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O conceito de desobediência civil na teoria do Brasil à luz das reflexões de Hannah Arendt

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28/01/2006 às 00:00
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A verticalidade na teoria do Brasil

Sérgio Buarque de Holanda, um dos mais notórios pensadores brasileiros inicia seu livro mais importante, Raízes do Brasil, um clássico de nascença conforme o chamou Antônio Cândido, mencionando a principal característica do povo brasileiro que, segundo ele, herdamos dos povos ibéricos: a cultura da personalidade individual. Diferentemente de seus vizinhos europeus os portugueses e espanhóis desenvolveram ao extremo o "valor próprio da pessoa humana, a autonomia de cada um dos homens em relação aos semelhantes no tempo e no espaço."[36] Para eles, segundo Buarque de Holanda, o único valor verdadeiramente plausível ao homem é inferido onde este não precise dos demais, onde sozinho se baste e não necessite dos outros.

Esta característica, que segundo o autor foi engrandecida pela poesia, recomendada pela moral e sancionada pelo estado, é a razão maior da fraqueza e da insuficiência das formas de organização social dos ibéricos. Toda a sorte de associações que impliquem solidariedade e coordenação destes povos é extremamente tíbia e inexpressiva. Os valores ancorados apenas no mérito pessoal e nas responsabilidades individuais sempre foram dominantes na vida cultural brasileira, herança do passado ibérico. "Foi essa mentalidade, justamente" diz o autor, que se tornou o maior óbice, entre eles, ao espírito de organização espontânea, tão característica de povos protestantes, e sobretudo de calvinistas."[37]

A forma como o autor inicia sua obra é já um prenúncio de suas conclusões. O que o autor afirma, em tom conclusivo, é o ponto principal de nossa tese, que remete-nos a relacionar suas conclusões, baseadas em farta documentação histórica, com o pano de fundo arendtiano e mais atrás na fundamentação de Hobbes. Ele diz o seguinte:

"É dela que resulta largamente a singular tibieza das formas de organização, de todas as associações que impliquem solidariedade e ordenação entre esses povos. Em terra onde todos são barões não é possível acordo coletivo durável, a não ser por uma força exterior respeitável e temida."[38] (grifo nosso)

Uma característica do povo ibérico, aliás, a mais importante, segundo Buarque de Holanda, de todas elas, que passou a fazer parte do arcabouço cultural brasileiro, revela-se na pouca capacidade de associação voluntária e na própria deficiência de se agir politicamente. E se levarmos em consideração a idéia de Arendt de que a aptidão política mesma, advém desta capacidade de constituição e desenvolvimento do espaço público que, por sua vez, é fruto somente da possibilidade das pessoas projetarem os valores sociais na coletividade e na verdade nela e dela surgida e não na vida mental do indivíduo consigo mesmo, veremos que o que falta aos brasileiros é o que é mais importante nas formas políticas de existência.

Esta inaptidão política fundamental, chamemos assim, resulta, se for compreendido o nexo acima exposto entre estes autores, na existência de um contrato social com tendências fortemente direcionadas para a versão vertical na vida política brasileira. Fato este que explicaria, de certa forma, a tendência autoritária onipresente da história do Brasil e sua constante recaída em ditaduras autoritárias.

Retomando o tema no último capítulo, Buarque de Holanda, após propor a superação do conflito entre o liberalismo e o caudilhismo no Brasil, afirma que:

"Essa vitória nunca se consumará enquanto não se liquidem, por sua vez, os fundamentos personalistas e, por menos que o pareçam, aristocráticos, onde ainda assenta nossa vida social."[39]

O contrato social no Brasil possui tendência a ser predominantemente vertical pela inaptidão do povo e da cultura em estabelecer espaços políticos onde se construa o que Arendt chamava de pensamento plural. Esta experiência, garante ela, advém exatamente do oposto ao que Buarque de Holanda apresenta como as características mais presentes nos povos ibéricos e que foram legado aos brasileiros: a adoração à personalidade humana autônoma. Discorrendo sobre estas dificuldades para a efetivação da democracia em terras hispânicas, uma das explicações que dá o autor brasileiro é a maior influência das teses tomistas defendidas pelo clero católico. Advindas das dissonâncias entre a Península Ibérica e o restante da Europa, estas teses terminam na conclusão de que sendo o homem imortal, a este está destinada a eternidade das cidades celestes, perfeitas e governadas pelo próprio Criador. Ora, se assim o é, deve o homem preservar antes a si mesmo do que um mundo corrupto e corruptível, transitório e ilusório. A mundanidade portanto, e estas conclusões cristãs se deram com maior força entre os países hispânicos, segundo Buarque de Holanda, termina sendo algo que se deve relegar a segundo plano pois trata-se de um esforço vão cultivar um espaço que será, tão logo se dê o reino de Deus, destruído e substituído pelo cidade celestial, perfeita e eterna.

De acordo com o trecho acima transcrito o autor brasileiro identificava, muito acertadamente, o fim desta desventura cultural que minou a possibilidade de maiores mobilizações sociais e políticas e da sociedade como um todo, entregando sempre o país todo em poucas mãos e quando não nas mãos de ditaduras, ao fim destas formas arcaicas de sobrevivência e ao advento de uma democracia real.

Quando olhamos para o Leviatã de Hobbes notamos que ele nasce justamente da impossibilidade dos contratantes em estabelecer, entre eles mesmos, quem e de que forma se dará o governo civil. É aí que surge o poder acima destes que os regularão independentemente de suas vontades e consentimento. Na terra de barões, como afirmou Buarque de Holanda, onde todos são cultores de uma personalidade individual e de regalias da vida privada abastada, e de onde é difícil distinguir entre o público e o privado apenas um poder temido por todos pode estabelecer a ordem. O medo e o terror, como vimos, são as alavancas fundamentais das engrenagens que o Leviatã põe em movimento. Surge então, no seio da constituição histórica brasileira, sua predisposição à versão vertical do contrato social.


A desobediência civil e a cultura política brasileira

Se o contrato social brasileiro tem em si tendências mais verticais que horizontais, conforme a classificação feita por Arendt, e se como vimos em Hobbes, em um contrato social que se elege um soberano com seus concidadãos não se pode dele dissentir, a desobediência civil neste contexto, perde seu solo e sentido? Antes de concluirmos tal coisa procederemos a algumas reflexões.

A lei é uma construção que fica a cargo do Poder Legislativo que é composto obedecendo aos princípios da representatividade, de onde se chega à conclusão apressada de que, por isso, todos os cidadãos devem obedecer às leis pois a elas aquiesceram quando escolheram seus representantes. A questão, portanto, repousa na legitimidade e na efetividade do regime representativo admitido por nossa Constituição.

"Um regime se diz representativo quando os governantes ou parte deles, exercem sua competência não em virtude de direito próprio, mas em razão de sua qualidade de representantes geralmente obtida mediante eleição e apenas por um certo prazo"[40].

Contudo, segundo assevera Maria Garcia[41], idéia a que nos apegamos plenamente, é que uma das características do mandato representativo na forma com que se pratica nos dias de hoje é de um mandato imperativo, calcada basicamente na independência do representante em relação ao representado, têm suas faculdades indelegáveis e gozam de inúmeras imunidades no exercício de seus cargos.

"O que se constata, portanto, através da experiência e dos tempos é a insuficiência atual dos mecanismos para a proteção da cidadania: a representatividade apresenta engrenagens viciadas e é posta em dúvida a autenticidade da representação, a correspondência possível do eleitor-cidadão e de seu mandatário."[42]

Remetendo-nos de volta a Buarque de Holanda, defendemos a tese de que no Brasil, bem como nas demais nações da América do Sul, a principal razão da inexistência de autenticidade do regime representativo parece ser a construção de uma tessitura social, como já mencionamos, em uma estrutura vertical. Estrutura vertical esta, fruto da herança do autoritarismo paternalista das noções ibéricas contido no culto à personalidade individual a despeito das formas coletivas e associativas de organização social.

O dissenso, e conseqüentemente, a desobediência civil, neste quadro, é problemático. Muito mais do que nos países de tendências associativas e representativas como os EUA e Inglaterra, de onde se extrai a própria essência da contestação civil. Todavia, é inegável a influência dos modos de vida social e política destes países por aqui. A Constituição Federal e não só ela, tem evidentes sinais da influência da constituição americana[43], como veremos a seguir, urge, contudo, que a esta influência seja somada a compreensão acerca da natureza de contestação do cidadão, como tal, que configura a desobediência civil e a inserção destas em nossos quadros teóricos, políticos e jurídicos.

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A onipresente dicotomia entre a justiça e segurança jurídica, ou ainda, entre a concepção dos valores objetivos de uma sociedade em um determinado tempo e a obediência e o funcionamento efetivo e eficaz das normas jurídicas positivas, dicotomia esta sempre suscitada por juristas e jurisfilósofos, deve, portanto pender para a primeira. Deve-se, sob pena de tiranização legal, encontrar um nicho constitucional para a defesa do cidadão contra o Estado e sua eventual opressão.


Conclusão

Findado nosso estudo, postulamos que se for válido o liame que traçamos entre a tese hobbesiana das formas do estado leviatânico relacionada às conclusões de Sérgio Buarque de Holanda sobre as formas culturais de organização social brasileira na segunda metade do século XX e da concepção de contestação civil em Arendt, a desobediência civil não só é legítima como um instrumento de luta contra um Estado ou outras forças de opressão que atentam contra os direitos e garantias inerentes à cidadania, como é necessária à atual horizontalização do contrato social brasileiro.

Não se trata, portanto, de importar normas e esperar os resultados destas na realidade social. Trata-se, ao invés disso, de buscar o nicho concreto onde se deu a norma e as possibilidades deste movimento normativo na facticidade. Como afirmou Hannah Arendt em seu ensaio, devemos analisar o que a lei pode e o que ela não pode fazer. A CF/88, e não só o seu art. 5.º, é de inspiração norte-americana, mas em que sentido, poderemos perguntar, a desobediência civil também não o é? E se a CF/88 é a nossa Constituição "cidadã", porque não absorver a cidadania plena que inclui também a possibilidade real de dissenso, ou seja, a desobediência civil?

A conclusão que chegamos, respondendo a estas questões é a seguinte:

A desobediência civil é legítima, pois se encontra inserida no próprio conceito de cidadania, que como afirma Arendt, é o direito a ter direitos. Tendo como pontos basilares o modelo federativo de Estado e o exercício democrático do governo pelo Estado, que é de Direito, conforme proclama a Constituição e que, sendo Estado Democrático de Direito implica, numa República que se constitui em Estado (não é constituída pelo Estado – ainda que Democrático de Direito, conforme lembra Garcia), o faz pela afirmação da cidadania como um dos seus fundamentos. Se o cidadão, portanto, é que constitui o Estado civil, pode ele contestar sua legitimidade por meio de um direito que tem, constante não de uma norma meramente exposta no art. 5.º e seus incisos, mas na abertura colocada no § 2.º. Ou seja, existe um nicho constitucional para a desobediência civil: este é seu próprio fundamento, a saber, a cidadania.

A desobediência civil é também necessária por outro lado, pois é em sua possível existência no quadro político-social brasileiro que se procederá a uma autêntica horizontalização do contrato social. Mais do que isso: é através do consenso real e factual, que inclui o dissenso trazido pela desobediência civil que se pode caminhar para uma autêntica possibilidade democrática a despeito da cultura brasileira, legatária de instituições sociais hostis aos princípios democráticos reais. A cultura, entretanto, é dinâmica e as possibilidades democráticas abertas pela Constituição Federal Brasileira devem ser levadas até uma facticidade plena, sob pena de se tornar mais uma enésima forma de se propor mudanças por meio de panacéias jurídicas, de leis sem eficácia alguma e que servem apenas com orientações vagamente piedosas, o que, até então, parece estar se sucedendo desde os tempos do Império.

Concluímos nosso estudo defendendo a existência da desobediência civil no universo político e jurídico brasileiro justamente no sentido de proporcionar a tão esperada vigência e eficácia da nossa Constituição Federal da República Federativa do Brasil, no reino da facticidade. Esta só se dará numa sociedade estabelecida em con-sonância com tais preceitos, ou seja, uma sociedade democrática que institui, horizontalmente, tendo a cidadania como fundamento, um Estado Democrático de Direito.

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Sobre o autor
Joelton Nascimento

professor, especialista

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

NASCIMENTO, Joelton. O conceito de desobediência civil na teoria do Brasil à luz das reflexões de Hannah Arendt. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 939, 28 jan. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/7892. Acesso em: 19 abr. 2024.

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