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O conceito de desobediência civil na teoria do Brasil à luz das reflexões de Hannah Arendt

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28/01/2006 às 00:00
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Conclusões do ensaio

Passando a fazer suas considerações finais, Arendt resume suas objeções ao debate sobre a desobediência civil, o que transcrevemos:

"O maior erro do presente debate, a meu ver, a suposição de que estamos tratando com indivíduos que se colocam subjetivamente e conscientemente contra as leis e costumes da comunidade – suposição esta que é partilhada pelos defensores e detratores da desobediência civil. O caso é que estamos tratando com minorias organizadas, que se levantam contra maiorias supostamente inarticuladas, embora nada ‘silenciosas’. E eu considero inegável que estas maiorias tenham mudado em ânimo e opinião num grau espantoso, sob pressão das minorias.(...) Quanto a isto, talvez tenha sido lamentável que nossos debates tenham sido dominados em larga escala por juristas – advogados, juízes e outros homens da lei – pois para eles deve ser particularmente difícil reconhecer o contestador civil como membro de um grupo, ao invés de vê-lo como um transgressor individual e, deste modo, um réu em potencial da corte."[26]

Tendo a autora apontado, como vimos, a relação entre a desobediência civil e o espírito da leis norte-americanas, também aponta a impossibilidade de uma incorporação desta ao sistema normativa do país. Segundo ela, isto não se deve ao espírito das leis norte-americanas propriamente ditas mas da lei em geral, o que não impede, contudo, que haja um nicho para esta nas instituições de governo. O sistema normativo, por sua natureza não pode pressupor a sua negação, e quanto a isto não há objeções a serem levantadas, mas há que se conceder, onde se pretende falar em cidadania, o poder do consentimento real ao cidadão, ainda que este signifique a realização do dissenso.

No momento em que se falava em uma guerra ilegal, protegida pela doutrina da questão política, que se declarava incompetente em julgar a constitucionalidade da iniciativa bélica, os fundamentos primordiais do pacto social são suspensos e, com isso, entram em crise e depois em colapso. Daí se falar, como vimos, em perda da autoridade governamental e conseqüentemente a perda da autoridade da lei.

Visto como um ato coletivo e que envolve uma visão cidadã e horizontal do poder civil pode a desobediência civil, ser perfeitamente enquadrado nas instituições de poder político e das decisões judiciais e governamentais, ao invés de servirem apenas para a dramatização de situações de opressão vista de longe, para isso, segundo a autora, deve-se proceder a dois passos:

O primeiro passo é "obter o reconhecimento que é dado a inúmeros grupos de interesses especiais (grupos minoritários por definição) do país para as minorias contestadoras" ou seja, tratar da mesma forma contestadores civis e os grupos de pressão que tendem a influenciar as decisões do Congresso tanto pela opinião quanto pelo número de constituinte. E o segundo passo, segundo a autora, seria declarar oficialmente que "...a Primeira Emenda não cobre nem em linguagem nem em espírito o direito de associação na forma como ele é realmente praticado neste país (...)", ou seja, propõe ela que se construa um nicho constitucional para a contestação civil: " se há algo que exija urgentemente uma nova emenda constitucional e compense qualquer trabalho que se tenha é sem dúvida isto."[27]

A autora então finaliza o ensaio afirmando que ainda que os tempos em que vivia os EUA fossem de fracasso e tumulto envolvendo suas instituições, ainda assim, tinham em sua tradição cultural os instrumentos para enfrentar o futuro, segundo ela, "com uma certa dose de confiança."[28]


O Brasil e a questão do contrato social vertical

Como expusemos, o contrato social vertical é contraposto, por um lado, ao contrato social de natureza teológica, pois envolve os indivíduos e um poder laico e por outro lado, ao contrato social horizontal, pois o governo civil naquele não vem da obrigação mútua entre os indivíduos, mas do pacto destes em elevar apenas uma pessoa ou grupo a um poder que lhes é superior, poder ao qual estes indivíduos cederiam todos os direitos naturais individuais em troca de segurança e estabilidade.

O contrato social vertical, tal como aparece nesta referência de Arendt, obriga cada cidadão mais ao poder laico e secular do que uns aos outros. O governo civil, nesta versão de pacto social é o poder que se alça para além dos interesses individuais inconciliáveis para exercer, de cima, o poder e a força plena sobre os indivíduos que, saídos de um selvagem estado de natureza, reclamam por um poder superior que os regule. Sendo este poder superior a todos os envolvidos, regulando-os de cima, daí o termo vertical.

O autor que representa, no plano das idéias, esta versão do contrato social e que, de uma forma direta é o teórico que o respalda é Thomas Hobbes, filósofo e pensador político inglês. E sua principal obra política, o Leviatã, ou Matéria, Forma e Poder do Governo Eclesiástico e Civil Hobbes define, fundamenta e caracteriza a natureza racional de uma sociedade politicamente constituída. Façamos uma sucinta análise nesta obra a fim de apontar alguns dos fundamentos principais e as condições de possibilidade de um contrato social de tipo vertical.


Thomas Hobbes e o estado leviatânico.

Todo contratualista parte do pressuposto do conatus, ou seja, do estado de natureza onde só a sobrevivência, o permanecer existindo, demanda toda a ação dos homens. Para Hobbes, o que define tal estado é tanto o que este chama de Direito Natural, isto é, a faculdade do homem fazer o que quiser e puder fazer, ou ainda, o que os autores chamam de jus naturale, quanto a igualdade radical dos homens.

Da igualdade, segundo o autor, não vem o entendimento mútuo entre os indivíduos, pelo contrário, vem a desconfiança. Sendo iguais e tendo os mesmos fins, a saber, a sobrevivência, os homens tendem a se tornar inimigos. Neste estado de coisas, o homem entra em guerra com todos os homens tendo um só objetivo: subjugar o maior número de outros homens a fim de obter para si uma situação de segurança onde este não seja ameaçado por nenhuma das forças de outrem, conclui-se, pois, por dedução, que esta situação não pode ser alcançada por todos, motivo pelo qual há uma disposição perene de todos para a guerra. Uma guerra total portanto, de todos contra todos, o homem torna-se lobo do homem, todos os homens tornam-se inimigos de todos os homens. Diz ele:

"Em tal situação não há lugar para a indústria, pois seu futuro é incerto. Seguramente, não há cultivo de terra, nem navegação, nem uso das mercadorias que podem ser importadas pelo mar. Não há construções confortáveis. (...) Não há sociedade. (...) A vida do homem é solitária, pobre, sórdida, embrutecida e curta."[29]

Para o autor, neste estado de guerra de todos contra todos – ainda que este afirmava que tal estado jamais existiu de fato e plenamente – não existe justiça ou mesmo lei. Ele compreendia que tais coisas e as virtudes que a acompanham são inerentes à vida social e política e não à vida do indivíduo isoladamente. Movido por outras paixões, todavia, entre estas o medo da morte, o desejo daquelas coisas que são necessárias para uma vida confortável e a esperança de consegui-las por meio do trabalho e das noções de propriedade, "A razão sugere adequadas normas de paz, em torna das quais os homens podem chegar a um acordo."[30]

Que tipo de acordo a razão sugere? Segundo Hobbes, o homem deve renunciar aos direitos naturais inerentes à sua condição de indivíduo, ou seja, renunciar ao fazer ou omitir o que quiser para a sua preservação, enquanto todos os outros homens assim o fizerem. "Pois enquanto cada homem detiver seu direito de fazer tudo quanto queira, a condição de guerra será constante para todos."[31]

A renúncia, contudo, por si só, não estabelece a paz social a que se refere Hobbes, pois que garantia existirá de que os outros indivíduos assim o farão? Nenhuma. Assim, a renúncia tende, na visão do autor, a se tornar uma transferência deste jus naturale a um poder que não pode ser a de um outro indivíduo envolvido no pacto. Segundo ele, o estado inerente à natureza do homem em guerra contra todos os homens resulta em um pacto extremamente dependente da ação dos indivíduos, ou seja, qualquer suspeita razoável torna o pacto nulo.

Desta forma, segundo o inglês, "Se houver, entretanto, um poder comum situado acima dos contratantes, com direito e força suficiente para impor seu cumprimento, ele não é nulo."[32] Sendo as palavras algo muito tíbio para confirmar o cumprimento do pacto urge um poder que obrigue os envolvidos ao cumprimento deste.

Há de se notar, destarte, que tal poder, ou seja, o estado civil constituído por este pacto, não é ele mesmo participante do pacto. Esta é a diferença fundamental, acentuamos, entre esta versão do contrato e as outras. Este autoridade, portanto, constitui-se em um poder coercitivo garantidor do pacto. Para Hobbes, a única forma de se constituir um poder comum que seja capaz de defender a comunidade de ataques estrangeiros e de membros da própria comunidade de modo a garantir o trabalho e os frutos deste a todos os indivíduos é "conferir toda a força e poder a um homem, ou a uma assembléia de homens, que possa reduzir suas diversas vontades, por pluralidade de votos, a uma só vontade."[33]

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A maior conseqüência deste contrato pensado por Hobbes para os fins de nosso estudo é o seguinte: "Todos devem submeter suas vontades à vontade do representante e suas decisões à sua decisão."[34] Segundo Hobbes, esta é a geração do Leviatã, ou seja, do deus mortal que reina abaixo do deus eterno a que devemos toda a submissão já que suas decisões provêm da multidão reunida em uma só pessoa. Quando passa a discorrer sobre a natureza dos Estados gerados por instituição, o autor faz uma verdadeira teoria da impossibilidade do dissenso que, como foi visto, grosso modo, é uma conseqüência natural e racional dos pressupostos que ele levou em consideração. Ainda assim façamos um breve resumo deste aspecto.

Em primeiro lugar, segundo Hobbes, não pode haver dissenso pelo fato de que o pacto não pode levar em consideração nem eventos anteriores a este, isto é, qualquer fato que tenha a intenção de alterar o pacto, quanto os posteriores. Isto significa que uma vez constituído o contrato não pode alguém rompe-lo alegando divergência com o soberano, o titular do poder social, uma vez que é por meio deste pacto que ele se encontra neste poder. Para Hobbes, feito o pacto o soberano adquire um direito, e atentar contra este direito é atentar contra um direito adquirido, uma injustiça, portanto, passível da punição do soberano.

Em segundo lugar, para Hobbes, como já mencionamos, o pacto não ocorre entre os súditos e o soberano, mas entre os súditos uns com os outros. Sendo assim, não é justo, segundo ele, que se desobedeça qualquer ato do soberano alegando o descumprimento deste a qualquer pacto estabelecido. O soberano não estabeleceu pacto algum com ninguém, ele é apenas a força e o poder dos súditos que garante pelo medo e pelo terror a segurança destes mesmos súditos[35]. Existem algumas outras evidências nos textos hobbesianos, de sua negação a qualquer forma de dissenso ao Estado civil mas, por ora, satisfaçamo-nos com estas.

Por fim, notamos que existem grandes problemas na visão de Hobbes do contrato social mas que, como aponta Arendt, a principal é a de distanciar o indivíduo do poder. Hobbes avançou muito em sua teoria política, justificando-a com critérios mais racionais, condizentes com a época em que vivia, preterindo as explicações que faziam-na escrava do direito divino. A não-participação do cidadão no poder, contudo, a que resulta a visão de Hobbes do Estado civil em que a preocupação maior é sempre uma segurança extrema a despeito das injustiças causadas pela visão absolutista do poder, ainda é a crítica mais severa a ser feita tanto à sua teoria quanto à prática de Estado civil e uma sociedade como um todo nestes moldes.

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Sobre o autor
Joelton Nascimento

professor, especialista

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

NASCIMENTO, Joelton. O conceito de desobediência civil na teoria do Brasil à luz das reflexões de Hannah Arendt. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 939, 28 jan. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/7892. Acesso em: 27 abr. 2024.

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