Capa da publicação Desobediência civil no Brasil e Hannah Arendt
Capa: Dall-E
Artigo Destaque dos editores

O conceito de desobediência civil na teoria do Brasil à luz das reflexões de Hannah Arendt

Exibindo página 2 de 4
28/01/2006 às 00:00
Leia nesta página:

A desobediência civil, e o contrato social horizontal

O compromisso do cidadão com as leis advém primordialmente do fato deste ter supostamente sido o legislador ou ter dado consentimento a este por meio de processos formais. Sendo assim, o homem, quando se sujeita à lei não se sujeita a uma vontade alheia mas a uma vontade a que ele próprio aquiesceu, e, sendo assim, é senhor e escravo de si mesmo. Esta foi a solução de Rousseau e de Kant para o problema do compromisso. Arendt critica esta posição pela simples razão de que ela retorna ao indivíduo em seu foro íntimo de consciência, o conflito original entre os interesses subjetivos e o bem comum18. Em última análise e sem maiores digressões, podemos apontar este como o ponto primordial dos argumentos em prol da obediência irrestrita à lei. O argumento é um só: nós devemos obedecer à lei pois vivemos em uma democracia e nos foi dado o direito de votar. Acontece que é exatamente este direito das maiorias, assevera a autora, este "sufrágio universal em eleições livres, como sendo uma base suficiente para a democracia e uma pretensão de liberdade pública, que está sob ataque."19

O espírito das leis norte-americanas, usando o termo de Montesquieu, é o de uma participação contínua nos interesses públicos e um apoio ativo do cidadão às instituições de poder. E embora nos tempos modernos, este consentimento à lei tem ficado na mera ficção jurídica da legitimidade da lei, no caso norte-americano, era uma realidade palpável entre os colonos e os inauguradores das tradições políticas daquele país. Arendt propõe-se então a fazer um panorama das concepções mais conhecidas do contrato social de autores do século XVII conhecidos como os contratualistas.

Segundo ela, haviam três tipos diferentes de contratos sociais, a saber:

  • Contrato teocrático – Celebrado entre Deus e o povo por intermédios das leis reveladas às quais se deve obediência irrestrita. Típico do convênio bíblico de Moisés e do povo hebreu.

  • Contrato vertical– Celebrado entre os homens, que renunciam a todos os direitos e poderes para estabelecer uma autoridade secular para garantir principalmente segurança e proteção. Reivindica para esta autoridade o monopólio de poder em benefício dos que estão submetidos a ele. Também chamado de variante de Hobbes.

  • Contrato horizontal – Versão do pacto social que guia não o governo, mas notadamente a própria sociedade. Feito o pacto entre os indivíduos é que se estabelece um contrato de governo. Portanto, o governo é regido pelo pacto social e não o contrário. É chamado por Arendt também de variante de Locke.

O terceiro tipo de contrato, conforme Arendt, limita a ação do indivíduo mas mantém intacto o poder da sociedade. Institui então o governo sobre o firme terreno de um contrato anterior entre os membros da sociedade. Este contrato, afirma ela, tem a enorme vantagem de ligar os membros da sociedade em uma relação recíproca de reconhecimento, no qual os indivíduos são mantidos unidos pela força das promessas mútuas e não pela homogeneidade étnica, reminiscências históricas ou pelo Leviatã hobbesiano que a todos intimida, e pelo medo os une.

Assim, ao contrário das outras versões do contrato, o horizontal é o único em que o consentimento não é apenas uma ficção sem correlato na realidade. Há a real possibilidade de consentir que consiste, conforme Arendt, no consentimento tácito em não dissentir. Não dissentindo, se consente. Há de haver, portanto, a possibilidade real de dissenso, sob pena do consentimento ser não só ficto como falso. "Dissidência implica em consentimento e é a marca do governo livre;" afirma ela, "quem sabe que pode divergir sabe também que de certo modo está consentindo quando não diverge."20

A possibilidade de dissenso contido no consentimento à lei é típico da cultura política norte-americana. Esta possibilidade demonstra-se no que Tocqueville chamou de consensus universalis ou seja, o consentimento tácito às leis que regem a sociedade decorrente dos ditos Estados Democráticos de Direito. Mas note-se bem, segundo alerta Arendt, não se deve confundir – o que acontece em demasia entre os conservadores, positivistas ou não – este consensus universalis que todo cidadão presta ao estado constitucional com a obrigação deste se sujeitar a toda e qualquer lei ou ordem governamental, ainda que estas sejam frutos da decisão da maioria.

Segundo a autora, este é o argumento mais recorrente, a saber "o consentimento à Constituição, o consensus universalis, implica em consentimento às leis estatutárias também, pois no governo representativo o povo também ajudou a faze-las." Tal consentimento, contudo, segundo ela, "...é completamente fictício."21 E no mais, no atual momento perdeu toda a plausibilidade. Perdeu toda a plausibilidade, garante ela, pois o sistema de governo representativo está em crise. Em primeiro lugar porque perdeu todas as possibilidades práticas da participação real do cidadão do governo ao longo do tempo e em segundo lugar porque não representa ninguém mais além da burocrática máquina dos partidos.

De mais a mais, Arendt procede à análise de outro aspecto da crise que atingia os EUA naquele momento, qual seja, das atitudes inconstitucionais do próprio governo americano22, que feriam de morte a legitimidade do próprio consensus universalis. Também, no mesmo sentido, fazendo uso do completo estudo de Aléxis de Tocqueville sobre a democracia na América, Arendt questiona a situação problemática dos afro-americanos e de sua participação no contrato original na América.

Ela defende então a tese de que o consentimento no sentido norte-americano de apreender o termo, descansa na versão horizontal do contrato social e não em decisões da maioria. Desde os idealizadores e pais daquela república23, houve o cuidado em limitar o poder da maioria contra as minorias, o grande mal da democracia americana conforme já notava Tocqueville no século XVIII.

Há somente um conteúdo moral neste consentimento, assevera a autora, a saber, o dever de manter e cumprir promessas. Este é o único compromisso estritamente moral que o cidadão, na condição de tal, deve assumir. Conforme se extrai de qualquer teoria dos contratos, sendo estes nada mais do que promessas mútuas, há duas situações que ensejam a obrigatoriedade do descumprimento de uma promessa, ou de uma disposição contratual: a primeira é a questão das mudanças inesperadas das condições em que as promessas foram feitas, que chamamos de cláusula rebus sic standibus, e da ruptura da reciprocidade inerente a toda promessa. Segundo Arendt existem inúmeros exemplos destas ocorrências na sociedade americana em sua década. Segundo ela:

"…há o caso da ‘guerra ilegal e imoral’, o caso da reivindicação cada vez mais impaciente de poder pelo Executivo, o caso do embuste crônico associado a ataques deliberados às liberdades garantidas pela Primeira emenda, cuja grande função política sempre foi a de tornar o embuste crônico impossível; e há por último, mas não menos importante, o caso das violações dos créditos especiais das universidades (na forma de pesquisas orientadas para a guerra ou outras dirigidas pelo governo), que lhes dava proteção contra interferência política e pressão social."24

A sociedade norte-americana, fundada em contrato mútuo que se assemelha a uma versão horizontal de contrato social nas palavras de Arendt tem em si a sua maior força em sua capacidade associativa. As associações voluntárias, numerosas e efetivas nos EUA deste a independência, e que causaram espanto a Tocqueville, exercem um papel emblemático desta capacidade e aptidão do norte-americano de associar-se voluntariamente. Em nenhum país do mundo, afirma o francês, o princípio da associação foi usado com maior sucesso ou numa maior variedade de objetivos que nos EUA. É essa capacidade, aptidão e vontade associativa que Arendt relacionará como a raiz sócio-cultural da desobediência civil. Em suas palavras:

"Minha discussão é que os contestadores civis não são mais que a derradeira forma de associação voluntária, e que deste modo eles estão afinados com as mais antigas tradições do país."25

Não se trata, contudo, de uma apologia acrítica. A autora é consciente dos perigos que são trazidos pela desobediência civil, contudo, segundo ela, estes perigos não são maiores do que os perigos inerentes ao direito à livre associação. Com efeito, é enquanto uma organização associativa que a desobediência civil assume suas características mais ligadas à cidadania. A pensadora adverte com isso a tendência contemporânea de se incorporar às associações inclinações ideológicas que são inteiramente diferentes dos propósitos destas associações. Nesta esteira critica os movimentos estudantis, segundo ela, o exemplo mais emblemático de desobediência civil naquele momento, pelas suas inclinação às ideologias que apenas cindiam e arrefeciam as próprias associações voluntárias e capacidade destas em, de fato, atingirem suas metas de obterem mudanças sociais.


Conclusões do ensaio

Passando a fazer suas considerações finais, Arendt resume suas objeções ao debate sobre a desobediência civil, o que transcrevemos:

"O maior erro do presente debate, a meu ver, a suposição de que estamos tratando com indivíduos que se colocam subjetivamente e conscientemente contra as leis e costumes da comunidade – suposição esta que é partilhada pelos defensores e detratores da desobediência civil. O caso é que estamos tratando com minorias organizadas, que se levantam contra maiorias supostamente inarticuladas, embora nada ‘silenciosas’. E eu considero inegável que estas maiorias tenham mudado em ânimo e opinião num grau espantoso, sob pressão das minorias.(...) Quanto a isto, talvez tenha sido lamentável que nossos debates tenham sido dominados em larga escala por juristas – advogados, juízes e outros homens da lei – pois para eles deve ser particularmente difícil reconhecer o contestador civil como membro de um grupo, ao invés de vê-lo como um transgressor individual e, deste modo, um réu em potencial da corte."26

Tendo a autora apontado, como vimos, a relação entre a desobediência civil e o espírito da leis norte-americanas, também aponta a impossibilidade de uma incorporação desta ao sistema normativa do país. Segundo ela, isto não se deve ao espírito das leis norte-americanas propriamente ditas mas da lei em geral, o que não impede, contudo, que haja um nicho para esta nas instituições de governo. O sistema normativo, por sua natureza não pode pressupor a sua negação, e quanto a isto não há objeções a serem levantadas, mas há que se conceder, onde se pretende falar em cidadania, o poder do consentimento real ao cidadão, ainda que este signifique a realização do dissenso.

Fique sempre informado com o Jus! Receba gratuitamente as atualizações jurídicas em sua caixa de entrada. Inscreva-se agora e não perca as novidades diárias essenciais!
Os boletins são gratuitos. Não enviamos spam. Privacidade Publique seus artigos

No momento em que se falava em uma guerra ilegal, protegida pela doutrina da questão política, que se declarava incompetente em julgar a constitucionalidade da iniciativa bélica, os fundamentos primordiais do pacto social são suspensos e, com isso, entram em crise e depois em colapso. Daí se falar, como vimos, em perda da autoridade governamental e conseqüentemente a perda da autoridade da lei.

Visto como um ato coletivo e que envolve uma visão cidadã e horizontal do poder civil pode a desobediência civil, ser perfeitamente enquadrado nas instituições de poder político e das decisões judiciais e governamentais, ao invés de servirem apenas para a dramatização de situações de opressão vista de longe, para isso, segundo a autora, deve-se proceder a dois passos:

O primeiro passo é "obter o reconhecimento que é dado a inúmeros grupos de interesses especiais (grupos minoritários por definição) do país para as minorias contestadoras" ou seja, tratar da mesma forma contestadores civis e os grupos de pressão que tendem a influenciar as decisões do Congresso tanto pela opinião quanto pelo número de constituinte. E o segundo passo, segundo a autora, seria declarar oficialmente que "...a Primeira Emenda não cobre nem em linguagem nem em espírito o direito de associação na forma como ele é realmente praticado neste país (...)", ou seja, propõe ela que se construa um nicho constitucional para a contestação civil: " se há algo que exija urgentemente uma nova emenda constitucional e compense qualquer trabalho que se tenha é sem dúvida isto."27

A autora então finaliza o ensaio afirmando que ainda que os tempos em que vivia os EUA fossem de fracasso e tumulto envolvendo suas instituições, ainda assim, tinham em sua tradição cultural os instrumentos para enfrentar o futuro, segundo ela, "com uma certa dose de confiança."28


O Brasil e a questão do contrato social vertical

Como expusemos, o contrato social vertical é contraposto, por um lado, ao contrato social de natureza teológica, pois envolve os indivíduos e um poder laico e por outro lado, ao contrato social horizontal, pois o governo civil naquele não vem da obrigação mútua entre os indivíduos, mas do pacto destes em elevar apenas uma pessoa ou grupo a um poder que lhes é superior, poder ao qual estes indivíduos cederiam todos os direitos naturais individuais em troca de segurança e estabilidade.

O contrato social vertical, tal como aparece nesta referência de Arendt, obriga cada cidadão mais ao poder laico e secular do que uns aos outros. O governo civil, nesta versão de pacto social é o poder que se alça para além dos interesses individuais inconciliáveis para exercer, de cima, o poder e a força plena sobre os indivíduos que, saídos de um selvagem estado de natureza, reclamam por um poder superior que os regule. Sendo este poder superior a todos os envolvidos, regulando-os de cima, daí o termo vertical.

O autor que representa, no plano das idéias, esta versão do contrato social e que, de uma forma direta é o teórico que o respalda é Thomas Hobbes, filósofo e pensador político inglês. E sua principal obra política, o Leviatã, ou Matéria, Forma e Poder do Governo Eclesiástico e Civil Hobbes define, fundamenta e caracteriza a natureza racional de uma sociedade politicamente constituída. Façamos uma sucinta análise nesta obra a fim de apontar alguns dos fundamentos principais e as condições de possibilidade de um contrato social de tipo vertical.

Assuntos relacionados
Sobre o autor
Joelton Nascimento

professor, especialista

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

NASCIMENTO, Joelton. O conceito de desobediência civil na teoria do Brasil à luz das reflexões de Hannah Arendt. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 941, 28 jan. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/7892. Acesso em: 23 dez. 2024.

Leia seus artigos favoritos sem distrações, em qualquer lugar e como quiser

Assine o JusPlus e tenha recursos exclusivos

  • Baixe arquivos PDF: imprima ou leia depois
  • Navegue sem anúncios: concentre-se mais
  • Esteja na frente: descubra novas ferramentas
Economize 17%
Logo JusPlus
JusPlus
de R$
29,50
por

R$ 2,95

No primeiro mês

Cobrança mensal, cancele quando quiser
Assinar
Já é assinante? Faça login
Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!
Colabore
Publique seus artigos
Fique sempre informado! Seja o primeiro a receber nossas novidades exclusivas e recentes diretamente em sua caixa de entrada.
Publique seus artigos