessa senda que a proteção de direitos indisponíveis exige por parte dos Estados postura mais proativa e colaborativa no cenário global, impondo o surgimento de mecanismo que auxiliem, na prevenção de ilícitos e, consequentemente, na efetiva proteção de direitos.
Desta feita, o que se propõem é uma análise contextualizada do papel instrumental da cooperação jurídica internacional diante do dever estatal de proteção de direitos indisponíveis cuja tutela transcenda o território do Estado, tendo, por sua vez, como principais paradigmas os direitos humanos, a sindicabilidade internacional dos atos cujos efeitos ultrapassem os limites geográficos dos Estados e a nova perspectiva do conceito de soberania.
O objetivo geral do presente trabalho é construir uma perspectiva diferenciada da colaboração jurídica internacional, tomando como unidade de análise os tratados internacionais e buscando construir as respostas para as indagações que surgirem ao longo desta caminhada, através de uma interpretação sistemática – com destaque para a influência principiológica -, de modo a ressaltar quais são suas reais finalidades, destacando, ainda, como objetivos específicos:
a) evidenciar alguns antecedentes históricos que propiciaram o surgimento da colaboração jurídica internacional, dando destaque às funções que acabaram por florescer em virtude da interpretação que agora é oferecida;
b) em que pese a dificuldade de estabelecer relações comparativas entre os diversos veículos de cooperação internacional em virtude das peculiaridades que os revestem, busca-se, outrossim, realizar um paralelo entre cada uma dessas instituições;
c) realizar uma avaliação de alguns aspectos específicos que envolvem a cooperação jurídica internacional.
2 COOPERAÇÃO JURÍDICA INTERNACIONAL: CONSIDERAÇÕES INICIAIS
A cooperação jurídica internacional vem crescendo nos últimos anos, tendo sido impulsionada pelo fortalecimento das relações interestatais, pelo amadurecimento de uma sociedade que se entende global e pelo crescimento do número de tratados internacionais buscando a concretização da Justiça em suas diversas acepções.
Mesmo que a cooperação jurídica internacional seja uma realidade no cotidiano dos Estados, seus veículos ainda representam um leque novo de oportunidades que exigem dos operadores do direito uma análise de seus antecedentes históricos, objetivando uma melhor compreensão do seu papel no contexto global.
2.1 HISTÓRICO, FUNDAMENTOS E EVOLUÇÃO
Após os horrores vivenciados com a 2ª Grande Guerra, a humanidade percebeu que a necessidade de colaboração entre os países, visando a manutenção da paz mundial, era providência que se impunha e, assim, passou a desenvolver efetivamente mecanismos que facilitassem esse intercâmbio.
Dentre esses mecanismos, surge a cooperação jurídica internacional, que busca não apenas auxiliar determinado país no atendimento das suas questões de direito interno cujos efeitos eventualmente ultrapassem suas fronteiras, mas principalmente gerar soluções amistosas para as situações que tenham como seu ambiente originário a própria comunidade global.
Araújo Júnior (1994, p. 61) ensina que o marco mais remoto do exercício de cooperação internacional, também considerado o tratado mais antigo da humanidade, teria ocorrido por volta de 1280 a.C, firmado entre Ramsés II, faraó do Egito, e Hattusilii III, rei dos Hititas, no qual cada um dos países se comprometia a extraditar para o país de origem seus respectivos fugitivos.
Fato é que, até o término dos horrores vivenciados pelas grandes guerras, ao longo da história, as nações mais poderosas não costumavam manifestar qualquer interesse em firmar relações com os demais países, uma vez que era suficiente a utilização da força quando lhe conviesse.
Portanto, foi a necessidade de desenvolver soluções pacíficas para as controvérsias, nascida após as catástrofes decorrentes dos grandes conflitos bélicos, que impôs à sociedade global a criação de regras para as relações internacionais, nos mais distintos setores.
Apesar das tratativas antecedentes, com o início da Primeira Grande Guerra, suspenderam-se as iniciativas atinentes à elaboração de estratégias integradas em relação aos problemas de amplitude internacional, negociações que somente foram retomadas com o restabelecimento da paz e o reconhecimento da existência de uma nova ordem mundial.
Neste ponto, Toffoli (2008, p. 04) realiza breve digressão acerca da justiça internacional idealizada pela sociedade do pós-guerra, informando que foi a partir da tomada de consciência de que o simples transpor de fronteiras não poderia mais fazer com que o indivíduo se tornasse inacessível ao jus imperii estatal, que passaram a ser desenvolvidos novos mecanismos de interlocução entre os Estados no plano externo, com vistas a dar aplicação aos princípios da justiça universal e da efetividade da justiça.
Portanto, os tratados concebidos para servir de base jurídica para a prestação de cooperação interjurisdicional, impactaram decisivamente na “construção da convicção hoje vigente na comunidade internacional de que cooperar não significa prestar um favor, mas sim cumprir com uma obrigação jurídica” (TOFFOLI, 2008, p. 04).
Em virtude da intensificação das relações entre os países e da, cada vez maior, necessidade de cooperação, os diversos mecanismos vêm sendo, de modo mais frequente, objeto de tratados e convenções internacionais, obtendo em muitos casos regramento nas legislações internas de cada país.
Nesse contexto, a cooperação internacional acaba por proporcionar o estreitamento das relações entre os Estados, inclusive intensificando o intercâmbio de soluções para problemas estatais.
Em nome dessa nova realidade, foi necessária a realização de uma releitura acerca do próprio conceito de soberania estatal, que se afastou da concepção absolutista de Bodin, para fazer surgir a atual compreensão de que cada Estado, apesar de autônomo e independente no regramento das relações que ocorrem em seu território, sujeita-se a princípios superiores no ambiente global.
Assim, é correta a premissa de que a cooperação jurídica pressupõe um trabalho conjunto, de colaboração, de modo que toda e qualquer forma de colaboração entre Estados, visando a concretização de um objetivo comum e que promova impactos jurídicos, denomina-se cooperação jurídica internacional.
As formas de cooperação são as mais diversas e têm evoluído com celeridade ao longo dos anos. Com efeito, não existe um parâmetro mundial rígido de tipicidade, não há taxatividade no procedimento de colaboração, de modo que a forma como é prestado o auxílio deve ser sensível ao “mérito” do pedido de assistência, o instrumento deve ser adequado ao fim pretendido.
Fato é que, apesar da ausência de classificações fixas, alguns elementos possibilitam a classificação das formas de cooperação, o que é realizado para fins meramente didáticos.
A cooperação jurídica internacional pode ser classificada v.g. em ativa e passiva, de acordo com a posição de cada Estado cooperante, sendo ativa na perspectiva do Estado requerente e passiva, na perspectiva do Estado requerido.
Também pode ser classificada em direta quando o Juiz/Tribunal que dará cumprimento à solicitação pode exercer pleno juízo de conhecimento, como é o caso do auxílio direto; ou pode ser classificada como indireta, quando em sua efetivação, o Juiz/Tribunal requerido exerce mero juízo de delibação na cooperação jurídica, como é o caso da homologação de sentença estrangeira ou carta rogatória no Brasil.
Ainda, de acordo com a matéria tratada pelo processo no Estado requerente, pode versar sobre matéria penal ou matéria civil.
Alguns doutrinadores a classificam ainda em cooperação jurídica ou jurisdicional, quando ato a ser praticado pelo Estado cooperante tenha natureza administrativa ou jurisdicional, respectivamente.
2.2 O PAPEL DA COOPERAÇÃO JURÍDICA INTERNACIONAL
O mundo globalizado, no qual há estreitas e frequentes relações entre as nações e seus povos nos mais diversos âmbitos (comercial, migratório, informacional…), exige uma atuação cada vez mais proativa e colaborativa dos Estados.
Isso porque, as relações jurídicas deixam de se processar unicamente dentro do Estado soberano, impondo o oferecimento e o pedido de cooperação para que cada Estado e a sociedade internacional satisfaçam suas pretensões de justiça e a proteção de bens jurídicos de relevante valor.
Na atualidade, o conceito básico de Estado soberano tende a abarcar uma perspectiva internacional, porque a própria soberania das regras internas se mostra ameaçada caso se adote posição absolutista. A própria necessidade de preservação impõe a realização de cooperação.
Assim, é diante dessa necessidade de se desenvolver mecanismos que possam atingir bens e pessoas que podem não mais estar em seu território, é que a cooperação jurídica revela seu papel de mecanismo de efetivação dos direitos.
A cooperação jurídica pressupõe um trabalho conjunto, de colaboração, sendo racional afirmar que toda e qualquer forma de colaboração entre Estados, visando a concretização de um objetivo comum e que promova impactos jurídicos, denomina-se cooperação jurídica internacional.
Assim, as fronteiras geográficas, cada vez menos relevantes e mais simbólicas, não representam obstáculos à livre circulação, não devendo representar, igualmente, qualquer impedimento à persecução e solução dos problemas advindos desse intercâmbio de pessoas, bens, serviços e informações.
Essa visão global garante o acesso à justiça e à efetividade da proteção dos direitos internacionalmente tutelados, a qual não pode ser dissociada do aperfeiçoamento dos sistemas processuais não só no plano nacional, mas também e internacional. Nesse sentido, preceitua Flávia Piovesan que:
(…) aprofundar o diálogo entre a ordem local e a regional, potencializando o impacto entre elas, a fim de assegurar a maior efetividade possível aos direitos humanos. Além de avançar no diálogo vertical de jurisdições, fundamental é avançar no diálogo horizontal de jurisdições, no intuito de que os sistemas (…) possam mutuamente enriquecer-se, com empréstimos constitucionais e com o intercâmbio de experiências, argumentos, conceitos e princípios emancipatórios (2011, p. 480).
Portanto, integração entre os países e a existência de cooperação deve ser encarada como um verdadeiro imperativo na efetivação dos direitos e sua tutela [dos direitos] na atual sociedade multicultural demanda que os primados de Justiça transcendam as fronteiras dos Estados, requisitando instrumentos transnacionais adequados ao enfretamento dos riscos que o cerquem.
2.3 A COOPERAÇÃO JURÍDICA INTERNACIONAL E O SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Acompanhando momento de integração mundial, a República Federativa do Brasil se mostrou aberta aos mecanismos de cooperação internacional, postura que inclusive é incentivada pelo atual ordenamento constitucional.
Isso porque, em seu teor, a Constituição preceitua que o Brasil se rege nas suas relações internacionais (art. 4º) por princípios que por si já encaminham à busca de cooperação entre as nações: quais sejam (II) a prevalência dos direitos humanos, que afasta a percepção absolutista de soberania, (V) a igualdade entre os Estados com (VII) a busca de solução pacífica para os conflitos e, de maneira clara determinou (IX) a cooperação entre os povos para o progresso da humanidade (2015, p. 10).
Com efeito, o Brasil é signatário de diversos Tratados e Convenções Internacionais multilaterais e inúmeros diplomas bilaterais que visam facilitar o exercício dessa cooperação, cabendo prioritariamente ao seu Judiciário prover e receber os atos de Cooperação Jurídica Internacional, interpretando adequadamente e orientando a aplicação dos tratados.
Contudo, a colaboração jurisdicional oferecida pelo Brasil no cenário internacional nem sempre foi efetivada sem burocracias. O formalismo excessivo fez com que o país perdesse importantes oportunidades de contribuir com o deslinde de relevantes questões.
O Ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ) Gilson Dipp relata que:
Há menos de oito anos, o Judiciário brasileiro tinha uma interpretação no sentido de que as cartas rogatórias não podiam ser utilizadas para quebrar sigilos legais, tais como dados bancários, a menos que houvesse previsão em tratado ou decisão final judicial.
Em uma carta rogatória, recebida em 2003, a autoridade judiciária na Suíça pediu cooperação à autoridade judiciária brasileira para investigar tráfico de mulheres brasileiras para a Suíça. Já sabíamos que o tráfico de seres humanos, principalmente de mulheres, abduzidas e escravizadas no seio do mundo que se considera civilizado, é dos mais abomináveis, execráveis e odiosos crimes que tomam proveito da incapacidade da efetiva Cooperação Jurídica Internacional entre os Estados. Pretendiam os suíços obter informações de contas bancárias localizadas no Brasil e o sequestro de bens dos acusados - medidas essenciais para o desmantelamento daquela organização criminosa.
Não obstante a severidade do caso, indeferimos o fornecimento das pretendidas informações bancárias, sob o fundamento de que “as diligências de sequestro de bens e quebra de sigilo de dados, além de atentar contra a ordem pública, possuem caráter executório, o que inviabiliza a concessão do exequatur”. Assim, por uma inexplicável lógica interpretativa, somente atribuível a um territorialismo exacerbado, considerávamos que a prestação de informações bancárias essenciais à investigação, em outro país, de crimes como o tráfico de seres humanos atenta contra a ordem pública. (apud BRASIL, 2012, p. 28)
Contudo esse panorama vem mudando. A visão de que a colaboração internacional é essencial vem alterando a antiga postura burocrática e isolacionista que se esvaziava no próprio formalismo.
Como será visto mais adiante, houve uma evolução contínua, de modo que os avanços que o STF já vinha implementando para tornar os mecanismos de cooperação mais céleres foram mantidos pelo STJ. Isso porque, adverte-se, com o advento da EC nº 45, em 31/l2/2004, a competência originária para processar e julgar a homologação das sentenças estrangeiras e a concessão de exequatur às cartas rogatórias foi transferida do STF para o STJ.
Visando dar concretude à EC n° 45/04, foi elaborada a Resolução n. 09/2005, que dispôs sobre os procedimentos das Cartas Rogatórias e da Homologação de Sentença Estrangeira e agregou inúmeras inovações até então implementadas pelo Supremo Tribunal Federal.
Referida resolução foi considerada como um avanço, tendo mantido diversos mecanismos utilizados pelo STF e ainda retirado inspiração do anteprojeto de Lei Geral sobre Cooperação Internacional (que até a presente data não saiu do papel), tais como o auxílio direto e a autorização de medida executória sem prévia oitiva da parte contrária (DIPP apud BRASIL, 2012, p. 29).
Referida Resolução foi utilizada até dezembro de 2014, quando então os procedimentos de cooperação passaram a ser disciplinados pelo Regimento Interno do STJ (acrescidos no regimento pela Emenda Regimental – ER - nº 18).
Em linhas gerais, após a transferência da regulamentação pela mencionada ER, houve pouca alteração no procedimento da homologação de sentenças estrangeiras, que permanece tramitando de modo similar ao previsto na antiga resolução.
Tanto a resolução como o regimento fixaram que o requerente deve apresentar petição inicial, indicando a existência de sentença proferida por autoridade estrangeira competente, demonstrando que houve regular citação e trânsito em julgado, apresentando “original ou cópia autenticada da decisão homologanda e de outros documentos indispensáveis, devidamente traduzidos por tradutor oficial ou juramentado no Brasil e chancelados pela autoridade consular brasileira competente, quando for o caso” (art. 216-C, Regimento Interno do STJ).
Por outro lado, constata-se que pela atual redação do regimento interno, atualmente pode haver casos em que a tradução e a chancela consular serão ser dispensadas.
Outra alteração trazida pelo Regimento Interno é a expressa menção de que o presidente da Corte Cidadã se encontra autorizado a conceder dilação de prazo para que, na hipótese de a exordial apresentar defeitos ou irregularidades que dificultem o julgamento, que a parte requerente a emende ou complete. No caso de inércia, o processo será arquivado (art. 216-E e seu parágrafo único).
Outrossim, houve ampliação do rol (exemplificativo) das hipóteses em que o pedido de homologação está autorizado a ser indeferido e atualmente, além das sentenças que ofenderem a soberania nacional ou a ordem pública, também foi incluída a possibilidade de não se homologar sentença que ofenda a dignidade da pessoa humana, hipótese que, apesar do louvável preciosismo, entende-se que sempre se encontrou contemplada em função da ordem jurídica constitucional.
O regimento também passou a prever a possibilidade de decisão monocrática do ministro relator na hipótese de existir jurisprudência consolidada da Corte Especial a respeito do tema, não havendo a distribuição para julgamento pela Corte Especial (art. 216-K, parágrafo único).
Fato é que a ER nº 18 entrou em vigor no momento em que se aguardava a sanção presidencial ao Novo Código de Processo Civil (NCPC), o qual inclusive já foi promulgado prevendo que o procedimento de homologação de sentenças estrangeiras observará ao que dispuser o Regimento Interno do STJ (art. 960, §2º, NCPC).