Capa da publicação Desobediência civil no Brasil e Hannah Arendt
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O conceito de desobediência civil na teoria do Brasil à luz das reflexões de Hannah Arendt

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28/01/2006 às 00:00
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Thomas Hobbes e o estado leviatânico.

Todo contratualista parte do pressuposto do conatus, ou seja, do estado de natureza onde só a sobrevivência, o permanecer existindo, demanda toda a ação dos homens. Para Hobbes, o que define tal estado é tanto o que este chama de Direito Natural, isto é, a faculdade do homem fazer o que quiser e puder fazer, ou ainda, o que os autores chamam de jus naturale, quanto a igualdade radical dos homens.

Da igualdade, segundo o autor, não vem o entendimento mútuo entre os indivíduos, pelo contrário, vem a desconfiança. Sendo iguais e tendo os mesmos fins, a saber, a sobrevivência, os homens tendem a se tornar inimigos. Neste estado de coisas, o homem entra em guerra com todos os homens tendo um só objetivo: subjugar o maior número de outros homens a fim de obter para si uma situação de segurança onde este não seja ameaçado por nenhuma das forças de outrem, conclui-se, pois, por dedução, que esta situação não pode ser alcançada por todos, motivo pelo qual há uma disposição perene de todos para a guerra. Uma guerra total portanto, de todos contra todos, o homem torna-se lobo do homem, todos os homens tornam-se inimigos de todos os homens. Diz ele:

"Em tal situação não há lugar para a indústria, pois seu futuro é incerto. Seguramente, não há cultivo de terra, nem navegação, nem uso das mercadorias que podem ser importadas pelo mar. Não há construções confortáveis. (...) Não há sociedade. (...) A vida do homem é solitária, pobre, sórdida, embrutecida e curta."29

Para o autor, neste estado de guerra de todos contra todos – ainda que este afirmava que tal estado jamais existiu de fato e plenamente – não existe justiça ou mesmo lei. Ele compreendia que tais coisas e as virtudes que a acompanham são inerentes à vida social e política e não à vida do indivíduo isoladamente. Movido por outras paixões, todavia, entre estas o medo da morte, o desejo daquelas coisas que são necessárias para uma vida confortável e a esperança de consegui-las por meio do trabalho e das noções de propriedade, "A razão sugere adequadas normas de paz, em torna das quais os homens podem chegar a um acordo."30

Que tipo de acordo a razão sugere? Segundo Hobbes, o homem deve renunciar aos direitos naturais inerentes à sua condição de indivíduo, ou seja, renunciar ao fazer ou omitir o que quiser para a sua preservação, enquanto todos os outros homens assim o fizerem. "Pois enquanto cada homem detiver seu direito de fazer tudo quanto queira, a condição de guerra será constante para todos."31

A renúncia, contudo, por si só, não estabelece a paz social a que se refere Hobbes, pois que garantia existirá de que os outros indivíduos assim o farão? Nenhuma. Assim, a renúncia tende, na visão do autor, a se tornar uma transferência deste jus naturale a um poder que não pode ser a de um outro indivíduo envolvido no pacto. Segundo ele, o estado inerente à natureza do homem em guerra contra todos os homens resulta em um pacto extremamente dependente da ação dos indivíduos, ou seja, qualquer suspeita razoável torna o pacto nulo.

Desta forma, segundo o inglês, "Se houver, entretanto, um poder comum situado acima dos contratantes, com direito e força suficiente para impor seu cumprimento, ele não é nulo."32 Sendo as palavras algo muito tíbio para confirmar o cumprimento do pacto urge um poder que obrigue os envolvidos ao cumprimento deste.

Há de se notar, destarte, que tal poder, ou seja, o estado civil constituído por este pacto, não é ele mesmo participante do pacto. Esta é a diferença fundamental, acentuamos, entre esta versão do contrato e as outras. Este autoridade, portanto, constitui-se em um poder coercitivo garantidor do pacto. Para Hobbes, a única forma de se constituir um poder comum que seja capaz de defender a comunidade de ataques estrangeiros e de membros da própria comunidade de modo a garantir o trabalho e os frutos deste a todos os indivíduos é "conferir toda a força e poder a um homem, ou a uma assembléia de homens, que possa reduzir suas diversas vontades, por pluralidade de votos, a uma só vontade."33

A maior conseqüência deste contrato pensado por Hobbes para os fins de nosso estudo é o seguinte: "Todos devem submeter suas vontades à vontade do representante e suas decisões à sua decisão."34 Segundo Hobbes, esta é a geração do Leviatã, ou seja, do deus mortal que reina abaixo do deus eterno a que devemos toda a submissão já que suas decisões provêm da multidão reunida em uma só pessoa. Quando passa a discorrer sobre a natureza dos Estados gerados por instituição, o autor faz uma verdadeira teoria da impossibilidade do dissenso que, como foi visto, grosso modo, é uma conseqüência natural e racional dos pressupostos que ele levou em consideração. Ainda assim façamos um breve resumo deste aspecto.

Em primeiro lugar, segundo Hobbes, não pode haver dissenso pelo fato de que o pacto não pode levar em consideração nem eventos anteriores a este, isto é, qualquer fato que tenha a intenção de alterar o pacto, quanto os posteriores. Isto significa que uma vez constituído o contrato não pode alguém rompe-lo alegando divergência com o soberano, o titular do poder social, uma vez que é por meio deste pacto que ele se encontra neste poder. Para Hobbes, feito o pacto o soberano adquire um direito, e atentar contra este direito é atentar contra um direito adquirido, uma injustiça, portanto, passível da punição do soberano.

Em segundo lugar, para Hobbes, como já mencionamos, o pacto não ocorre entre os súditos e o soberano, mas entre os súditos uns com os outros. Sendo assim, não é justo, segundo ele, que se desobedeça qualquer ato do soberano alegando o descumprimento deste a qualquer pacto estabelecido. O soberano não estabeleceu pacto algum com ninguém, ele é apenas a força e o poder dos súditos que garante pelo medo e pelo terror a segurança destes mesmos súditos35. Existem algumas outras evidências nos textos hobbesianos, de sua negação a qualquer forma de dissenso ao Estado civil mas, por ora, satisfaçamo-nos com estas.

Por fim, notamos que existem grandes problemas na visão de Hobbes do contrato social mas que, como aponta Arendt, a principal é a de distanciar o indivíduo do poder. Hobbes avançou muito em sua teoria política, justificando-a com critérios mais racionais, condizentes com a época em que vivia, preterindo as explicações que faziam-na escrava do direito divino. A não-participação do cidadão no poder, contudo, a que resulta a visão de Hobbes do Estado civil em que a preocupação maior é sempre uma segurança extrema a despeito das injustiças causadas pela visão absolutista do poder, ainda é a crítica mais severa a ser feita tanto à sua teoria quanto à prática de Estado civil e uma sociedade como um todo nestes moldes.


A verticalidade na teoria do Brasil

Sérgio Buarque de Holanda, um dos mais notórios pensadores brasileiros inicia seu livro mais importante, Raízes do Brasil, um clássico de nascença conforme o chamou Antônio Cândido, mencionando a principal característica do povo brasileiro que, segundo ele, herdamos dos povos ibéricos: a cultura da personalidade individual. Diferentemente de seus vizinhos europeus os portugueses e espanhóis desenvolveram ao extremo o "valor próprio da pessoa humana, a autonomia de cada um dos homens em relação aos semelhantes no tempo e no espaço."36 Para eles, segundo Buarque de Holanda, o único valor verdadeiramente plausível ao homem é inferido onde este não precise dos demais, onde sozinho se baste e não necessite dos outros.

Esta característica, que segundo o autor foi engrandecida pela poesia, recomendada pela moral e sancionada pelo estado, é a razão maior da fraqueza e da insuficiência das formas de organização social dos ibéricos. Toda a sorte de associações que impliquem solidariedade e coordenação destes povos é extremamente tíbia e inexpressiva. Os valores ancorados apenas no mérito pessoal e nas responsabilidades individuais sempre foram dominantes na vida cultural brasileira, herança do passado ibérico. "Foi essa mentalidade, justamente" diz o autor, que se tornou o maior óbice, entre eles, ao espírito de organização espontânea, tão característica de povos protestantes, e sobretudo de calvinistas."37

A forma como o autor inicia sua obra é já um prenúncio de suas conclusões. O que o autor afirma, em tom conclusivo, é o ponto principal de nossa tese, que remete-nos a relacionar suas conclusões, baseadas em farta documentação histórica, com o pano de fundo arendtiano e mais atrás na fundamentação de Hobbes. Ele diz o seguinte:

"É dela que resulta largamente a singular tibieza das formas de organização, de todas as associações que impliquem solidariedade e ordenação entre esses povos. Em terra onde todos são barões não é possível acordo coletivo durável, a não ser por uma força exterior respeitável e temida."38 (grifo nosso)

Uma característica do povo ibérico, aliás, a mais importante, segundo Buarque de Holanda, de todas elas, que passou a fazer parte do arcabouço cultural brasileiro, revela-se na pouca capacidade de associação voluntária e na própria deficiência de se agir politicamente. E se levarmos em consideração a idéia de Arendt de que a aptidão política mesma, advém desta capacidade de constituição e desenvolvimento do espaço público que, por sua vez, é fruto somente da possibilidade das pessoas projetarem os valores sociais na coletividade e na verdade nela e dela surgida e não na vida mental do indivíduo consigo mesmo, veremos que o que falta aos brasileiros é o que é mais importante nas formas políticas de existência.

Esta inaptidão política fundamental, chamemos assim, resulta, se for compreendido o nexo acima exposto entre estes autores, na existência de um contrato social com tendências fortemente direcionadas para a versão vertical na vida política brasileira. Fato este que explicaria, de certa forma, a tendência autoritária onipresente da história do Brasil e sua constante recaída em ditaduras autoritárias.

Retomando o tema no último capítulo, Buarque de Holanda, após propor a superação do conflito entre o liberalismo e o caudilhismo no Brasil, afirma que:

"Essa vitória nunca se consumará enquanto não se liquidem, por sua vez, os fundamentos personalistas e, por menos que o pareçam, aristocráticos, onde ainda assenta nossa vida social."39

O contrato social no Brasil possui tendência a ser predominantemente vertical pela inaptidão do povo e da cultura em estabelecer espaços políticos onde se construa o que Arendt chamava de pensamento plural. Esta experiência, garante ela, advém exatamente do oposto ao que Buarque de Holanda apresenta como as características mais presentes nos povos ibéricos e que foram legado aos brasileiros: a adoração à personalidade humana autônoma. Discorrendo sobre estas dificuldades para a efetivação da democracia em terras hispânicas, uma das explicações que dá o autor brasileiro é a maior influência das teses tomistas defendidas pelo clero católico. Advindas das dissonâncias entre a Península Ibérica e o restante da Europa, estas teses terminam na conclusão de que sendo o homem imortal, a este está destinada a eternidade das cidades celestes, perfeitas e governadas pelo próprio Criador. Ora, se assim o é, deve o homem preservar antes a si mesmo do que um mundo corrupto e corruptível, transitório e ilusório. A mundanidade portanto, e estas conclusões cristãs se deram com maior força entre os países hispânicos, segundo Buarque de Holanda, termina sendo algo que se deve relegar a segundo plano pois trata-se de um esforço vão cultivar um espaço que será, tão logo se dê o reino de Deus, destruído e substituído pelo cidade celestial, perfeita e eterna.

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De acordo com o trecho acima transcrito o autor brasileiro identificava, muito acertadamente, o fim desta desventura cultural que minou a possibilidade de maiores mobilizações sociais e políticas e da sociedade como um todo, entregando sempre o país todo em poucas mãos e quando não nas mãos de ditaduras, ao fim destas formas arcaicas de sobrevivência e ao advento de uma democracia real.

Quando olhamos para o Leviatã de Hobbes notamos que ele nasce justamente da impossibilidade dos contratantes em estabelecer, entre eles mesmos, quem e de que forma se dará o governo civil. É aí que surge o poder acima destes que os regularão independentemente de suas vontades e consentimento. Na terra de barões, como afirmou Buarque de Holanda, onde todos são cultores de uma personalidade individual e de regalias da vida privada abastada, e de onde é difícil distinguir entre o público e o privado apenas um poder temido por todos pode estabelecer a ordem. O medo e o terror, como vimos, são as alavancas fundamentais das engrenagens que o Leviatã põe em movimento. Surge então, no seio da constituição histórica brasileira, sua predisposição à versão vertical do contrato social.


A desobediência civil e a cultura política brasileira

Se o contrato social brasileiro tem em si tendências mais verticais que horizontais, conforme a classificação feita por Arendt, e se como vimos em Hobbes, em um contrato social que se elege um soberano com seus concidadãos não se pode dele dissentir, a desobediência civil neste contexto, perde seu solo e sentido? Antes de concluirmos tal coisa procederemos a algumas reflexões.

A lei é uma construção que fica a cargo do Poder Legislativo que é composto obedecendo aos princípios da representatividade, de onde se chega à conclusão apressada de que, por isso, todos os cidadãos devem obedecer às leis pois a elas aquiesceram quando escolheram seus representantes. A questão, portanto, repousa na legitimidade e na efetividade do regime representativo admitido por nossa Constituição.

"Um regime se diz representativo quando os governantes ou parte deles, exercem sua competência não em virtude de direito próprio, mas em razão de sua qualidade de representantes geralmente obtida mediante eleição e apenas por um certo prazo"40.

Contudo, segundo assevera Maria Garcia41, idéia a que nos apegamos plenamente, é que uma das características do mandato representativo na forma com que se pratica nos dias de hoje é de um mandato imperativo, calcada basicamente na independência do representante em relação ao representado, têm suas faculdades indelegáveis e gozam de inúmeras imunidades no exercício de seus cargos.

"O que se constata, portanto, através da experiência e dos tempos é a insuficiência atual dos mecanismos para a proteção da cidadania: a representatividade apresenta engrenagens viciadas e é posta em dúvida a autenticidade da representação, a correspondência possível do eleitor-cidadão e de seu mandatário."42

Remetendo-nos de volta a Buarque de Holanda, defendemos a tese de que no Brasil, bem como nas demais nações da América do Sul, a principal razão da inexistência de autenticidade do regime representativo parece ser a construção de uma tessitura social, como já mencionamos, em uma estrutura vertical. Estrutura vertical esta, fruto da herança do autoritarismo paternalista das noções ibéricas contido no culto à personalidade individual a despeito das formas coletivas e associativas de organização social.

O dissenso, e conseqüentemente, a desobediência civil, neste quadro, é problemático. Muito mais do que nos países de tendências associativas e representativas como os EUA e Inglaterra, de onde se extrai a própria essência da contestação civil. Todavia, é inegável a influência dos modos de vida social e política destes países por aqui. A Constituição Federal e não só ela, tem evidentes sinais da influência da constituição americana43, como veremos a seguir, urge, contudo, que a esta influência seja somada a compreensão acerca da natureza de contestação do cidadão, como tal, que configura a desobediência civil e a inserção destas em nossos quadros teóricos, políticos e jurídicos.

A onipresente dicotomia entre a justiça e segurança jurídica, ou ainda, entre a concepção dos valores objetivos de uma sociedade em um determinado tempo e a obediência e o funcionamento efetivo e eficaz das normas jurídicas positivas, dicotomia esta sempre suscitada por juristas e jurisfilósofos, deve, portanto pender para a primeira. Deve-se, sob pena de tiranização legal, encontrar um nicho constitucional para a defesa do cidadão contra o Estado e sua eventual opressão.

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Sobre o autor
Joelton Nascimento

professor, especialista

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

NASCIMENTO, Joelton. O conceito de desobediência civil na teoria do Brasil à luz das reflexões de Hannah Arendt. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 941, 28 jan. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/7892. Acesso em: 23 nov. 2024.

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