Ódio divino: a intolerância religiosa disfarçada de cristianismo

Exibindo página 1 de 2
22/12/2019 às 14:54
Leia nesta página:

A intolerância religiosa tem uma cicatriz histórica no mundo, e vem sendo demonstrada em grandes proporções na sociedade brasileira. Portanto, o presente artigo visa apresentar a importância de medidas que venham a coibir tal prática preconceituosa.

INTRODUÇÃO

O inciso VI do artigo 5º da Constituição Federal prevê a liberdade religiosa, assegurando a inviolabilidade do exercício de crença e de cultos religiosos, bem como a proteção aos locais de culto e as suas liturgias, sendo dever do Estado – o qual é laico – de não favorecer, financiar ou atrapalhar o exercício de qualquer religião. Portanto, todos os indivíduos que se encontrarem em território brasileiro são livres para praticar a religião que bem entenderem, seja em ambiente doméstico ou público.

Trata-se de um direito fundamental, e desta forma, o governo é proibido em mostrar sua não laicidade, bem como desprezar ou rivalizar religiões dentro do território nacional, vindo a penalizar atos que visem desrespeitar qualquer crença ou o não seguimento destas, já que não se é obrigatório ter uma religião no Brasil devido à já comentada laicidade do Estado.

Porém, mesmo que isso seja garantido pela Constituição, não impede ataques de religiões de vertente cristãs contra àquelas que não versem sobre o assunto, sendo que o Brasil possui um catolicismo enraizado e sucessório, que veio a ser separado do Estado apenas quando o Brasil se tornou uma República, já que antes disso a Igreja possuía forte influência no país, mas que infelizmente continua a apontar dedos e queimar pessoas – não literalmente, mas socialmente.

Sendo assim, o presente artigo visa demonstrar a atual situação do Brasil perante outras religiões que não o cristianismo, tendo em vista a sua raiz cristã, bem como a contradição pelo qual essa vertente diz pôr em prática em contrapartida com os atos de seus fiéis, estudando o período da caça às bruxas, a catequização dos indígenas e a essência do cristão moderno em suas atitudes e a falta de uma resposta do Estado perante esse tipo de crime através do método teórico pela consulta em obras e artigos sobre o tema.


1. CICATRIZES HISTÓRICAS

A intolerância religiosa não é assunto novo no mundo, por isso devido ao seu vasto histórico, serão abordados apenas dois períodos. Tal prática centenária existe desde o fim da Idade Média, através de perseguições de cunho religioso – sendo o medo dos poderes do Diabo uma das principais causas da caça às bruxas, mesmo sendo esse personagem atribuído ao cristianismo, e não à bruxaria.

De todas essas acusações de bruxaria, as mais significativas são as de orgias sexuais, sacrifício de seres humanos, especialmente crianças, e canibalismo. Todas essas acusações são antigas. Os sírios fizeram-nas contra os judeus, os romanos contra os cristãos e os cristãos contra os gnósticos. (RUSSEL; ALEXANDER, 2019, Pág. 78)

Os contos da época em nada ajudavam, sendo que reforçavam a ideia demoníaca das bruxas. Com a teologia, autores cristãos dominaram a Europa – inicialmente no século XII – onde criaram razões e uma ideologia na qual os caçadores de bruxas poderiam se apoiar – como por exemplo o pacto com o Diabo, orgias e canibalismo – para perseguir mulheres – já que, de acordo com eles, a prática da bruxaria era uma tradição predominantemente feminina – e condena-las à morte na fogueira, a qual já havia sido determinada aos hereges a partir do século XI. (RUSSEL; ALEXANDER, 2019)

Do século XII para frente, a heresia foi sendo mais duramente punida tanto pelo direito civil quanto pelo canônico. Com o renascimento do direito romano, que impunha que homens e mulheres tinham que ser subordinados ao Estado, os códigos de Teodósio e Justiniano tinham imposto a heresia como um crime de lesa-majestade contra Deus, merecedor de castigo de morte, encorajando a caça às bruxas, que ficou mais forte a partir daí. (RUSSEL; ALEXANDER, 2019)

O direito canônico ficou mais rigoroso, em parte por estar sob a influência do direito romano, em parte pela influência do método escolástico no âmbito das leis, que exigia cuidadosa organização e eficiência. Ensinara Santo Agostinho que o erro não tem direitos. São Tomás de Aquino insistia nos direitos da consciência individual, mas logo argumentaria também que a heresia era um pecado, visto que tal ignorância deve ser o resultado de negligencia criminosa. Todos os pactos com demônios, explícitos ou implícitos, equivaliam à apostasia da fé cristã, argumentou São Tomás, e essa doutrina de pacto “implícito” tornou-se uma das favoritas dos caçadores de bruxas. No pacto explícito, o indivíduo literalmente invocava o Diabo ou um demônio e celebrava um acordo com ele. No pacto implícito, tal acordo não era necessário. Qualquer um que professasse tenazmente a heresia estava, em princípio, submetido ao Diabo, independentemente se o tivesse convocado, se pretendesse fazê-lo ou até mesmo se pensasse ser isso possível. À sombra dessa doutrina, todos os heréticos eram considerados implicitamente conluiados com Satã, se não em termos de preceitos, pelo menos nas intenções. (RUSSEL; ALEXANDER, 2019, Pág. 89/90).

Entre os anos 1227 e 1235, houve a Inquisição papal – porque os papas começaram a exigir medidas mais severas contra a heresia –, e assim, assimilavam a feitiçaria com a heresia, usando os inquisidores essa brecha para justificar condenações em massa, manipulando totalmente a situação e estigmatizando a imagem das bruxas perante a sociedade, inaugurando a caça às bruxas na história – que duraria mais de duzentos anos. (RUSSEL; ALEXANDER, 2019)

A psicologia ajuda a explicar a perseguição. As pessoas projetam desejos e paixões perversos mais facilmente sobre indivíduos isolados e solitários, como viúvas idosas e velhotas enrugadas. Algumas das acusadas, impelidas pelo medo e pela culpa, acabam acreditando em sua própria culpabilidade. As freiras dementes de Louviers e Loudun acreditavam ter praticado amor com o Diabo. A caça às bruxas é um importante capítulo na história da maldade humana, comparável aos crimes do nazismo e do stalinismo no século XX. (RUSSEL; ALEXANDER, 2019, Pág. 94/95).

As sanções contra a bruxaria vinham piorando com o passar do tempo. A partir do século XV, distribuía-se folhetos que tratavam a bruxaria como algo diabólico, reforçando a ideia de que a prática tratava-se de uma conspiração contra a Igreja articulada por Lúcifer. (RUSSEL; ALEXANDER, 2019)

Os julgamentos passaram a ser padronizados, onde era apresentada uma lista de perguntas para o acusado que era torturado até confessar – mesmo que não tenha feito nada –, reforçando o estereotipo de bruxa criado na Inquisição e fazendo crescer o número de julgamentos, tendo em vista a sua probatória insignificante, – não sendo permitido a apresentação de defesa na grande maioria dos casos, como se tal apresentação fosse adiantar em alguma coisa – se acusado, era condenado. (RUSSEL; ALEXANDER, 2019)

Há quanto tempo você é bruxa? Por que se tornou bruxa? Como foi que se fez bruxa e o que aconteceu nessa ocasião? [Que demônio você escolheu para ser seu amante?] Qual era o nome dele? Qual era o nome do seu mestre entre os demônios? Que juramento você foi forçada a prestar-lhe? Como fez esse juramento e quais foram as suas condições?... Onde consumou a união com seu íncubo? Que demônios e que outros humanos participaram [no sabá]?... como foi organizado o banquete do sabá? Que marca do diabo seu íncubo deixou no seu corpo? Que danos você causou a tal e tal pessoa, e como foi que os infligiu?... Quem são as crianças que você enfeitiçou?... Quem são os seus cúmplices na prática do mal?... Qual é o unguento com que você esfrega o cabo de sua vassoura e como é preparado? Como faz para poder voar pelos ares? (ROBINS, 1959, Pág. 312-317 apud RUSSEL; ALEXANDER, 2019, Pág. 104).

A Reforma Protestante ocorrida no século XVI não abandonou a perseguição às bruxas, agindo com intolerância abrupta – sendo superados apenas pelos católicos no século seguinte –, que continuou a ser alimentada pela imprensa que sempre associavam-nas ao mal e à todos os estigmas criados pela sociedade cristã. Tal rixa entre católicos e protestantes contribuiu para as perseguições serem cada vez mais frequentes – onde pessoas simples eram mais acusadas do que as com status superior.

(...) O processo é simples. Morre um determinado número de crianças. A parteira é uma viúva solitária e impopular. A culpa pelas mortes recai sobre ela e toma contornos sobrenaturais. Portanto, ela deve ser uma bruxa. Mas é mais do que sabido que as bruxas voam à noite, fazem pactos com o Diabo e praticam outras espécies de demonolatria. Perguntas a respeito de tudo isso lhe são feitas sob tortura e, em sua agonia e terror, ela confessa. A confissão reforça a imagem aceita da bruxa. Infortúnios são interpretados como ações maléficas, as ações maléficas são vistas como feitiçaria, a feitiçaria é percebida como bruxaria, e mais um ser humano é torturado e morto. (RUSSEL; ALEXANDER, 2019, Pág. 108).

Mostra-se que a condenação à bruxaria era um delírio coletivo que incentivava comportamentos para construir uma verdade cínica, desempenhando um papel social de se responsabilizar alguém por desventuras cotidianas, indo desde a devastação de uma plantação até a impotência sexual, já que se era mais fácil culpar uma bruxa do que se difamar ou se virar contra “Deus”, já de acordo com Jeffrey B. Russel e Brooks Alexander em “História da Bruxaria” (2019), Pág. 136/137 “se Deus, ou o destino, causou alguma doença a alguém, não há meios para revidar; mas se a responsável for uma bruxa, poder-se-á rechaça-la ou neutralizar-lhe o poder”. (RUSSEL; ALEXANDER, 2019)

Desta forma, acreditava-se que se executassem uma bruxa, sua onda de azar desapareceria. O perfil em que as bruxas se encaixavam não era o da imagem sustentada por séculos de uma senhora velha e com verrugas pelo rosto, mas por traços como os de mendigar, resmungar, praguejar e altercar, sendo preferíveis as com idade dos cinquenta aos sessenta anos. (RUSSEL; ALEXANDER, 2019)

Por fim, resta esclarecer que existem – historicamente – três tipos de bruxos, os quais têm pouco em comum (2019): “o feiticeiro, que pratica a magia simples, encontrado no mundo inteiro; o herege, de quem se afirmava praticar diabolismo e que foi perseguido durante as caças às bruxas; e o neopagão”. A questão do satanismo levantada pela Igreja é falaciosa, tendo em vista que tais cristãos agiam de acordo com aquilo que acreditavam – mesmo sendo hipócrita e cruel –, causando a morte de cerca de sessenta mil pessoas inocentes. (RUSSEL; ALEXANDER, 2019)

(...). Essencialmente, as caças às bruxas atestam a presença de uma horrenda falha na natureza humana: o desejo de projetar o mal sobre os outros, de defini-los como excluídos e de então puni-los cruelmente. As condenações à fogueira em Bamberg e os enforcamentos de Salem são funcionalmente comparáveis aos fornos de Dachau, às brutalidades do Gulag e aos genocídios no Camboja e em Ruanda. A ideologia determina a forma a ser assumida pelo mal, mas o mal que se esconde por trás da forma é uma característica embutida na própria humanidade. A negação da existência do mal somente fortalece seu poder. (RUSSEL; ALEXANDER, 2019, Pág. 242/243).

Fique sempre informado com o Jus! Receba gratuitamente as atualizações jurídicas em sua caixa de entrada. Inscreva-se agora e não perca as novidades diárias essenciais!
Os boletins são gratuitos. Não enviamos spam. Privacidade Publique seus artigos

No Brasil, os casos de intolerância religiosa começaram com a chegada dos portugueses em terras desconhecidas por expansões marítimas – a serviço da monarquia católica – que tinham o objetivo de encontrar as terras denominadas “Índias” para aumentar o número de fiéis, que foram influenciadas através da crise institucional da Igreja Católica e as reformas protestantes – que questionavam os dogmas católicos –, onde vieram a encontrar uma população classificada por eles como “selvagens” e que posteriormente viriam a ser catequisados pelos jesuítas, através da “Companhia de Jesus”, que visavam espalhar o catolicismo.

Apesar dos portugueses já terem experiência com a escravidão, em um primeiro momento, o contato com os serviços indígenas foi por meio do escambo – sistema de troca –, onde barganhava-se tal servidão através de objetos e produtos que aquele povo não detinha conhecimento. (PRIORE, 2016)

Os jesuítas faziam parte de uma ordem religiosa chamada “Companhia de Jesus”, fundada por Inácio de Loiola com objetivo de expandir a fé católica nos locais em que ela não existia – ou seja, nas terras que estavam sendo descobertas (Brasil) –, com a missão de converter os nativos para o catolicismo através da catequese, que foi uma série de procedimentos para transformar os índios em católicos, pois acreditavam ser a única crença válida, enxergando os índios como alienados oriundos de uma crença inválida; hereges que precisavam ter suas almas salvas.

Para a Igreja Católica e os jesuítas que logo vieram para o Brasil, o importante era destacar sua “humanidade” e seu pendor para a cristianização. Entusiasmado com a perspectiva de convertê-los ao catolicismo, padre Nóbrega, em 1563, gravou que, como “papel branco”, neles se poderia escrever à vontade. Muitos leigos ou religiosos discordavam de tal interpretação. E as dúvidas sobre sua disposição para abraçar a “verdadeira fé” veio logo depois. Para muitos, os índios não pronunciavam as letras “f”, “r” e “l” porque desconheciam leis, reis e fé. Canibalismo e feitiçaria alimentavam a crença de que eram simplesmente selvagens. Se eram “creaturas de Deus”, não passavam de seres inferiores que deveriam servir aos empreendimentos coloniais. Para evitar a maior degradação desses quase “animaes”, melhor seria escravizá-los. (DEL PRIORE, n/p, 2016)

Nessas missões foram criadas as primeiras escolas do Brasil, fazendo com que a Igreja tivesse o total controle sobre o conhecimento, e consequentemente com que a fé católica fosse predominante no país, além de costumes europeus, apagando pouco a pouco as raízes culturais do local, mesmo com forte resistência da tradição que era preservada pelos nativos. (PRIORE, 2016)

Não por acaso, Nóbrega fundava em São Vicente, em 1554, o primeiro colégio de catecúmenos que houve no Brasil, “ordenando que fosse confraria do Menino Jesus”. Ali, juntaram-se alguns órfãos e meninos abandonados vindos de Lisboa, mestiços da terra e “indiosícos”. Esses eram em geral egressos de uniões entre mães índias e pais portugueses. Ou vinham a pedido de algum “principal” ou cacique. O sentimento de valorização da criança enquanto ser cheio de graça e vulnerabilidade não estava ausente do coração dos jesuítas, que viam nas crianças “inocentes, mui elegantes e formosos”. Ou, ainda, “muchachos que quase criamos aos nossos peitos com o leite da doutrina cristã”. (PRIORE, 2016, n/p)

Tendo em vista a dificuldade de se escravizar indígenas devido à resistência indígena ao trabalho forçado, tendo baixa produtividade e encarecendo a mão de obra aos portugueses, isso fez com que o Tráfico Negreiro se expandisse lentamente para o Brasil, onde os negros também foram catequizados e acabaram por misturar as suas crenças com a do catolicismo, dando origem à novas ideologias – através da opressão sofrida junto com os indígenas – de nada mudando a situação dos indígenas, sendo que aconteciam “guerras justas” onde estes eram capturados e escravizados para trabalhar em engenhos de cana-de-açúcar. (PRIORE, 2016)

Deportados e feitos escravos pelo Império, os africanos foram forçados a obedecer às regras católicas, mas nunca abandonaram intimamente suas tradições. Em suas irmandades eles africanizaram o catolicismo, celebrando santos patronos com mascaradas, a percussão dos atabaques, das danças cheias de energia corporal, canções cantadas em línguas nativas e a eleição fictícia de reis e rainhas negros (ALENCASTRO E NOVAIS, 1997, p.101 apud COSTA, 2018, n/p).

O Candomblé nasceu a partir da “importação” de diferentes cultos de origem africana, já a Umbanda trata-se da mistura das religiões indígenas, africanas e católica, ambas germinando como uma forma de resistir ao período colonial e ao catolicismo – o qual pregava que a única forma de salvar a alma dos negros era pela escravidão, de acordo com Roger Cipó. (D’ANGELO, 2017)

Os jesuítas catequizavam, portanto, os nativos para escraviza-los em nome da Coroa, e tal imposição do catolicismo seguiu-se com a opressão da cultura africana no período da escravidão, culminando com a raiz do preconceito em diferentes níveis, já que os indígenas e os negros eram considerados como coisa. Portanto, levando em conta esses dois períodos, vê-se que o cristianismo se ergueu perante a intolerância.

No início do século XX, entre 1950 e 1970, o pentecostalismo expandiu-se no Brasil, aumentando suas igrejas e ganhando maior visibilidade, centrando uma “batalha espiritual” contra as demais religiões – principalmente as afro-brasileiras e o espiritismo (e o fato de que juntas, segundo o IBGE de 200, tais religiões somavam apenas 1,7% da população não impediu a “demonização” e a perseguição dos “exércitos de Cristo” contra rituais afro-brasileiros e à terreiros).

Aqui os temas centrais da batalha espiritual estão postos: I) identificação das divindades do panteão afro com o demônio; 2) libertação pelo poder (maior) do sangue vivo de Jesus (em oposição ao sangue “seco” ou “fétido” da iniciação ou oferendas) e, em consequência da libertação; 3) a conversão (...). (SILVA, 2007, Pág. 196).


2. SITUAÇÃO DO BRASIL SOBRE INTOLERÂNCIA RELIGIOSA

O povo brasileiro – em sua maioria cristão – tende a menosprezar qualquer religião que tenha um viés ideológico diferente do cristianismo, e mesmo que tal situação seja fato típico na legislação brasileira, isto não intimida os ofensores, mesmo sendo o Brasil signatário da Declaração Universal dos Direitos Humanos, a qual coloca a liberdade religiosa como um dos direitos fundamentais da sociedade – tendo em vista a diversidade de convicções existentes.

O artigo 18 desta Declaração expõe que “Todo ser humano tem direito à liberdade de pensamento, consciência e religião; este direito inclui a liberdade de mudar de religião ou crença e a liberdade de manifestar essa religião ou crença, pelo ensino, pela prática, pelo culto e pela observância, em público ou em particular”.

Em relação à tipificação no Brasil, o Código Penal de 1890 previa como crime práticas de "curandeiros", "feiticeiros", "espiritistas" e "cartomantes" em seu artigo 157, fazendo com que houvesse perseguição contra adeptos, bem como a discriminação e até criminalização de tais religiões:

Art. 157. Praticar o espiritismo, a magia e seus sortilegios, usar de talismans e cartomancias para despertar sentimentos de odio ou amor, inculcar cura de molestias curaveis ou incuraveis, emfim, para fascinar e subjugar a credulidade publica:

Penas - de prisão cellular por um a seis mezes e multa de 100$ a 500$000.

§ 1º Si por influencia, ou em consequencia de qualquer destes meios, resultar ao paciente privação, ou alteração temporaria ou permanente, das faculdades psychicas:

Penas - de prisão cellular por um a seis annos e multa de 200$ a 500$000.

§ 2º Em igual pena, e mais na de privação do exercicio da profissão por tempo igual ao da condemnação, incorrerá o medico que directamente praticar qualquer dos actos acima referidos, ou assumir a responsabilidade delles. (BRASIL, 1890).

A intolerância religiosa passou a ser discutida apenas em 1989, onde a Lei 7.716/89 – conhecida também como Lei Caó – punia os crimes que envolviam discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional com um a três anos de reclusão ou multa, sendo tais crimes asseverados a partir da Lei 9.459/97, que passou a punir de dois a cinco anos de reclusão algumas hipóteses do artigo 20, além de acrescentar o parágrafo §3º no artigo 140 do Código Penal – que trata sobre a injúria –. Em 2007, a Lei 11.645/07 modificou o artigo 26-A da Lei 9.394/96, passando a exigir o estudo da história e cultura afro-brasileira e indígena nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio.

Há ainda a discussão da intolerância religiosa ser englobada pelo crime de racismo, o qual é inafiançável e imprescritível de acordo com o inciso XLII do artigo 5º da Constituição Federal, por ser uma prática discriminatória contra todos os indivíduos de determinada crença ou religião – ou pela ausência delas.

Além disso, o artigo 3º da Constituição Federal determina que o Estado deve garantir o bem de todos sem qualquer forma de preconceito ou discriminação, já que mesmo que a liberdade de expressão seja garantida no país, ela não pode ferir nenhum outro direito assegurado pela Constituição o que impede o desrespeito, agressão ou ofensa contra qualquer outra pessoa com o disfarce em tal garantia.

O Código Penal também prevê crime contra sentimento religioso o ultraje a culto e impedimento ou perturbação de ato a ele relativo em seu artigo 208, o qual relata:

Art. 208 - Escarnecer de alguém publicamente, por motivo de crença ou função religiosa; impedir ou perturbar cerimônia ou prática de culto religioso; vilipendiar publicamente ato ou objeto de culto religioso:

Pena - detenção, de um mês a um ano, ou multa.

Parágrafo único - Se há emprego de violência, a pena é aumentada de um terço, sem prejuízo da correspondente à violência. (BRASIL, 1940)

Portanto, os bens jurídicos protegidos por este artigo é a liberdade de crença, religião e de culto, devendo o agente humilhar publicamente, impedir ou atrapalhar cerimonia ou prática de culto religioso ou menosprezar publicamente ato ou objeto de culto religioso para ser tipificado no crime – sendo tais modalidades apenas previstas na categoria dolosa –, podendo sofrer aumento de pena em um terço caso ocorra violência, podendo ocorrer concurso de crime com este artigo cumulado com o relativo a violência. Se a ofensa não for pública, configura o crime de injúria, previsto no artigo 140 do mesmo Código. (AZEVEDO; SALIM, 2018)

Porém, apesar de ser previsto como crime em território nacional – inafiançável e imprescritível, inclusive – a intolerância religiosa vem cada dia mais colecionando cicatrizes na sociedade atual, mesmo tal modalidade não tendo proteção da liberdade de expressão quando se utilizam desta com o intuito de agressão ou ofensa.

Qualquer religião que não segue a vertente cristã é vista como adoradora do “Diabo” – sendo este “ser” associado a deuses de outras religiões, o que não faz sentido nenhum, já que tal personagem fora criado pelo Cristianismo, só tendo local de fala nesta religião, portanto –, e quando não assimilam a religião ao mal, usam-na como termo pejorativo.

Desta forma, surge a expressão “Cristofascimo”, criada pela teóloga alemã Dotrothee Sölle que notou que o nazismo se utilizou de termos cristãos para sua composição, o que faz cair por terra o simbolismo de amor, misericórdia ou paz que faziam a fama de Deus ou até mesmo Jesus – o qual dá o nome à uma vertente religiosa –; formando um novo propósito que pauta ódio, violência, discriminação e racismo produzindo uma irracionalidade predominante.

Sendo assim, a pessoa que se mostra intolerante à religião vizinha, tem grandes chances de ser intolerante à outras coisas também, como a orientação sexual, etnia, questões políticas ou até mesmo classe social, não encontrando em sua própria religião valores que os façam ter uma mudança ideológica, mas muito pelo contrário: acaba encontrando motivos que alimentam a intolerância como um todo e criando um modelo que acredita que deve ser seguido, sendo intolerante à todos os que forem contrários à este, mostrando-se incompatíveis para uma possível convivência entre diferenças.

De acordo com Vitória Régia da Silva, repórter da “Gênero e Número”, foram registrados 6.324 casos de intolerância religiosa em 2017 e 2018, sendo a metade dos casos classificada como o crime de injúria e 16% como difamação, onde religiões de matriz africana são os principais alvos – 59% do total de casos entre 2011 e 2018 são contra religiões de matrizes africanas, como a umbanda e o candomblé.

O Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos divulgou no dia 13 de junho de 2019 um balanço sobre denúncias de discriminação religiosa feitas pelo “Disque 100” – plataforma para denunciar este tipo de crime e outros – onde consta 506 casos registrados em 2018, sendo a umbanda, o candomblé e outras religiões de matrizes africanas os mais prejudicados.

A frequência com que tais ataques acontecem pode aglomerar vários tipos penais – como o de ameaça, agressão física, difamação, danos como a destruição de objetos sagrados ou de terreiros em geral, piorando quando ocorrem tentativas de homicídio, ou sua consumação –, os quais podem ser considerados como terrorismo caso enquadrados apropriadamente; sendo muitas vezes praticados por traficantes, transbordando perfídia. Como eles gostariam de ser reconhecidos? Traficantes de Cristo?

O fato de o Brasil ter escravizado negros e agora querer oprimir religiões de matrizes africana escancara o racismo estrutural como um dos principais motivos para utilizar o cristianismo como explicação para se achar no direito de ser intolerante – provando que o Estado não tem mecanismos para evitar o ódio em relação ao problema social, e que o fato das igrejas neopentecostais estarem crescendo excessivamente e midiaticamente, ao mesmo tempo que bancadas evangélicas ganham relevância na política de um estado laico, de nada ajuda na situação.

Assuntos relacionados
Sobre o autor
Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!
Publique seus artigos