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O conceito de desobediência civil na teoria do Brasil à luz das reflexões de Hannah Arendt

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28/01/2006 às 00:00
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A desobediência civil e as mudanças sociais

A transformação é inerente à condição humana, embora aconteça de formas diferentes em cada civilização. As condições propiciadas pelo século XX, segundo a autora, transpassou os limites comumente estabelecidos para mudanças, em que estas deveriam ocorrer entre as gerações, de modo que o mundo fosse relativamente estável a cada habitante que nasce, vive e parte. Nas condições atuais, mesmo para uma mesma geração, o mundo parece se configurar e se desconfigurar por várias vezes durante a vida. Isso, contudo, assevera ela, não eliminou a necessidade de estabilidade sentida por todos os homens, pois nem a necessidade de mudanças nem a de estabilidade podem ser ilimitadas. Em toda forma de civilização deve haver uma estrutura estável consistente para que ocorram mudanças realmente significativas.

A lei tem o papel de assegurar esta estrutura de estabilidade.

Neste mundo de constantes mudanças, e quando estas acontecem de forma acelerada, a lei parece sempre uma força repressora e negativa que contraria a positividade da sociedade[16], que contraria seus anseios de mudança acelerada. A relação entre lei e mudança portanto, em tempos modernos, é colocada desta forma: a lei faz parte do processo civilizatório e tem legitimidade na medida em que decorre de um movimento inerente à sociedade politicamente constituída. É justamente enquanto vox populi que a lei pode ser imposta à sociedade de forma legítima. Ela apenas reflete uma mudança que é extra-legal, advinda do seio da própria sociedade. À guisa de exemplo, a autora cita a Lei Seca nos EUA como uma mudança buscada por intermédio da lei e que teve sua imposição fracassada. A lei não tem a capacidade, ela mesma, de modificar a vida da sociedade, a Constituição Federal do Brasil é outro exemplo emblemático do que defende a pensadora.

Neste sentido, conforme notamos no exame de fatos históricos, a mudanças efetivas em relação à segregação racial nos estados sulistas dos EUA, apesar de serem constitucionalmente reguladas havia quase cem anos, somente tiveram efetividade após lutas de resistência e desobediência civil por parte das minorias negras. É neste contexto que a desobediência civil adquire grande importância no cenário político hodierno.

Neste ponto do debate Arendt se propõe a demonstrar que a desobediência civil tem grande identificação com o sistema político-jurídico norte-americano e que, como tal, pertence a sua tradição e por ele deve ser sintetizado. Ela continua afirmando que a tarefa de se encontrar um nicho constitucional para a desobediência civil é "tão importante, talvez, quanto a descoberta, há quase duzentos anos, da constitutio libertatis."[17]


A desobediência civil, e o contrato social horizontal

O compromisso do cidadão com as leis advém primordialmente do fato deste ter supostamente sido o legislador ou ter dado consentimento a este por meio de processos formais. Sendo assim, o homem, quando se sujeita à lei não se sujeita a uma vontade alheia mas a uma vontade a que ele próprio aquiesceu, e, sendo assim, é senhor e escravo de si mesmo. Esta foi a solução de Rousseau e de Kant para o problema do compromisso. Arendt critica esta posição pela simples razão de que ela retorna ao indivíduo em seu foro íntimo de consciência, o conflito original entre os interesses subjetivos e o bem comum[18]. Em última análise e sem maiores digressões, podemos apontar este como o ponto primordial dos argumentos em prol da obediência irrestrita à lei. O argumento é um só: nós devemos obedecer à lei pois vivemos em uma democracia e nos foi dado o direito de votar. Acontece que é exatamente este direito das maiorias, assevera a autora, este "sufrágio universal em eleições livres, como sendo uma base suficiente para a democracia e uma pretensão de liberdade pública, que está sob ataque."[19]

O espírito das leis norte-americanas, usando o termo de Montesquieu, é o de uma participação contínua nos interesses públicos e um apoio ativo do cidadão às instituições de poder. E embora nos tempos modernos, este consentimento à lei tem ficado na mera ficção jurídica da legitimidade da lei, no caso norte-americano, era uma realidade palpável entre os colonos e os inauguradores das tradições políticas daquele país. Arendt propõe-se então a fazer um panorama das concepções mais conhecidas do contrato social de autores do século XVII conhecidos como os contratualistas.

Segundo ela, haviam três tipos diferentes de contratos sociais, a saber:

Contrato teocrático – Celebrado entre Deus e o povo por intermédios das leis reveladas às quais se deve obediência irrestrita. Típico do convênio bíblico de Moisés e do povo hebreu.

Contrato vertical– Celebrado entre os homens, que renunciam a todos os direitos e poderes para estabelecer uma autoridade secular para garantir principalmente segurança e proteção. Reivindica para esta autoridade o monopólio de poder em benefício dos que estão submetidos a ele. Também chamado de variante de Hobbes.

Contrato horizontal – Versão do pacto social que guia não o governo, mas notadamente a própria sociedade. Feito o pacto entre os indivíduos é que se estabelece um contrato de governo. Portanto, o governo é regido pelo pacto social e não o contrário. É chamado por Arendt também de variante de Locke.

O terceiro tipo de contrato, conforme Arendt, limita a ação do indivíduo mas mantém intacto o poder da sociedade. Institui então o governo sobre o firme terreno de um contrato anterior entre os membros da sociedade. Este contrato, afirma ela, tem a enorme vantagem de ligar os membros da sociedade em uma relação recíproca de reconhecimento, no qual os indivíduos são mantidos unidos pela força das promessas mútuas e não pela homogeneidade étnica, reminiscências históricas ou pelo Leviatã hobbesiano que a todos intimida, e pelo medo os une.

Assim, ao contrário das outras versões do contrato, o horizontal é o único em que o consentimento não é apenas uma ficção sem correlato na realidade. Há a real possibilidade de consentir que consiste, conforme Arendt, no consentimento tácito em não dissentir. Não dissentindo, se consente. Há de haver, portanto, a possibilidade real de dissenso, sob pena do consentimento ser não só ficto como falso. "Dissidência implica em consentimento e é a marca do governo livre;" afirma ela, "quem sabe que pode divergir sabe também que de certo modo está consentindo quando não diverge."[20]

A possibilidade de dissenso contido no consentimento à lei é típico da cultura política norte-americana. Esta possibilidade demonstra-se no que Tocqueville chamou de consensus universalis ou seja, o consentimento tácito às leis que regem a sociedade decorrente dos ditos Estados Democráticos de Direito. Mas note-se bem, segundo alerta Arendt, não se deve confundir – o que acontece em demasia entre os conservadores, positivistas ou não – este consensus universalis que todo cidadão presta ao estado constitucional com a obrigação deste se sujeitar a toda e qualquer lei ou ordem governamental, ainda que estas sejam frutos da decisão da maioria.

Segundo a autora, este é o argumento mais recorrente, a saber "o consentimento à Constituição, o consensus universalis, implica em consentimento às leis estatutárias também, pois no governo representativo o povo também ajudou a faze-las." Tal consentimento, contudo, segundo ela, "...é completamente fictício."[21] E no mais, no atual momento perdeu toda a plausibilidade. Perdeu toda a plausibilidade, garante ela, pois o sistema de governo representativo está em crise. Em primeiro lugar porque perdeu todas as possibilidades práticas da participação real do cidadão do governo ao longo do tempo e em segundo lugar porque não representa ninguém mais além da burocrática máquina dos partidos.

De mais a mais, Arendt procede à análise de outro aspecto da crise que atingia os EUA naquele momento, qual seja, das atitudes inconstitucionais do próprio governo americano[22], que feriam de morte a legitimidade do próprio consensus universalis. Também, no mesmo sentido, fazendo uso do completo estudo de Aléxis de Tocqueville sobre a democracia na América, Arendt questiona a situação problemática dos afro-americanos e de sua participação no contrato original na América.

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Ela defende então a tese de que o consentimento no sentido norte-americano de apreender o termo, descansa na versão horizontal do contrato social e não em decisões da maioria. Desde os idealizadores e pais daquela república[23], houve o cuidado em limitar o poder da maioria contra as minorias, o grande mal da democracia americana conforme já notava Tocqueville no século XVIII.

Há somente um conteúdo moral neste consentimento, assevera a autora, a saber, o dever de manter e cumprir promessas. Este é o único compromisso estritamente moral que o cidadão, na condição de tal, deve assumir. Conforme se extrai de qualquer teoria dos contratos, sendo estes nada mais do que promessas mútuas, há duas situações que ensejam a obrigatoriedade do descumprimento de uma promessa, ou de uma disposição contratual: a primeira é a questão das mudanças inesperadas das condições em que as promessas foram feitas, que chamamos de cláusula rebus sic standibus, e da ruptura da reciprocidade inerente a toda promessa. Segundo Arendt existem inúmeros exemplos destas ocorrências na sociedade americana em sua década. Segundo ela:

"…há o caso da ‘guerra ilegal e imoral’, o caso da reivindicação cada vez mais impaciente de poder pelo Executivo, o caso do embuste crônico associado a ataques deliberados às liberdades garantidas pela Primeira emenda, cuja grande função política sempre foi a de tornar o embuste crônico impossível; e há por último, mas não menos importante, o caso das violações dos créditos especiais das universidades (na forma de pesquisas orientadas para a guerra ou outras dirigidas pelo governo), que lhes dava proteção contra interferência política e pressão social."[24]

A sociedade norte-americana, fundada em contrato mútuo que se assemelha a uma versão horizontal de contrato social nas palavras de Arendt tem em si a sua maior força em sua capacidade associativa. As associações voluntárias, numerosas e efetivas nos EUA deste a independência, e que causaram espanto a Tocqueville, exercem um papel emblemático desta capacidade e aptidão do norte-americano de associar-se voluntariamente. Em nenhum país do mundo, afirma o francês, o princípio da associação foi usado com maior sucesso ou numa maior variedade de objetivos que nos EUA. É essa capacidade, aptidão e vontade associativa que Arendt relacionará como a raiz sócio-cultural da desobediência civil. Em suas palavras:

"Minha discussão é que os contestadores civis não são mais que a derradeira forma de associação voluntária, e que deste modo eles estão afinados com as mais antigas tradições do país."[25]

Não se trata, contudo, de uma apologia acrítica. A autora é consciente dos perigos que são trazidos pela desobediência civil, contudo, segundo ela, estes perigos não são maiores do que os perigos inerentes ao direito à livre associação. Com efeito, é enquanto uma organização associativa que a desobediência civil assume suas características mais ligadas à cidadania. A pensadora adverte com isso a tendência contemporânea de se incorporar às associações inclinações ideológicas que são inteiramente diferentes dos propósitos destas associações. Nesta esteira critica os movimentos estudantis, segundo ela, o exemplo mais emblemático de desobediência civil naquele momento, pelas suas inclinação às ideologias que apenas cindiam e arrefeciam as próprias associações voluntárias e capacidade destas em, de fato, atingirem suas metas de obterem mudanças sociais.

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Sobre o autor
Joelton Nascimento

professor, especialista

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

NASCIMENTO, Joelton. O conceito de desobediência civil na teoria do Brasil à luz das reflexões de Hannah Arendt. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 939, 28 jan. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/7892. Acesso em: 24 abr. 2024.

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