A desobediência civil, e o contrato social horizontal
O compromisso do cidadão com as leis advém primordialmente do fato deste ter supostamente sido o legislador ou ter dado consentimento a este por meio de processos formais. Sendo assim, o homem, quando se sujeita à lei não se sujeita a uma vontade alheia mas a uma vontade a que ele próprio aquiesceu, e, sendo assim, é senhor e escravo de si mesmo. Esta foi a solução de Rousseau e de Kant para o problema do compromisso. Arendt critica esta posição pela simples razão de que ela retorna ao indivíduo em seu foro íntimo de consciência, o conflito original entre os interesses subjetivos e o bem comum18. Em última análise e sem maiores digressões, podemos apontar este como o ponto primordial dos argumentos em prol da obediência irrestrita à lei. O argumento é um só: nós devemos obedecer à lei pois vivemos em uma democracia e nos foi dado o direito de votar. Acontece que é exatamente este direito das maiorias, assevera a autora, este "sufrágio universal em eleições livres, como sendo uma base suficiente para a democracia e uma pretensão de liberdade pública, que está sob ataque."19
O espírito das leis norte-americanas, usando o termo de Montesquieu, é o de uma participação contínua nos interesses públicos e um apoio ativo do cidadão às instituições de poder. E embora nos tempos modernos, este consentimento à lei tem ficado na mera ficção jurídica da legitimidade da lei, no caso norte-americano, era uma realidade palpável entre os colonos e os inauguradores das tradições políticas daquele país. Arendt propõe-se então a fazer um panorama das concepções mais conhecidas do contrato social de autores do século XVII conhecidos como os contratualistas.
Segundo ela, haviam três tipos diferentes de contratos sociais, a saber:
Contrato teocrático – Celebrado entre Deus e o povo por intermédios das leis reveladas às quais se deve obediência irrestrita. Típico do convênio bíblico de Moisés e do povo hebreu.
Contrato vertical– Celebrado entre os homens, que renunciam a todos os direitos e poderes para estabelecer uma autoridade secular para garantir principalmente segurança e proteção. Reivindica para esta autoridade o monopólio de poder em benefício dos que estão submetidos a ele. Também chamado de variante de Hobbes.
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Contrato horizontal – Versão do pacto social que guia não o governo, mas notadamente a própria sociedade. Feito o pacto entre os indivíduos é que se estabelece um contrato de governo. Portanto, o governo é regido pelo pacto social e não o contrário. É chamado por Arendt também de variante de Locke.
O terceiro tipo de contrato, conforme Arendt, limita a ação do indivíduo mas mantém intacto o poder da sociedade. Institui então o governo sobre o firme terreno de um contrato anterior entre os membros da sociedade. Este contrato, afirma ela, tem a enorme vantagem de ligar os membros da sociedade em uma relação recíproca de reconhecimento, no qual os indivíduos são mantidos unidos pela força das promessas mútuas e não pela homogeneidade étnica, reminiscências históricas ou pelo Leviatã hobbesiano que a todos intimida, e pelo medo os une.
Assim, ao contrário das outras versões do contrato, o horizontal é o único em que o consentimento não é apenas uma ficção sem correlato na realidade. Há a real possibilidade de consentir que consiste, conforme Arendt, no consentimento tácito em não dissentir. Não dissentindo, se consente. Há de haver, portanto, a possibilidade real de dissenso, sob pena do consentimento ser não só ficto como falso. "Dissidência implica em consentimento e é a marca do governo livre;" afirma ela, "quem sabe que pode divergir sabe também que de certo modo está consentindo quando não diverge."20
A possibilidade de dissenso contido no consentimento à lei é típico da cultura política norte-americana. Esta possibilidade demonstra-se no que Tocqueville chamou de consensus universalis ou seja, o consentimento tácito às leis que regem a sociedade decorrente dos ditos Estados Democráticos de Direito. Mas note-se bem, segundo alerta Arendt, não se deve confundir – o que acontece em demasia entre os conservadores, positivistas ou não – este consensus universalis que todo cidadão presta ao estado constitucional com a obrigação deste se sujeitar a toda e qualquer lei ou ordem governamental, ainda que estas sejam frutos da decisão da maioria.
Segundo a autora, este é o argumento mais recorrente, a saber "o consentimento à Constituição, o consensus universalis, implica em consentimento às leis estatutárias também, pois no governo representativo o povo também ajudou a faze-las." Tal consentimento, contudo, segundo ela, "...é completamente fictício."21 E no mais, no atual momento perdeu toda a plausibilidade. Perdeu toda a plausibilidade, garante ela, pois o sistema de governo representativo está em crise. Em primeiro lugar porque perdeu todas as possibilidades práticas da participação real do cidadão do governo ao longo do tempo e em segundo lugar porque não representa ninguém mais além da burocrática máquina dos partidos.
De mais a mais, Arendt procede à análise de outro aspecto da crise que atingia os EUA naquele momento, qual seja, das atitudes inconstitucionais do próprio governo americano22, que feriam de morte a legitimidade do próprio consensus universalis. Também, no mesmo sentido, fazendo uso do completo estudo de Aléxis de Tocqueville sobre a democracia na América, Arendt questiona a situação problemática dos afro-americanos e de sua participação no contrato original na América.
Ela defende então a tese de que o consentimento no sentido norte-americano de apreender o termo, descansa na versão horizontal do contrato social e não em decisões da maioria. Desde os idealizadores e pais daquela república23, houve o cuidado em limitar o poder da maioria contra as minorias, o grande mal da democracia americana conforme já notava Tocqueville no século XVIII.
Há somente um conteúdo moral neste consentimento, assevera a autora, a saber, o dever de manter e cumprir promessas. Este é o único compromisso estritamente moral que o cidadão, na condição de tal, deve assumir. Conforme se extrai de qualquer teoria dos contratos, sendo estes nada mais do que promessas mútuas, há duas situações que ensejam a obrigatoriedade do descumprimento de uma promessa, ou de uma disposição contratual: a primeira é a questão das mudanças inesperadas das condições em que as promessas foram feitas, que chamamos de cláusula rebus sic standibus, e da ruptura da reciprocidade inerente a toda promessa. Segundo Arendt existem inúmeros exemplos destas ocorrências na sociedade americana em sua década. Segundo ela:
"…há o caso da ‘guerra ilegal e imoral’, o caso da reivindicação cada vez mais impaciente de poder pelo Executivo, o caso do embuste crônico associado a ataques deliberados às liberdades garantidas pela Primeira emenda, cuja grande função política sempre foi a de tornar o embuste crônico impossível; e há por último, mas não menos importante, o caso das violações dos créditos especiais das universidades (na forma de pesquisas orientadas para a guerra ou outras dirigidas pelo governo), que lhes dava proteção contra interferência política e pressão social."24
A sociedade norte-americana, fundada em contrato mútuo que se assemelha a uma versão horizontal de contrato social nas palavras de Arendt tem em si a sua maior força em sua capacidade associativa. As associações voluntárias, numerosas e efetivas nos EUA deste a independência, e que causaram espanto a Tocqueville, exercem um papel emblemático desta capacidade e aptidão do norte-americano de associar-se voluntariamente. Em nenhum país do mundo, afirma o francês, o princípio da associação foi usado com maior sucesso ou numa maior variedade de objetivos que nos EUA. É essa capacidade, aptidão e vontade associativa que Arendt relacionará como a raiz sócio-cultural da desobediência civil. Em suas palavras:
"Minha discussão é que os contestadores civis não são mais que a derradeira forma de associação voluntária, e que deste modo eles estão afinados com as mais antigas tradições do país."25
Não se trata, contudo, de uma apologia acrítica. A autora é consciente dos perigos que são trazidos pela desobediência civil, contudo, segundo ela, estes perigos não são maiores do que os perigos inerentes ao direito à livre associação. Com efeito, é enquanto uma organização associativa que a desobediência civil assume suas características mais ligadas à cidadania. A pensadora adverte com isso a tendência contemporânea de se incorporar às associações inclinações ideológicas que são inteiramente diferentes dos propósitos destas associações. Nesta esteira critica os movimentos estudantis, segundo ela, o exemplo mais emblemático de desobediência civil naquele momento, pelas suas inclinação às ideologias que apenas cindiam e arrefeciam as próprias associações voluntárias e capacidade destas em, de fato, atingirem suas metas de obterem mudanças sociais.
Conclusões do ensaio
Passando a fazer suas considerações finais, Arendt resume suas objeções ao debate sobre a desobediência civil, o que transcrevemos:
"O maior erro do presente debate, a meu ver, a suposição de que estamos tratando com indivíduos que se colocam subjetivamente e conscientemente contra as leis e costumes da comunidade – suposição esta que é partilhada pelos defensores e detratores da desobediência civil. O caso é que estamos tratando com minorias organizadas, que se levantam contra maiorias supostamente inarticuladas, embora nada ‘silenciosas’. E eu considero inegável que estas maiorias tenham mudado em ânimo e opinião num grau espantoso, sob pressão das minorias.(...) Quanto a isto, talvez tenha sido lamentável que nossos debates tenham sido dominados em larga escala por juristas – advogados, juízes e outros homens da lei – pois para eles deve ser particularmente difícil reconhecer o contestador civil como membro de um grupo, ao invés de vê-lo como um transgressor individual e, deste modo, um réu em potencial da corte."26
Tendo a autora apontado, como vimos, a relação entre a desobediência civil e o espírito da leis norte-americanas, também aponta a impossibilidade de uma incorporação desta ao sistema normativa do país. Segundo ela, isto não se deve ao espírito das leis norte-americanas propriamente ditas mas da lei em geral, o que não impede, contudo, que haja um nicho para esta nas instituições de governo. O sistema normativo, por sua natureza não pode pressupor a sua negação, e quanto a isto não há objeções a serem levantadas, mas há que se conceder, onde se pretende falar em cidadania, o poder do consentimento real ao cidadão, ainda que este signifique a realização do dissenso.
No momento em que se falava em uma guerra ilegal, protegida pela doutrina da questão política, que se declarava incompetente em julgar a constitucionalidade da iniciativa bélica, os fundamentos primordiais do pacto social são suspensos e, com isso, entram em crise e depois em colapso. Daí se falar, como vimos, em perda da autoridade governamental e conseqüentemente a perda da autoridade da lei.
Visto como um ato coletivo e que envolve uma visão cidadã e horizontal do poder civil pode a desobediência civil, ser perfeitamente enquadrado nas instituições de poder político e das decisões judiciais e governamentais, ao invés de servirem apenas para a dramatização de situações de opressão vista de longe, para isso, segundo a autora, deve-se proceder a dois passos:
O primeiro passo é "obter o reconhecimento que é dado a inúmeros grupos de interesses especiais (grupos minoritários por definição) do país para as minorias contestadoras" ou seja, tratar da mesma forma contestadores civis e os grupos de pressão que tendem a influenciar as decisões do Congresso tanto pela opinião quanto pelo número de constituinte. E o segundo passo, segundo a autora, seria declarar oficialmente que "...a Primeira Emenda não cobre nem em linguagem nem em espírito o direito de associação na forma como ele é realmente praticado neste país (...)", ou seja, propõe ela que se construa um nicho constitucional para a contestação civil: " se há algo que exija urgentemente uma nova emenda constitucional e compense qualquer trabalho que se tenha é sem dúvida isto."27
A autora então finaliza o ensaio afirmando que ainda que os tempos em que vivia os EUA fossem de fracasso e tumulto envolvendo suas instituições, ainda assim, tinham em sua tradição cultural os instrumentos para enfrentar o futuro, segundo ela, "com uma certa dose de confiança."28
O Brasil e a questão do contrato social vertical
Como expusemos, o contrato social vertical é contraposto, por um lado, ao contrato social de natureza teológica, pois envolve os indivíduos e um poder laico e por outro lado, ao contrato social horizontal, pois o governo civil naquele não vem da obrigação mútua entre os indivíduos, mas do pacto destes em elevar apenas uma pessoa ou grupo a um poder que lhes é superior, poder ao qual estes indivíduos cederiam todos os direitos naturais individuais em troca de segurança e estabilidade.
O contrato social vertical, tal como aparece nesta referência de Arendt, obriga cada cidadão mais ao poder laico e secular do que uns aos outros. O governo civil, nesta versão de pacto social é o poder que se alça para além dos interesses individuais inconciliáveis para exercer, de cima, o poder e a força plena sobre os indivíduos que, saídos de um selvagem estado de natureza, reclamam por um poder superior que os regule. Sendo este poder superior a todos os envolvidos, regulando-os de cima, daí o termo vertical.
O autor que representa, no plano das idéias, esta versão do contrato social e que, de uma forma direta é o teórico que o respalda é Thomas Hobbes, filósofo e pensador político inglês. E sua principal obra política, o Leviatã, ou Matéria, Forma e Poder do Governo Eclesiástico e Civil Hobbes define, fundamenta e caracteriza a natureza racional de uma sociedade politicamente constituída. Façamos uma sucinta análise nesta obra a fim de apontar alguns dos fundamentos principais e as condições de possibilidade de um contrato social de tipo vertical.