Parcerias e convênios como instrumentos de políticas públicas.

O caso dos ofícios da cidadania

22/01/2020 às 17:36
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Dar eficácia aos direitos fundamentais, às populações mais carentes, é o grande desafio. Convênios podem ser instrumentos de acesso a políticas públicas. Os Ofícios da Cidadania, no Brasil e a Casa do Cidadão, em Portugal, são paradigmas que deram certo.

A Constituição traz em seu art. 1º os princípios fundamentais que, por sua relevância, sujeitam todas as demais normas. Dentre eles, da cidadania e da dignidade da pessoa humana.

Nesta mesma linha, o Art. 5º da Constituição, em seu caput, afirma que todos são iguais perante a lei garantido igualdade aos brasileiros e aos estrangeiros residentes.

Contudo, desde a promulgação da Carta Magna, a sociedade passou por diversas mudanças políticas, sociais e econômicas, surgindo ao longo desses anos novos debates jurídicos e, sobretudo, novos direitos.

Tornar os direitos fundamentais uma realidade tem sido um grande desafio ao Estado. Especialmente no que diz respeito à igualdade de tratamento, tendo em vista as inúmeras complexidades culturais e regionais em um país com extensa área territorial e unidades federativas que concentram milhares e por vezes milhões de pessoas.

As políticas públicas tem sido um braço executor de direitos e garantias da Constituição Federal e das normas infraconstitucionais, como a lei 9.265 de 1996, que conceitua alguns serviços essenciais para o exercício da cidadania.

 A cidadania representa um status do ser humano, apresentando-se, simultaneamente, como objeto e direito fundamental das pessoas. ( DE MORAES, Alexandre, 2002).

Entretanto, o crescimento da demanda por serviços públicos é exponencial e a materialização dos feitos necessários para alcançar todos de forma equânime é inversamente proporcional, frente obstáculos de todos os tipos.

Os recursos são restritos e em alguns casos, a implementação pode ser utópica, se considerar as peculiaridades regionais, legislações locais e ausência de infraestrutura.

Isso ocorre especialmente quando se prioriza as populações mais carentes, tendo em vista que grande parte delas se encontram em locais de dificil acesso.

E quando se consegue implementar algum projeto resultado de políticas públicas, surge um novo desafio: garantir a manutenção e o tratamento isonômico entre as regiões atendidas por essas políticas. O que na prática acontece, é um descompasso entre o alcance e a eficiência de serviços, em diversas áreas das unidades federativas.

Ter acesso aos documentos básicos ou necessários para o exercício da cidadania, às informações pessoais, às certidões, aos certificados, ao passaporte, à carteira de trabalho, à justiça no sentido amplo e restrito, à inscrição e manutenção em programas sociais, dentre outras demandas, não é uma tarefa fácil às pessoas que vivem à margem das capitais e cidades satélites. São os cidadãos invisíveis descobertos pelo manto da Carta Magna.

A celeuma é: como dar tratamento isonômico executando o mandamento constitucional?

Como fazer chegar às regiões mais afastadas, os serviços que garantam o acesso aos documentos, informações e/ou transmissão de informações necessárias aos órgãos da administração?


1. Convênios

Não é novidade, que convênios e parcerias, são instrumentos utilizados para a concretização de políticas públicas no âmbito dos três poderes. Contudo, a manutenção sucede à implementação e em grande parte dos casos, é nesta fase que mora o abandono. Isto porque, historicamente, a continuidade está diretamente vinculada ao período de mandato do executivo que promoveu tal ação, vontade política e/ou previsão orçamentária.

Há notícias de casos, em alguns municípios, que o cidadão precisa percorrer mais de 200 km para solicitar, por exemplo, carteira de trabalho e carteira de habilitação. Não se pode aguardar ações sociais, sazonais, para ter direito ao exercício da cidadania.

Por isso, se faz necessário que a Administração busque soluções exequíveis que possam dar continuidade a oferta de serviço de forma definitiva. Afinal, a descontinuidade gera incerteza, descredibilidade e a sensação de recomeço.

Recentemente, os Registros Civis das Pessoas Naturais, foram reconhecidos como Ofícios da Cidadania, pela lei 13.484/17 que alterou a lei 6015 /73 que trata de registros públicos, conforme texto do artigo 19, parágrafo 3º :

“Os ofícios do registro civil das pessoas naturais são considerados ofícios da cidadania e estão autorizados a prestar outros serviços remunerados, na forma prevista em convênio, em credenciamento ou em matrícula com órgãos públicos e entidades interessadas.”

Estas serventias extrajudiciais entregam gratuitamente, por garantia constitucional, serviços diretamente ligados ao exercício da cidadania.

E pela natureza do próprio serviço e suas demandas - nascimento, óbito e casamento - se observa como atendimento implícito, a relação de zelo com a própria comunidade, especialmente àquelas de pequenos municípios.

Este atendimento, que não é revelado nas estatísticas, os tornam “balcões de acolhimento ao cidadão”, pois em boa parte do território nacional, os ofícios da cidadania são a única presença estatal aos olhos do cidadão. Na prática, é o “braço executivo do poder judiciário”.

Aliado a isso, os Ofícios da Cidadania se encontram também nas regiões mais remotas, em pequenos municípios, como por exemplo, o de Borá–SP, que até pouco tempo era considerado o município de menor população do Brasil, com 804 habitantes, segundo dados do IBGE em 1º de Julho de 2019, consultado em 27 de Agosto de 2019. Esta capilaridade, preenche requisito essencial para o acesso aos serviços públicos, cuja Administração, em razão de dotação orçamentária, logística, dentre outras necessidades, não poderia atender.

Por força constitucional, art. 236, CRFB/88 e infraconstitucional art. 21, lei 8935/94, os Ofícios da Cidadania, têm atividade finalística jurídica, fiscalizada pelo poder judiciário. A sua gestão administrativa/financeira é realizada com recursos privados. Sendo assim, o aproveitamento da estrutura não demanda, da Administração, investimentos financeiros.

Importante frisar que, não se trata de um artigo que prestigia a entrega dos serviços, hoje prestados por órgãos da administração, aos Ofícios da Cidadania ou a qualquer outra entidade com perfil técnico para isso. Mas sim, tê-lo como paradigma para novas formas de convênios que possam ser soluções principalmente para as populações de municípios mais carentes.

Ou seja, fazer uso das estruturas destes e dos demais órgãos, instituições, dentre outros, como instrumentos de distribuição de políticas públicas, preservando as suas competências.


2. Modelo português

As Conservatórias, modelo português de registro civil, têm hoje a "Casa do Cidadão", que atua como ponto de pedido e entrega de documentos pessoais em geral, como: passaporte e cartão cidadão. É um exemplo clássico de parceria e de como tornar acessíveis à população, o maior número de serviços possíveis.

Isso ocorre porque é nas Conservatórias a origem das informações que constam do assento de nascimento e que sustentam os demais cadastros, como acontece no Brasil. Este procedimento, promove segurança jurídica, desburocratização e coibição de fraudes. As emissões dos documentos permanecem sendo feitas pelos órgãos competentes, sendo o local designado apenas um ponto que facilita o atendimento ao cidadão.

Seguindo o exemplo do município de Borá – SP, documentos como: passaporte, carteira de habilitação, cartão do SUS, carteiras de programas assistenciais, certidões, diplomas, certificados e uma infinidade de serviços, poderiam ter suas solicitações acessíveis aquele município, através de um único balcão. Um braço do poder executivo e do poder judiciário a serviço da comunidade, independente de seu tamanho.

É inviável criar um posto de atendimento para cada demanda, custeado pela unidade federativa competente, especialmente nesses pequenos municípios.

E negar a esses habitantes o acesso direto ao pedido de documentos fere garantias e direitos fundamentais.

Ademais, eleger em quais locais terão e em quais locais não terão os serviços, já é uma política pública desigual. Pois cada obstáculo encontrado por este cidadão para exercer práticas que, para aqueles que vivem nos grandes centros, são corriqueiras, é o mesmo que negar-lhe o direito de tratamento isonômico.

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As chamadas liberdades materiais têm por objetivo a igualdade de condições sociais, meta a ser alcançada não só por meio de leis, mas também pela aplicação de políticas ou programas de ação estatal. ( COMPARATO, Konder Fábio).

É necessário que o Estado encontre meios que materializem o alcance dessas políticas, ultrapassando a fase da mera positivação do direito.


3. Paradigmas

A oferta de serviços compreendidos dentro de programas de políticas públicas, passa necessariamente pela capacidade da Administração, no limite de suas competências, conseguir entregá-los com eficiência independente das restrições territoriais e estruturais. Isto é a materialização da igualdade de tratamento e respeito à dignidade do cidadão.

Um exemplo de implementação de política pública com o uso desta colaboração, é o convênio realizado em 2015, entre a Receita Federal do Brasil e os agora denominados Ofícios da Cidadania, que passaram a inserir o CPF do bebê, gerado em tempo real, pela Receita Federal do Brasil, nas certidões de nascimento. No ano seguinte,  em 2016, via geração e transmissão online pelo DETRAN-RJ, foi a vez do RG, também nas certidões de nascimento.

Com o provimento 63/2017 publicado pelo CNJ, foi definido que todas as certidões deveriam conter o número do CPF e aqueles nascidos com data anterior ao provimento, poderiam a medida que solicitassem a segunda via, inserir o número do documento.

E também, através das unidades interligadas com Oficios da Cidadania dentro das maternidades, foi possível que as famílias saíssem do hospital com a criança já registrada.

A parceria supracitada foi fruto de ações conjuntas entre os poderes executivo, legislativo e judiciário.

Aliando-se o conceito exposto à possbilidade de identificação civil de recém-nascidos de imediato, se estruturará política pública com reflexo direto também na segurança e na proteção do menor, como meio de combate e prevenção ao tráfico e sequestro de crianças e órgãos.


4. O Desafio

Contudo, embora os Oficios da Cidadania sejam uma ferramenta já utilizada pelo Estado, por força legal, para colher dados do cidadão, o sentido inverso, qual seja, o cidadão utilizar as serventias para obter informações disponibilizadas pela Administração Pública, dentre outros serviços, ainda não é uma realidade.

Recentemente os artigos alterados pela Lei 13.484/17 foram alvos da ADIN 5855. Hoje, o tema já foi devidamente superado, com sua constitucionalidade reconhecida. Todavia, a consequência desta ADIN naquela oportunidade, foi o efeito suspensivo das atividades que estavam sendo realizadas em parcerias, causando insegurança jurídica e econômica aos oficiais, que investiram em mais estrutura e tecnologia para oferecer um bom atendimento ao cidadão.


Considerações Finais

Através dos modelos já existentes no Brasil e paradigmas como as Conservatórias de Portugal e os Ofícios do Chile, tem-se base para buscar o ponto de equilíbrio entre o uso dessas estruturas/expertise, como ferramentas de atendimento ao cidadão.

O exercício da cidadania de forma equânime é uma demanda que não pode mais esperar.

Enfrentar o tema como matéria jurídica, em sua essência, é o primeiro passo para a transformação do cenário atual. Isto porque é do Direito que nasce o ordenamento que norteia a gestão pública e é através dele que os anseios da sociedade são materializados.

Rio de Janeiro, 19 de Janeiro de 2020.

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Sobre a autora
Daniele Messias Corrêa Luiz

Advogada e palestrante com experiência nas áreas de Direito Público, Direito Notarial e Direito Registral. Master Business Administration - FUNCEFET. Graduações em Marketing e Direito.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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