Resumo: O presente trabalho tem por objetivo demonstrar, de forma fundamentada, que a arrematação de bens imóveis em hasta pública configura forma originária de aquisição da propriedade, entendimento essencial para a segurança jurídica dos arrematantes e para a efetividade do sistema judicial. O processo de arrematação, previsto no Código de Processo Civil e em outros diplomas, como a Consolidação das Leis do Trabalho, depara-se com a ausência de legislação específica que o reconheça expressamente como modalidade de aquisição originária, sujeitando o arrematante à insegurança gerada por entendimentos jurisprudenciais divergentes. Tal lacuna acarreta instabilidade jurídica e ineficiência do instituto, resultando em anulações de execuções e na frustração do objetivo fundamental da arrematação: a satisfação do credor diante do débito executado.
Palavras-chave: Arrematação; Hasta Pública; Aquisição Originária.
INTRODUÇÃO
Inicialmente, cabe esclarecer alguns conceitos essenciais para a precisa compreensão do tema abordado, quais sejam: o que é arrematação em hasta pública, por que ela é importante, qual é sua base jurídica, bem como a diferença entre aquisição originária e aquisição derivada e as consequências jurídicas decorrentes desse tema quando relacionado à arrematação em hasta pública.
A segurança jurídica de quem realiza um lance em hasta pública, com o intuito de adquirir um bem móvel ou imóvel, depende de uma compreensão clara sobre o tema, uma vez que dessa definição decorrerão o resultado jurídico e as respectivas consequências da arrematação.
O presente trabalho demonstrará a relevância da matéria e, sobretudo, a importância de se considerar a arrematação como forma de aquisição originária. Entendimento diverso pode comprometer a coerência do sistema jurídico, ocasionando consequências extremamente negativas para o regime de execução judicial.
Ao ser reconhecida como forma originária de aquisição, a arrematação confere maior segurança e tranquilidade ao arrematante, além de fortalecer a confiança da sociedade em um sistema jurídico eficiente e pacificado. Tal reconhecimento proporciona efetiva segurança às relações civis e imprime maior celeridade ao processo de execução, reduzindo significativamente os casos de anulação de hastas públicas por inexequibilidade do registro da carta de arrematação.
A metodologia de pesquisa adotada basear-se-á em ampla análise doutrinária e jurisprudencial dos tribunais brasileiros, bem como no exame de julgamentos específicos.
1. POSSE E PROPRIEDADE NA LEGISLAÇÃO BRASILEIRA
A propriedade privada consolidou-se como direito básico e fundamental do indivíduo e da pessoa jurídica na Constituição Federal de 1988, em seu art. 5º, inciso XXII, que estabelece: “É garantido o direito de propriedade”. No entanto, no mesmo diploma, o inciso XXIII assevera que a propriedade “atenderá a sua função social”.
Na sociedade capitalista moderna, a propriedade assume uma nova função, não relacionada diretamente com seu objetivo ou finalidade original, mas com a garantia de operações e contratos celebrados entre titulares de direitos. É muito comum que, ao contratar com outrem, apresente-se como garantia da operação a propriedade de algum bem móvel ou imóvel — sendo este último preferido na maioria dos casos, em razão de suas características peculiares e dos procedimentos mais rigorosos exigidos para a efetiva transferência de domínio.
Tal prática é bastante usual, por exemplo, em contratos acessórios de fiança, especialmente em operações de locação imobiliária, quando alguém se oferece para garantir a locação e apresenta ao locador, como prova de sua capacidade de assumir tal encargo, o título de propriedade de um bem imóvel. Sendo o fiador devedor solidário por força de lei e, não havendo o cumprimento voluntário da obrigação assumida, poderá ter seu patrimônio penhorado para a satisfação forçada da obrigação.
Por outro lado, o Código Civil distingue posse e propriedade de forma muito clara, no art. 1.196: “Considera-se possuidor todo aquele que tem de fato o exercício, pleno ou não, de algum dos poderes inerentes à propriedade”. Embora a posse também receba proteção do Estado, ela não pode ser penhorada para a satisfação de crédito.
Há, portanto, uma nítida diferença entre posse e propriedade. Quem detém a propriedade possui todos os poderes inerentes à posse, mas o inverso não é verdadeiro. Isso ocorre porque o proprietário, além do uso e da fruição, tem a faculdade de dispor do seu patrimônio — prerrogativa que o mero possuidor não possui.
É justamente essa faculdade de dispor, que não se confunde com a simples vontade, que interessa ao credor na relação contratual. O Código de Processo Civil dispõe, em seu art. 789: “O devedor responde com todos os seus bens presentes e futuros para o cumprimento de suas obrigações, salvo as restrições estabelecidas em lei.”
Tal dispositivo consagra o princípio da responsabilidade patrimonial do devedor, segundo o qual ele responde com a universalidade de seus bens pelas dívidas contraídas ou obrigações assumidas. Assim, havendo descumprimento voluntário e injustificado da obrigação, confere-se ao credor a faculdade de requerer a penhora do patrimônio do devedor, independentemente de sua vontade, para a satisfação do débito.
Competirá ao Estado-juiz, que exerce o exclusivo “monopólio da força legítima” — como ensina Ângelo de Souza Junior (2017, p. 24) —, mediante provocação do interessado, proceder à constrição e à penhora do bem, levando-o a leilão público. Nesse leilão, aquele que oferecer o maior lance adquire o bem, convertendo-o em dinheiro destinado ao pagamento do crédito do exequente. Caso não haja interessados, o exequente poderá requerer a adjudicação do bem, que passará a integrar seu patrimônio, sendo retirado da esfera patrimonial do executado.
2. FORMAS DE AQUISIÇÃO DA PROPRIEDADE.
A doutrina reconhece duas formas de aquisição da propriedade, sendo necessário distingui-las e compreender seus efeitos no mundo jurídico, a fim de também entender suas repercussões sobre a arrematação. A propriedade pode ser adquirida de forma originária ou derivada, conforme se passa a conceituar.
De maneira resumida, a aquisição originária ocorre quando o bem adquirido não mantém qualquer vínculo jurídico com o antigo titular, ao passo que a aquisição derivada se caracteriza pela existência desse vínculo. São exemplos de aquisição originária a usucapião e a acessão natural, situações em que o bem não traz consigo qualquer relação jurídica anterior com o proprietário ou possuidor precedente. Nessa hipótese, conforme ensina Fábio Pinheiro Gazzi (2017), “a análise do Registrador limitar-se-á às formalidades do título que conferem a transmissão da propriedade.”
Por outro lado, a aquisição derivada se dá, entre outras formas, pela compra e venda, doação e transmissão causa mortis, em que o bem mantém relação jurídica com seu antigo possuidor ou proprietário. Nesses casos, como observa o autor mencionado, “a análise pelo registrador será mais ampla, tanto no aspecto formal como material; sendo, neste caso, possível exigir o recolhimento dos impostos, a análise do conteúdo para a qualificação das partes e exata extensão da propriedade etc.” (GAZZI, 2017).
Cabe destacar, ainda, que eventuais débitos de natureza fiscal ou obrigações civis anteriores ao ato — e vinculados ao bem pelo princípio propter rem, segundo o qual a obrigação acompanha o bem — são transmitidos ao adquirente, que não poderá se eximir de assumi-los.
3. O REGISTRO IMOBILIÁRIO BRASILEIRO
O sistema brasileiro de registros imobiliários é regido pela Lei nº 6.015/1973, denominada Lei dos Registros Públicos. Essa norma estabelece que os imóveis sejam registrados em cartórios criados especificamente para esse fim — os Cartórios de Registro de Imóveis —, sob a responsabilidade de um agente concursado, designado oficial de registro de imóveis.
Não se deve confundir as atribuições dos cartórios de registro de imóveis com as dos tabeliães, pois suas funções são distintas. Enquanto os tabeliães se encarregam de lavrar escrituras, inventários, divórcios extrajudiciais, reconhecimentos de firma e autenticações, entre outras atividades, os cartórios de registro de imóveis cuidam exclusivamente dos registros e averbações relativos aos bens imóveis situados na área de sua circunscrição administrativa.
Cada cartório de registro de imóveis possui competência exclusiva sobre uma determinada porção geográfica da comarca ou região onde o imóvel está localizado. Assim, cada imóvel no Brasil terá seu registro assentado em um único cartório, o que evita conflitos e duplicidades de informações. Trata-se, portanto, de um sistema seguro, dotado de peculiaridades próprias.
Para que um imóvel seja registrado, deve possuir título hábil e atender às exigências legais pertinentes. Diversos são os títulos que conferem ou transferem a propriedade e que podem ser levados a registro, destacando-se a escritura pública de compra e venda como o mais comum. Contudo, também podem ser registrados contratos particulares (quando autorizados por lei), formais de partilha, cartas de adjudicação e, no caso específico deste estudo, a carta de arrematação.
Esta não se confunde com o auto de arrematação, documento emitido ao final do leilão, no qual o leiloeiro certifica a regularidade formal do procedimento. A carta de arrematação, por sua vez, é expedida somente após o trânsito em julgado das decisões que possam impugnar o ato — como embargos à arrematação ou embargos de terceiros — e constitui título executivo judicial, formado por cópias autênticas das peças processuais que demonstram o cumprimento da execução. Sua autenticidade é certificada pela assinatura do juiz responsável pela vara de origem.
A carta de arrematação é, portanto, o título hábil a transferir, por ordem judicial e força legal, a propriedade ao arrematante, que deverá comprovar o pagamento do lance, o recolhimento do Imposto de Transmissão de Bens Imóveis (ITBI) e o adimplemento das eventuais dívidas incidentes sobre o bem, conforme previsto no edital do leilão. Após análise formal e material, o oficial registrador efetuará o registro da carta na matrícula individualizada do imóvel.
Caso o oficial negue o ingresso do título e o apresentante não concorde com a decisão, este poderá suscitar dúvida perante o juiz corregedor permanente, em procedimento administrativo. Caberá ao magistrado, mediante decisão fundamentada, julgar a dúvida e decidir sobre a viabilidade do registro.
Um dos pilares do direito registral é o princípio da continuidade registral ou trato sucessivo. Esse princípio estabelece que, para um título ser registrado, deve existir encadeamento lógico e cronológico entre os registros anteriores, de modo que o alienante conste como proprietário na matrícula imediatamente anterior. Assim, evita-se que alguém que nunca foi titular do direito tente alienar bem alheio.
Cada novo registro, portanto, vincula-se necessariamente ao anterior, demonstrando o motivo e a intenção da transmissão da propriedade — tal qual elos de uma corrente. O princípio encontra-se previsto no art. 237 da Lei nº 6.015/1973:
“Ainda que o imóvel esteja matriculado, não se fará registro que dependa da apresentação de título anterior, a fim de que se preserve a continuidade do registro.”
Quando a aquisição ocorre de forma derivada, é indispensável comprovar a regularidade da cadeia dominial. O registro do alienante deve figurar imediatamente antes do registro do adquirente; caso contrário, o novo registro será inviável por violação ao princípio da continuidade.
Nas hipóteses de compra e venda, o adquirente deve comprovar que adquiriu o bem de boa-fé e mediante título legítimo, apresentando as certidões necessárias que demonstrem inexistência de ônus, gravames ou restrições — como fraude à execução, à credores ou cláusulas de inalienabilidade.
O mesmo não ocorre quando a aquisição é originária. Nessa modalidade, independentemente da existência de registro anterior, o titular que comprovar o cumprimento dos requisitos legais pode obter sentença judicial declaratória de domínio, habilitando-se ao registro da propriedade em seu nome.
Destaca-se, nesse contexto, a usucapião como a principal forma de aquisição originária. Provado o exercício de posse mansa e pacífica pelo prazo legal, o possuidor adquire a propriedade independentemente de quem tenha sido o proprietário anterior. Nesse caso, não se exige a prova de inexistência de fraude contra credores ou contra a execução, bastando o cumprimento dos requisitos legais. A sentença judicial que reconhece o direito será o título hábil a ser levado ao cartório de registro de imóveis para o registro da propriedade.
4. A ARREMATAÇÃO EM HASTA PÚBLICA
O sistema jurídico brasileiro prevê, em seus institutos, que o devedor garantirá, com a universalidade de seus bens, a satisfação das dívidas ou obrigações assumidas em favor de seu credor (art. 789 do CPC). Quando o cumprimento de uma obrigação contratual não ocorre de forma voluntária, e o devedor possui patrimônio dotado de valor econômico, incide o instituto da penhora judicial, previsto no processo de execução.
A penhora tem por finalidade a expropriação forçada de bens do devedor pelo Estado, que os levará a leilão público — ou, como se denomina tradicionalmente, hasta pública —, ato pelo qual o bem é submetido à alienação forçada em favor de quem oferecer o maior lance.
O lance ofertado em leilão representa uma proposta de preço feita por interessado na aquisição do bem expropriado. Uma vez declarada vencedora a oferta e homologada judicialmente, o bem é considerado arrematado, isto é, adquirido em hasta pública por determinada pessoa.
Dessa forma, o patrimônio do devedor é retirado de sua esfera e convertido em dinheiro, que será entregue ao credor para a satisfação da obrigação não cumprida espontaneamente. Pode-se, assim, definir hasta pública como “um ato da Justiça pelo qual são alienados (isto é, vendidos) bens do devedor, para que, com o produto da venda, sejam pagos o credor, as custas e as despesas do processo de execução.”
A hasta pública pode ter origem em processos cíveis, trabalhistas, criminais ou tributários, sempre que se faça necessário transformar um bem — móvel ou imóvel — em numerário, de modo a satisfazer o crédito do exequente. No caso em estudo, interessa-nos especialmente a hasta pública de bens imóveis, independentemente da natureza do processo que a tenha originado.
5. A HASTA PÚBLICA E SUA FUNÇÃO SOCIAL
As relações sociais são balizadas por normas jurídicas que as orientam e delimitam seus contornos. Entre os pilares do direito brasileiro está a garantia de que “o devedor responde com todos os seus bens presentes e futuros para o cumprimento de suas obrigações, salvo as restrições estabelecidas em lei” (art. 789 do CPC).
Quando o devedor se recusa, por qualquer motivo, a satisfazer sua obrigação frente ao credor, cria-se desequilíbrio na relação contratual, em prejuízo daquele que já adimpliu sua parte e aguarda o cumprimento da contraprestação. Essa recusa pode ser motivada, como ocorre quando a parte contrária não cumpre satisfatoriamente sua obrigação — hipótese conhecida no direito brasileiro como Exceção de Contrato Não Cumprido, prevista no art. 476 do Código Civil:
“Nos contratos bilaterais, nenhum dos contratantes, antes de cumprida a sua obrigação, pode exigir o implemento da do outro.”
Cumprida a obrigação por um dos contratantes, nasce para o outro o dever jurídico de adimplir a sua parte no contrato. Quando o cumprimento não ocorre de forma voluntária, resta ao credor recorrer ao processo de execução, valendo-se do título que lhe confere tal direito. Em suas diversas fases, a execução permite ao devedor retratar-se e adimplir espontaneamente sua obrigação, seja ela de natureza judicial ou extrajudicial.
Demonstrada, porém, a intenção de não cumprir, caberá ao credor requerer ao juízo da execução a penhora dos bens do devedor, para posterior conversão em dinheiro e satisfação do crédito.
É nessa certeza — de que, voluntária ou involuntariamente, o credor verá seu crédito satisfeito, desde que exista patrimônio em poder do devedor — que repousa a segurança jurídica indispensável ao funcionamento do mercado capitalista. Sem tal garantia, dificilmente alguém celebraria contratos bilaterais, se a execução dependesse unicamente do arbítrio do outro contratante.
Assim, uma vez não cumprida a obrigação de forma espontânea, competirá ao Estado-juiz expropriar os bens necessários à satisfação do credor e levá-los à hasta pública, onde aquele que oferecer o maior lance arrematará o bem, adquirindo-lhe a propriedade.
Tal segurança jurídica não se restringe ao direito civil, mas estende-se aos demais ramos do ordenamento jurídico — administrativo, tributário, trabalhista e penal — sempre que se trate da efetivação de obrigações e da preservação da confiança nas relações jurídicas.
6. A IMPORTÂNCIA DA DIFERENCIAÇÃO QUANDO DA ARREMATAÇÃO
Quando uma hasta pública é deferida pelo juízo, algumas providências devem ser adotadas pela vara responsável, como a marcação das datas do leilão, a escolha do leiloeiro e a elaboração do edital. Este edital, de caráter público, destina-se a dar publicidade ao ato, contendo diversas informações relevantes sobre o processo que originou a penhora, bem como eventuais gravames incidentes sobre o bem, como outras penhoras ou determinações de outros juízos.
É também no edital da hasta pública que se fixam as obrigações do arrematante, entre as quais a de diligenciar, por seus próprios meios, acerca de ônus que possam recair sobre o bem — como dívidas de IPTU ou de condomínio não quitadas. Transfere-se, assim, ao arrematante uma obrigação ativa de averiguação, a fim de prevenir a ocorrência de vícios que possam invalidar a arrematação, por defeitos processuais em sua formação. Destacam-se, entre as causas de anulação de uma hasta pública, a ausência de citação do executado e a arrematação por preço vil.
Para participar validamente de uma hasta pública, o arrematante deve tomar todas as precauções necessárias para certificar-se da regularidade do procedimento, de modo que, após o pagamento do valor ofertado, possa obter a expedição da carta de arrematação e levá-la ao registro público, gerando a efetiva transmissão da propriedade.
É nesse ponto que surgem questões complexas e controversas. Como não há previsão legal expressa que defina a arrematação como forma originária de aquisição da propriedade, a matéria tem sido objeto de tratamento doutrinário e jurisprudencial divergente, muitas vezes orientado por interesses práticos de registradores imobiliários, ou simplesmente deixado em lacuna normativa.
Imagine-se, por exemplo, um imóvel adquirido com recursos de origem ilícita, mantido por anos na posse direta de seu titular sem que houvesse registro em seu nome. Tal bem pode ter sido objeto de alienações sucessivas e irregulares, por meio de cessões de direitos não formalizadas, até que, em determinado momento, esses direitos aquisitivos sejam objeto de penhora. Nesse caso, o que se penhora não é a propriedade em si, mas os direitos de aquisição sobre o bem.
Se um imóvel nessa situação for levado a hasta pública, o arrematante não poderá obter uma carta de arrematação hábil ao registro, a menos que se providenciem todas as escrituras intermediárias e o recolhimento dos ITBIs correspondentes (Imposto sobre Transmissão de Bens Imóveis Inter Vivos).
Foi exatamente o que ocorreu na Comarca de Valinhos, onde um bem adquirido com recursos provenientes de crime foi levado a leilão. Após a arrematação regular, o oficial do registro de imóveis recusou-se a registrar a carta de arrematação, sob a alegação de quebra da cadeia registral. O imóvel, anteriormente adquirido com o propósito de ocultar patrimônio, não havia sido registrado em nome do expropriado — o que é compreensível, pois, como se costuma dizer, quem comete delito não passa escritura nem dá recibo.
O arrematante, ao requerer a suscitação de dúvida perante o juiz corregedor, originou o processo administrativo nº 0009699-20.2014.8.26.0650, no qual o magistrado acolheu a tese do registrador: entendeu-se que a arrematação constitui aquisição derivada, e não originária, obrigando o arrematante a regularizar duas escrituras anteriores não lavradas, sob pena de anulação de todo o leilão — ainda que o processo executivo já se arrastasse por mais de oito anos desde a petição inicial.
A decisão fundamentou-se na doutrina de Araken de Assis (2012, p. 819), segundo a qual:
“A arrematação constitui forma de alienação forçada, e revela negócio jurídico entre o Estado, que detém o poder de dispor, e o adquirente, cuja declaração de vontade é aceita. É ato expropriatório por meio do qual o órgão judiciário transfere coativamente os bens penhorados do patrimônio do executado para o credor ou para outra pessoa [...].”
O ponto mais intrigante é que o mesmo magistrado que assinou a carta de arrematação, na qualidade de juiz da execução, negou-lhe depois o efeito de transferência de propriedade, ao endossar a tese do registrador.
Nesse caso específico, na ausência das escrituras anteriores, o processo teria de ser anulado, com o consequente cancelamento da hasta pública, restituição de valores e frustração do credor, que aguardou anos pela satisfação de seu crédito.
Além disso, se a arrematação é tratada como aquisição derivada, estabelece-se um vínculo jurídico entre o arrematante e o expropriado, impondo àquele o dever de verificar previamente a situação jurídica do bem e de seu proprietário antes de ofertar o lance.
Pode-se exemplificar com o caso de um imóvel gravado com cláusula de inalienabilidade, que, em tese, estaria protegido contra penhora. A jurisprudência, contudo, mitiga essa proteção quando há dívidas propter rem, como as de condomínio ou IPTU, admitindo a penhora e a alienação. Assim, o entendimento jurisprudencial oscila conforme as circunstâncias do caso concreto.
É fácil perceber as consequências negativas dessa incerteza. Diante da falta de segurança jurídica, potenciais arrematantes tendem a evitar investir em hastas públicas, optando por alternativas mais seguras, o que prejudica a efetividade dos processos de execução e enfraquece a confiança na Justiça.
Em decorrência dessa indefinição normativa, muitas arrematações são anuladas, frustrando o objetivo fundamental da hasta pública — a satisfação do crédito mediante a venda forçada do patrimônio do devedor.
Toda essa celeuma jurídica decorre da ausência de norma expressa que reconheça a arrematação como forma originária de aquisição da propriedade, deixando a matéria sujeita a interpretações divergentes, ora doutrinárias, ora jurisprudenciais.
Durante seu mandato como Corregedor-Geral da Justiça, o eminente Desembargador José Renato Nalini sempre defendeu que a arrematação deve ser compreendida como forma originária de aquisição da propriedade. Tal entendimento refletia-se em seus acórdãos, que buscavam pacificar a jurisprudência e conferir segurança às relações jurídicas.
Pode-se citar, como exemplo, seu envolvimento em julgado que tratou exatamente desse tema: a Apelação nº 0013197-92.2012.8.26.0554, da Comarca de Santo André, em que figurou como apelado o 1º Oficial de Registro de Imóveis, Títulos e Documentos e Civil de Pessoa Jurídica da Comarca de Santo André.
No caso, a arrematante tentou registrar seu título no Cartório de Registro de Imóveis, mas o pedido foi negado sob o argumento de que a arrematação constituiria forma derivada de aquisição, e que sobre o bem incidiriam outras penhoras que deveriam ser canceladas previamente.
Ao suscitar dúvida ao Juiz Corregedor, obteve a seguinte decisão:
REGISTRO DE IMÓVEIS – Dúvida julgada procedente – Carta de arrematação expedida em ação de execução fiscal movida pela Fazenda Estadual – Imóvel penhorado em outras execuções movidas pela Fazenda Nacional e pelo Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) – Arrematação que não constitui forma originária de aquisição de propriedade imóvel – Impossibilidade de registro enquanto não cancelados os registros das penhoras pela Fazenda Nacional e pelo INSS, por força do art. 53, § 1º, da Lei nº 8.212/91 – Registro inviável – Recurso não provido.
Inconformada com a negativa, a arrematante interpôs apelação, a qual foi julgada pelo Superior Tribunal de Justiça, sendo o acórdão nos seguintes termos:
O E. Superior Tribunal de Justiça, intérprete maior da legislação federal, entende que a arrematação judicial de imóvel em hasta pública configura forma originária de aquisição da propriedade, sendo oportuno citar, por todos, o Agravo Regimental no Agravo de Instrumento n° AgRg no Ag 1225813, relatado pela Ministra Eliana Calmon, assim ementado:
“EXECUÇÃO FISCAL– IPTU – ARREMATAÇÃO DE BEM IMÓVEL – AQUISIÇÃO ORIGINÁRIA – INEXISTÊNCIA DE RESPONSABILIDADE TRIBUTÁRIA DO ARREMATANTE – APLICAÇÃO DO ART. 130, PARÁGRAFO ÚNICO, DO CTN. 1. A arrematação de bem móvel ou imóvel em hasta pública é considerada como aquisição originária, inexistindo relação jurídica entre o arrematante e o anterior proprietário do bem, de maneira que os débitos tributários anteriores à arrematação sub-rogam-se no preço da hasta..."
Isto posto, dou provimento ao recurso, para possibilitar o ingresso do título.
Tal entendimento é paradoxalmente contrário ao do Conselho Superior da Magistratura (www.irib.org.br), que emanou o seguinte julgado:
A arrematação em hasta pública é forma derivada de aquisição da propriedade, devendo ser preservado o Princípio da Continuidade.
O Conselho Superior da Magistratura do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (CSM/SP) julgou a Apelação Cível nº 1009832-65.2014.8.26.0223, onde se decidiu que a arrematação em hasta pública é forma derivada de aquisição da propriedade, devendo ser preservado o Princípio da Continuidade. O acórdão teve como Relator o Desembargador Manoel de Queiroz Pereira Calças e o recurso foi, por unanimidade, julgado improvido.
O caso trata de recurso interposto em face da r. sentença que julgou procedente a dúvida suscitada pelo Oficial Registrador e manteve a recusa do registro de Carta de Arrematação expedida em execução de que figura, como executada, pessoa diversa daquela constante como proprietário na matrícula do imóvel arrematado. Em síntese, o apelante sustentou que a arrematação é modo originário de aquisição da propriedade imóvel, de forma que o registro da respectiva carta não implicaria violação ao Princípio da Continuidade, ainda que distintos o devedor da execução em que arrematado o bem e o titular registral do imóvel. Afirmou, ainda, que a devedora é a efetiva proprietária do imóvel, em virtude de demanda movida em face da titular registral do imóvel, com pedido de adjudicação compulsória acolhido por sentença transitada em julgado, já tendo sido expedida, inclusive, a carta de adjudicação, embora ainda não levada a registro.
Ao julgar o recurso, o Relator observou que a devedora na execução em que ocorreu a arrematação promovida pelo recorrente é pessoa diversa daquela que atualmente figura como titular do imóvel no Registro Imobiliário. Assim, com base nos Arts. 195. e 237 da Lei de Registros Públicos, o Relator entendeu ser inviável o registro do título, como almejado, uma vez que implica em injustificado rompimento na cadeia sucessória dos titulares do bem, devendo ser respeitado o Princípio da Continuidade. Além disso, o Relator destacou que “o só fato de se tratar de arrematação judicial não basta para afastar a incidência das normas aludidas. Trata-se, com efeito, de modo derivado de aquisição da propriedade imóvel, mantendo-se vínculo com a situação pretérita do bem. A participação do Estado-Juiz na alienação forçada do imóvel não transmuda para originária a natureza da aquisição.” Finalmente, o Relator afirmou que “cabe notar que o só fato de haver carta de adjudicação do imóvel expedida em favor da empresa que figurou como devedora na execução em que se deu a arrematação não basta para dar por observado o princípio da continuidade, seguindo inviável o registro da carta de arrematação em pauta. Essencial, para tanto, que se promova, antes, efetivo registro da carta de adjudicação.”
Diante do exposto, o Relator votou pelo improvimento do recurso.
É fácil perceber a divergência existente entre a doutrina e a jurisprudência, sendo fundamental que o legislador promova a necessária pacificação do tema em pauta.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Por todo o exposto, conclui-se que a questão da arrematação em hasta pública permanece tormentosa, à luz do ordenamento jurídico brasileiro vigente. Sendo as leis elaboradas conforme a evolução e os anseios da sociedade, com o propósito de ajustar, pacificar e regular as relações sociais, mostra-se imperiosa a necessidade de reforma legislativa, de modo a tornar a arrematação mais segura e os processos de execução mais eficientes.
Se a arrematação não for compreendida como um instituto juridicamente seguro, em razão da ausência de entendimento pacífico sobre sua natureza jurídica e seus efeitos práticos, muitos investidores — ora arrematantes — optarão por não participar de procedimentos que, ao final, podem ser anulados, afastando-se, assim, de oportunidades que deveriam representar segurança e previsibilidade jurídica.
A segurança do arrematante, embora formalmente protegida pela legislação, não o isenta de custos com honorários advocatícios e custas processuais, nem do ônus de pleitear judicialmente o cancelamento de uma hasta pública, o que acarreta morosidade e insegurança.
Dessa forma, incumbe ao legislador estabelecer regras claras e objetivas sobre os processos de arrematação, a fim de estimular a participação de interessados, assegurar a efetividade das execuções e garantir a satisfação plena das partes envolvidas.
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