1. INTRODUÇÃO
O assédio em bom vernáculo corresponde a insistência impertinente, a perseguição, verificada nas relações humanas.
O ajuizamento de ações sem fundamento para atingir objetivos maliciosos é considerado assédio processual. Em recente julgamento da 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça – STJ.1
Portanto, considerou a 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça – STJ ato ilícito o abuso do direito de acionar.
No campo do Direito Público o “assédio” vem corporificado na perseguição que o poder estatal exerce “falsamente” quando instaura seu poder persecutório desmotivadamente ou com insistência, na ânsia de acusar o agente público até a exaustão, mesmo ausente uma causa justa ou legítima.
Isso ocorre quando se promove investigações desprovidas de plausibilidade jurídica, ou quando existe uma repetição de acusações sobre o mesmo fato sem a mínima consistência ou base empírica.
Se de um lado o poder público possui o dever de investigar as irregularidades funcionais que lhes são de conhecimento, do outro lado possui o dever de não importunar os agentes públicos que cumprem o seu munus com dignidade e ética, não infringido o código de conduta no que pertine as suas obrigações e deveres funcionais previstos em lei.
Essa tem sido uma das maiores lutas dos agentes públicos no campo sancionatório, onde a Administração Pública ou o próprio Ministério Público, como parte acusadora, levam o agente público à “exaustão” com acusações repetidas ou desfundamentadas, sem mínimos indícios de autoria ou de materialidade devidamente caracterizadas.
Apesar de ser poder discricionário da Administração Pública apurar as irregularidades funcionais que identifica, também é dever de todos, inclusive do Poder Público, o exercício da boa-fé subjetiva e objetiva nas relações jurídicas em que ela participa.
A boa-fé subjetiva é verificada pela boa-intenção ou, no mínimo, ausência de má- intenção, quando da prática de determinado ato ou conduta.
A má intenção é incompatível com ela e, por isto, a exclui, abrindo espaço para que se identifique um quando de má-intenção, que nada mais é do que a consequência de uma atuação desprovida de boa-fé subjetiva.
A boa-fé possui total correlação com o asseio processual, uma vez que o art. 5º do CPC2 trata exatamente da boa-fé objetiva aplicada ao processo civil,3 ultrapassando o entendimento que a boa-fé objetiva é inerente às relações do direito privado.
Portanto, o Ministério Público ao ajuizar ação de improbidade sem lastro viola o dever de lealdade processual, está entendida como boa-fé objetiva processual que lastreia ainda mais o assédio processual.
Por isto, a formação de um juízo de valor quando a avaliação de que determinado agente atuou com boa-fé no plano subjetivo exige perquirição a respeito da intenção que o motivou a praticar o ato.
No campo da persecução estatal, ela é de fundamental importância, pois as investigações se iniciam por atos praticados por aqueles que possuem o poder correcional. Se mal utilizado esse poder persecutório, de forma açodada ou desproporcional, ou a “simples” renovação de acusação ilegítima contra agentes públicos, acarretará no “assédio processual”.
Como já dizia Joseph Goebbels, Ministro da Propaganda Nazista de Adolf Hitler: “Uma boa mentira repetida centenas de vezes, acaba se tornando uma verdade.”
Assim, a mentira contada por agentes públicos ou por membros do Ministério Público, geralmente trás resultados danosos e, às vezes, como no caso de Goebbels, catastróficos.
No âmbito da ação de improbidade administrativa ou na instauração do processo administrativo, a acusação mentirosa, reforçada pela argumentação apelativa, com eco na mídia, intimida e possui idoneidade para gerar primazia cognitiva no julgador e, assim, dar aparência de veracidade a um fato irreal.
A utilização da esfera correcional para dar suporte a fatos irreais, iniciando ou eternizando investigações, reforça a tese do “assédio processual” onde transcende a busca de direito do órgão acusador, pelo excesso de poder de investigar.
Se de um lado o poder público possui a faculdade de exercer o seu dever de investigar, não se lhe é dado o direito de abusar desta prerrogativa.
Em situações em que o Poder Judiciário absolve determinado agente público na esfera criminal, têm-se verificado um verdadeiro “assédio processual” do Ministério Público, que aciona a esfera disciplinar do órgão competente e ainda propõe ação de improbidade administrativa correlata, eternizando demandas sobre os mesmos fatos (ilícito único), mesmo que o servidor seja reconhecidamente inocente.
Ora, é um verdadeiro martírio para o agente público, que se não sucumbir ao tempo, sofrerá um grande desgaste emocional, no âmbito pessoal, familiar e profissional.
Essa situação tem acontecido com certa frequência, em especial quando o Ministério Público investiga magistrados ou Auditores Fiscais Mesmo que o magistrado ou agente público investigado tenha sido absolvido da imputação que lhe foi direcionada na esfera penal, sobre os mesmos fatos, o membro do parquet aciona o poder disciplinar correspondente e também propõe ação de improbidade administrativa, com o único intuito de eternizar as demandas contra ele.
Apesar desses atos, em sumaria cognito, possam parecer normais, pelo fato das instâncias serem independentes entre si, elas se comunicam para fins de procedibilidade e o excesso ou o abuso do direito de investigar deve ser coibido, logo de plano.
Em sendo assim, este tipo de “assédio processual” se compraz em prática de ato ilícito, onde a persecução estatal é capaz de prima facie, encobrir o abuso de direito de investigação.
As sucessivas investigações ou eventuais ações judiciais, nessas circunstâncias, se transmudam em prática de atos ilícito por parte do poder público.
Em sendo assim, constitui desvio de poder o exercício anormal de faculdades administrativas ou judiciais para fins distintos dos fixados pelo ordenamento jurídico.
Deve o intérprete utilizar o seu poder de investigação em prol do interesse público, buscando sempre elucidar fatos que sejam realmente objeto de lícita apuração, através de uma investigação séria e proba, sem interesses escusos ou com a finalidade de prejudicar o agente investigado.
O membro do parquet ou o representante legal da esfera correcional interna dos órgãos públicos são dotados de poderes para exercitá-los de forma legítima e não abusiva.
A eternização de investigações judiciais ou disciplinares já é uma forma de assediar o agente investigado.
Por essa razão, é dever tanto da doutrina como do Poder Judiciário não permitirem que sob uma “falsa” persecução estatal, seja o agente público “assediado processualmente”, por sucessivos e ilegítimos atos do poder persecutório estatal.
Como “uma exigência de ordem político jurídica essencial ao Regime Democrático”, o Min. Celso de Mello, no MS nº 23.452-1/RJ,4 trouxe as seguintes percucientes considerações sobre o tema, de alta relevância:
“O CONTROLE DO PODER CONSTITUI UMA EXIGÊNCIA DE ORDEM POLÍTICO-JURÍDICA ESSENCIAL AO REGIME DEMOCRÁTICO. - O sistema constitucional brasileiro, ao consagrar o princípio da limitação de poderes, teve por objetivo instituir modelo destinado a impedir a formação de instâncias hegemônicas de poder no âmbito do Estado, em ordem a neutralizar, no plano político-jurídico, a possibilidade de dominação institucional de qualquer dos Poderes da República sobre os demais órgãos da soberania nacional. Com a finalidade de obstar que o exercício abusivo das prerrogativas estatais possa conduzir a práticas que transgridam o regime das liberdades públicas e que sufoquem, pela opressão do poder, os direitos e garantias individuais, atribuiu-se, ao Poder Judiciário, a função eminente de controlar os excessos cometidos por qualquer das esferas governamentais, inclusive aqueles praticados por Comissão Parlamentar de Inquérito, quando incidir em abuso de poder ou em desvios inconstitucionais, no desempenho de sua competência investigatória. OS PODERES DAS COMISSÕES PARLAMENTARES DE INQUÉRITO, EMBORA AMPLOS, NÃO SÃO ILIMITADOS E NEM ABSOLUTOS. - Nenhum dos Poderes da República está acima da Constituição. No regime político que consagra o Estado democrático de direito, os atos emanados de qualquer Comissão Parlamentar de Inquérito, quando praticados com desrespeito à Lei Fundamental, submetem-se ao controle jurisdicional (CF, art. 5º, XXXV).”
Com efeito, em qualquer investigação, cível, administrativa ou criminal, demandam fundamentação (motivação) idônea, não sendo admitido que se assentem em fatos vagos ou genéricos, que deixam de ser individualizados para permitirem de qualquer forma, uma devassa na vida do investigado, no afã de algo que possa ser utilizado em uma futura ação.
Também existe a possibilidade de haver o pré assédio processual, quando o Ministério Público ameaça propor ações temerárias. Mas tal situação será abordada em outro estudo.
2. DO ASSÉDIO PROCESSUAL
No julgamento do REsp nº 1.817.845/MS, a 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça – STJ, pode assentar que o abuso de direito de acionar se qualifica como assédio processual.
Mesmo sendo inédito no direito brasileiro, o termo “assédio processual”, utilizado pela 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça – STJ, veio em boa hora, e pode ser utilizada também nas relações com o poder público, visto o assédio em questão é o resultado de um abuso processual da parte.
Podendo se utilizar dessa regra também no caso do direito administrativo sancionador, o de o poder correcional dos órgãos públicos, ou até mesmo o Ministério Público, quando se utilizam de forma demasiada de seus poderes persecutórios, abusivamente e imotivadamente, estão fomentando o “assédio processual”.
Isto porque, a figura do abuso do direito material, inicialmente previsto no âmbito do direito privado (art. 187. do Código Civil), segundo o qual “também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes”, é plenamente aplicável na esfera pública.
O abuso de direito da esfera cível é aquele corporificado no Direito Administrativo como abuso de poder.
A noção do abuso de poder da autoridade pública (equivalente ao excess de pouvoir do direito francês) é uma modalidade de abuso de direito5, onde é verificada uma atuação desproporcional e injusta6 do agente, contrária à lei e ao interesse público.
A teoria do abuso não é aplicada somente no campo do Direito Privado, mas em todo o ordenamento jurídico, podendo ser aplicada nos diversos ramos do Direito, incluindo-se nesse contexto o Direito Administrativo.7
Apesar de haver um ponto de conexão entre a figura jurídica do abuso de direito e o desvio de poder, por ambos decorrerem do exercício anormal de uma faculdade, contrário à lei, elas são distintas entre si.8
O abuso de direito é caracterizado pelo exercício de uma direito além dos limites fixados pelo princípio da boa-fé, dos bons costumes e do fim econômico social.
Atribui-se ao filósofo chinês Confúcio (551-479 a.C), que fez várias reflexões há mais de dois mil anos, a conclusão de que “se é humano antes de ser justo”, pensamento reconhecido por Vauver Marques quando afirmou que “não se pode ser justo quem não é humano”9 expressão que deixa claro que o Autor vincula a ideia de justiça e a natureza de sustentabilidade da natureza humana.
Em sendo assim, como a Administração Pública é composta por seus agentes, a teoria do abuso de poder não ofusca a configuração do abuso de direito pelo Estado. As citadas teorias não se excluem, se completam, pois o abuso de direito nada mais é do que o uso anormal de uma faculdade jurídica. Apesar de ser “aparente”a sua legalidade, por ter sido praticado por autoridade competente, o abuso de direito se insere na ausência de padrões éticos de probidade, de decoro e boa-fé.
A autoridade pública para agir se submete a lei, ou seja para praticar o ato administrativo seja ele vinculado ou discricionário, está obrigado a respeitar os limites estabelecidos pela norma administrativa, pois caso venha a ultrapassá-los, estará cometendo abuso de poder.
Segundo Etewaldo de Oliveira Borges,10 “o abuso do direito é mais amplo do que abuso de poder, eis que todo abuso de poder é abuso de direito, mas nem todo abuso de direito é o de poder.”
Analisando o termo desvio de poder, precisa é a definição de José Cretela Júnior:11
“Entendido o desvio de poder, de um modo geral, como o uso indébito que o agente faz do poder para atingir um fim diverso do que a lei lhe confere.”
No âmbito do poder disciplinar, aplica-se subsidiariamente o disposto da Lei nº 9.784/99, onde o seu art. 2º estabelece:
“Art. 2º A Administração Pública obedecerá, dentre outros, aos princípios da legalidade, finalidade, motivação, razoabilidade, proporcionalidade, moralidade, ampla defesa, contraditório, segurança jurídica, interesse público e eficiência.
Parágrafo único. Nos processos administrativos serão observados, entre outros, os critérios de:
I - atuação conforme a lei e o Direito;
(...)
IV - atuação segundo padrões éticos de probidade, decoro e boa-fé;
(...)
VI - adequação entre meios e fins, vedada a imposição de obrigações, restrições e sanções em medida superior àquelas estritamente necessárias ao atendimento do interesse público;”
Os deveres da boa-fé, da ética e da probidade são ínsitos para toda a persecução estatal, aí incluída a atuação do poder disciplinar e a forma de proceder do Ministério Público,12 como parte ativa na relação processual da improbidade administrativa.
Como dito pela Min. Nancy Andrighi, Rel p/ acórdão no REsp nº 1.817.845/MS, “essa característica fica evidente no âmbito do processo judicial.”
Isso porque, a parte que utilizar-se de forma abusiva, o seu direito de acionar terá contra si o que vem estabelecido nos arts. 77. a 81 do NCPC/15.
Assim sendo, as chicanas, tramoias, acusações infundadas, mesmo não estando abrangidas de forma clara, implicitamente possuem assento em nosso ordenamento jurídico, com a finalidade de coibir e punir a parte que se utiliza de uma faculdade legal, em prol do “assédio processual” contra outrem.
O controle jurisdicional da atividade investigatória do Ministério Público é uma realidade e possui o condão de qualificar a sua atuação, sem desvios ou abusos.
Nesse sentido, extraem-se as seguintes lições:13
“(...)
CONTROLE JURISDICIONAL DA ATIVIDADE INVESTIGATÓRIA DOS MEMBROS DO MINISTÉRIO PÚBLICO: OPONIBILIDADE, A ESTES, DO SISTEMA DE DIREITOS E GARANTIAS INDIVIDUAIS, QUANDO EXERCIDO, PELO "PARQUET", O PODER DE INVESTIGAÇÃO PENAL.
- O Ministério Público, sem prejuízo da fiscalização intra--orgânica e daquela desempenhada pelo Conselho Nacional do Ministério Público, está permanentemente sujeito ao controle jurisdicional dos atos que pratique no âmbito das investigações penais que promova "ex propria auctoritate", não podendo, dentre outras limitações de ordem jurídica, desrespeitar o direito do investigado ao silêncio ("nemo tenetur se detegere"), nem lhe ordenar a condução coercitiva, nem constrangê-lo a produzir prova contra si próprio, nem lhe recusar o conhecimento das razões motivadoras do procedimento investigatório, nem submetê-lo a medidas sujeitas à reserva constitucional de jurisdição, nem impedi-lo de fazer-se acompanhar de Advogado, nem impor, a este, indevidas restrições ao regular desempenho de suas prerrogativas profissionais (Lei nº 8.906/94, art. 7º, v.g.). (...)”
Essa lição inicialmente extraída da persecução penal, se corporifica quando o Ministério Público exerce o seu poder persecutório perante a ação de improbidade administrativa, tendo em vista que é dever promover uma acusação fundada em indícios da prática do ato ímprobo.
Isso porque, o abuso de poder do direito de se iniciar a jurisdição não se configura pelo que se revela, mas pelo que se esconde.
Ou como dito pela Ministra Nanci Andrighi no REsp nº 1817.845/MS:
“É por isso que é preciso repensar o processo à luz dos mais basilares cânones do próprio direito, não para frustrar o regular exercício dos direitos fundamentais pelo litigante sério e probo, mas para refrear aqueles que abusam dos direitos fundamentais por mero capricho, por espírito emulativo, por dolo ou que, em ações ou incidentes temerários, veiculem pretensões ou defesas frívolas, aptas a tornar o processo um simulacro de processo.”
Realmente é preciso repensar processo à luz dos mais basilares cânones do próprio direito, pois no caso da improbidade administrativa, as ações são admitidas, em sua grande maioria, em face do interesse da sociedade (in dúbio pro societate), segundo vem decidindo reiteradamente o Superior Tribunal de Justiça – STJ.
Sucede que apesar de em determinadas situações serem concebidas artificialmente, onde o Ministério Público constrói acusações sob o prisma intelectual do seu subscritor, o fundamento de um pseudo interesse público agride a boa fé processual, pois somente deve-se utilizar a jurisdição sancionadora quando presentes indícios da prática de ato ilícito é que, em tese, devem ser acionadas as respectivas investigações.
Sem plausibilidade jurídica, instala-se o excesso de poder investigatório.
O excesso de poder torna o ato arbitrário, ilícito e nulo.
Nessa vertente, o indubio pro societate deve ser revisto principalmente em nome das novas legislações em vigor (LINDB) e as que irão entrar em vigor (LGPD).
Pela LINDB14 não há responsabilização do agente público por mera culpa, mas sim quando emite decisões ou opiniões técnicas em caso de dolo ou erro grosseiro (art. 28).
Não há como se especular o interesse da sociedade na admissibilidade de uma ação de improbidade administrativa, ou de uma investigação disciplinar ou penal, se ausentes indícios de violação à dever ou obrigação funcional, capitulado como ilícito funcional.
É do interesse da sociedade amedrontar os agentes políticos ou agentes públicos no exercício de suas funções? Será que essa sanha persecutória não inibe o ingresso de pessoas bem intencionadas ao Poder, ou pior, criam uma rede de pessoas que realmente só se interessam por conta do proveito que podem tirar?
Além de infringir a presunção de inocência que milita em favor de todos (art. 5º, inc. LVII, da CF), o princípio do in dubio pro societate, de certa forma encontra obstáculo também no art. 5º da LINDB: “Na aplicação da Lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum.”
Assim o Juiz deve cotejar os bens colocados em jogo com a dignidade da pessoa como defende, o princípio da boa-fé objetiva, da vedação ao assédio processual e da própria continuidade do serviço público, pois uma aceitação preliminar açodada serve como ato inibidor para a prática das verdadeiras atividades públicas por receio de punição.15
Em sendo assim, nas esferas controladora, administrativa e judicial, não se decidirá com base em valores jurídicos abstratos sem que se considere as consequências práticas da decisão.16
As decisões de imputações não devem ser abstratas e assim tanto o Ministério Público, como a esfera correicional e o Poder Judiciário devem avaliar o caso concreto sob o ângulo da verdade real, e dos obstáculos e das dificuldades reais do gestor público. 17
Dentro dessa nova realidade jurídica, como por exemplo, fora dos casos comprovados de corrupção, quando o Ministério Público questiona uma licitação alegando improbidade, pode dar azo, inclusive, à paralização de uma obra, com consequências gravosas para a sociedade. Não menos, o juiz ao acolher a pretensão cautelar da inicial tem a obrigação de prever as possíveis consequências danosas do ato, também para a sociedade.18
Abra-se parênteses para registrar as felizes colocações de Thalita Braz Bernardinho:19
“A forma como a instituição foi prevista e a percepção que a sociedade tem dele permitem-se que as ações inconsequentes e desproporcionais do Ministério Público, em algumas ocasiões, tenham a aparência de legítimas.
Acreditamos que esse abuso de poder ocorre resumidamente por três razões, sendo elas: (i) a concessão de amplas prerrogativas e competências ao órgão pela lei e pela jurisprudência; (ii) a previsão de poucos limites e instrumentos de controle hierárquico na atuação do Ministério Público; e (iii) a concepção distorcida de seu papel institucional pela sociedade e por membros.”
Não é possível proteger-se a ação de improbidade natimorta, como por exemplo, aquela que é gerada por capricho ou por “assédio processual”, onde o membro do parquet a todo custo quer punir o agente público probo e honesto.
O in dubio pro societate no presente contexto nada mais é do que a vontade do subscritor da peça sem substrato jurídico, que traz um apelo em nome da sociedade para camuflar o “assédio processual”.
Logo, para se exercer e instaurar a ação de improbidade administrativa, ou a persecução disciplinar, é indispensável juízo rigoroso e fundamentado de controle da legitimidade desse exercício.
Daí que para acusar tanto o Ministério Público, como as corregedorias disciplinares, possuem o dever de ter prova obtida de modo lícito, que demonstre, com relativo grau de certeza, a existência material do fato, aparentemente ilícito e típico, e, com certo grau de probabilidade, a existência de, ao menos, indícios de autoria, coautoria, ou participação, do ato ilícito, no exercício da função pública ou em decorrência dela.
E coube ao Min. Gilmar Mendes, um dos maiores críticos à atuação incontrolada do Ministério Público, a fazer a devida reflexão, em seu voto vencedor no RE nº 593727/MG:20
“(...)
Em síntese, reafirmo que é legítimo o exercício do poder de investigar por parte do Ministério Público, porém essa atuação não pode ser exercida de forma ampla e irrestrita, sem qualquer controle, sob pena de agredir, inevitavelmente, direitos fundamentais:
(...)”
Nessa vertente, o Superior Tribunal de Justiça no citado REsp nº 1.817845/MS, reprimiu os abusos de direito material e processual, verificado no exercício desenfreado, repetitivo e desprovido de fundamentação séria e idônea, ainda que em caráter excepcional, para se caracterizar abuso do direito de ação.
Por analogia, essa posição é plenamente aplicável a persecução estatal, tanto do Ministério Público, como das Corregedorias disciplinares.
Por essa razão, extraem-se as seguintes lições da Ministra Nancy Andrighi, voto vencedor do REsp nº 1.817845/MS:
“(...)
A excepcionalidade de se reconhecer eventual abuso do direito de acesso à justiça deve ser sempre ressaltada porque, em última análise, trata-se um direito fundamental estruturante do Estado Democrático de Direito e uma garantia de amplíssimo espectro, de modo que há uma natural renitência em cogitar da possibilidade de reconhecê-lo em virtude da tensão e da tenuidade com o próprio exercício regular desse direito fundamental.
Respeitosamente, esse não é um argumento suficiente para que não se reprima o abuso de um direito fundamental processual, como é o direito de ação. Ao contrário, o exercício abusivo de direitos de natureza fundamental, quando configurado, deve ser rechaçado com o vigor correspondente à relevância que essa garantia possui no ordenamento jurídico, exigindo-se, contudo e somente, ainda mais prudência do julgador na certificação de que o abuso ocorreu estreme de dúvidas.
(...)”
Ainda sobre o abuso de direito, identificado pela Min. Nancy Andrighi como abuso processual, ela cita Michele Tarufo21 que abreviou tal excesso processual pela sigla ADP:
“Tais preocupações são relevantes e merecem atenção. Todavia, não parece que devam elas obstar que se tome em séria conta os problemas do ADP, somente porque o abuso pode ser cometido sob o rótulo de um "direito fundamental processual" e a aplicação de tais direitos não deva ser indevidamente limitada.
Por um lado, pode-se dizer que não há contradição necessária em se falar de abuso de direitos. Um direito pode ser exercido em muitos modos diferentes e com diferentes propósitos. Por isso, há também a possibilidade de distinguir condutas processuais "justas" e "corretas" daquelas "injustas" e "abusivas". Por exemplo, que eu esteja investido do direito fundamental de acesso à justiça não significa que eu esteja autorizado a propor qualquer demanda sem nenhum interesse legal (i.e., para perseguir alegações frívolas: ver Hazard), apenas com o intuito de perturbar outra pessoa. Em um caso tal, seria provavelmente dito que eu abuso de meu direito de acesso à justiça. Similarmente: eu estou investido com o direito de defesa em todos os seus aspectos, mas se eu requeiro dezenas de preliminares frívolas e infundadas apenas a fim de provocar atrasos e custos, ou para impedir a corte de tomar o caso em consideração, pode ser dito que estou abusando do direito de defesa (ver, e.g., o caso dos repetitivos pedidos de habeas corpus referido por Hazard).
Estes argumentos conduzem à conclusão de que não há contradição inerente entre garantias processuais e ADP. Direitos garantidos podem ser usados de formas incorretas e com propósitos inadequados e, portanto, eles podem ser objeto de abuso (ver, e.g., Oteiza). Por outro lado, garantias processuais não protegem e não legitimas práticas abusivas. Elas visam a proteger direitos, não a legitimar condutas injustas e nocivas. De certo modo, então, o discurso concernente à interpretação c aplicação das garantias constitucionais e o discurso sobre o ADP pertencem a diferentes contextos e - ao menos teoricamente - não devem nem se sobrepor nem conflitar um com o outro. Por assim dizer, a garantia termina quando o abuso começa (e vice-versa).
É claro, entretanto, que o relacionamento entre o ADP e as garantias fundamentais é multifacetado. Garantias devem prevenir abusos processuais, mas elas mesmas podem ser objeto de abuso: a afirmação de uma garantia não é suficiente, infelizmente, para prevenir abusos. Por outro lado, abusos devem ser prevenidos justamente a fim de tornar efetivas as garantias, haja vista que procedimentos em que ocorrem abusos não correspondem aos padrões de lealdade e devido processo. Assim: garantias e ADP não se excluem. A questão é muito mais complexa e lida com o grau de realização de garantias e o grau de prevenção de abusos em diversos sistemas legais.
Um problema diferente diz respeito à possibilidade de o risco de abusos ser usado como um argumento contra o completo desenvolvimento das garantias constitucionais. Em alguns casos, isto pode representar um perigo real, mas é um problema de tática (se não de política). Este problema surge quando alguma pessoa está tentando bloquear ou limitar a realização de garantias constitucionais e ela está em busca de argumentos para sustentar tal prática. Mas se o perigo do ADP é utilizado "contra" a completa implementação das garantias, este é um argumento errado e ruim: utilizá-lo pode ser definido como um "abuso do argumento". Uma análise cuidadosa das garantias e do ADP deve ajudar evitando o uso incorreto do perigo do ADP como um obstáculo para a aplicação das garantias processuais.”
Tais fundamentos se projetam para as situações aqui enfrentadas, entre a luta do agente público probo e honesto, que não infringiu no Código de Conduta e mesmo sendo inocente, em tese, recebe contra si investigações disciplinares ou participa do polo passivo de ação de improbidade administrativa, fruto de “assédio processual”.
Situação que, pela ótica do “fiscal de lei” é normal, para o outro lado, o mais frágil e desprotegido, o agente público, a falsa ou imotivada imputação é dessa “condenação”, que somente será revertido após alguns anos de desgastes financeiros e emocionais.
Para esses casos, abre-se o oportuno questionamento decidido pelo Superior Tribunal de Justiça – STJ no REsp nº 1817845/MS, que teve como ilícito o “assédio processual”.
A leitura de parte do v. acórdão do REsp citado,22 se pode sintetizar o assédio processual:
“(...) ABUSO DO DIREITO DE AÇÃO E DE DEFESA. RECONHECIMENTO COMO ATO ILÍCITO. POSSIBILIDADE. PRÉVIA TIPIFICAÇÃO LEGAL DAS CONDUTAS. DESNECESSIDADE. AJUIZAMENTO SUCESSIVO E REPETITIVO DE AÇÕES TEMERÁRIAS, DESPROVIDAS DE FUNDAMENTAÇÃO IDÔNEA E INTENTADAS COM PROPÓSITO DOLOSO. MÁ UTILIZAÇÃO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS DE AÇÁO E DEFESA. POSSIBILIDADE.
(...)
1- Ação ajuizada em 08/11/2011. Recursos especiais interpostos em 15/08/2014 e 19/08/2014.
2- Os propósitos recursais consistem em definir: (l) se houve omissão ou obscuridade relevante no acórdão recorrido; (li) se o ajuizamento de sucessivas ações judiciais pode configurar o ato ilícito de abuso do direito de ação ou de defesa; (iii) se o abuso processual pode acarretar danos de natureza patrimonial ou moral; (iv) o termo inicial do prazo prescricional da ação de reparação de danos fundada em abuso processual.
3- Ausente omissão ou obscuridade no acórdão recorrido que se pronuncia, ainda que sucintamente, sobre as questões suscitadas pela parte, tornando prequestionada a matéria que se pretende ver examinada no recurso especial, não há que se falar em violação ao art. 535, I e II, do CPC/73.
4 - Embora não seja da tradição do direito processual civil brasileiro, é admissível o reconhecimento da existência do ato ilícito de abuso processual, tais como o abuso do direito fundamental de ação ou de defesa, não apenas em hipóteses previamente tipificadas na legislação, mas também quando configurada a má utilização dos direitos fundamentais processuais.
5 - O ardil, não raro, é camuflado e obscuro, de modo a embaralhar as vistas de quem precisa encontrá-lo. O chicaneiro nunca se apresenta como tal, mas, ao revés, age alegadamente sob o manto dos princípios mais caros, como o acesso à justiça, o devido processo legal e a ampla defesa, para cometer e ocultar as suas vilezas. O abuso se configura não pelo que se revela, mas pelo que se esconde. Por esses motivos, é preciso repensar o processo à luz dos mais basilares cânones do próprio direito, não pelo que se revela, mas pelo que se esconde. Por esses motivos, é preciso repensar o processo à luz dos basilares cânones do próprio direito, não para frustrar o regular exercício dos direitos fundamentais pelo litigante sério e probo, mas para refrear aqueles que abusam dos direitos fundamentais por mero capricho, por espírito emulativo, por dolo ou que, em ações ou incidentes temerários, veiculem pretensões ou defesas frívolas, aptas a tornar o processo um simulacro de processo ao nobre albergue do direito fundamental do acesso à Justiça.”
Não há que se confundir a liberdade de atuação que possui o Ministério Público, em verificar a existência de fato-infração e seus demais elementos autorizadores para a propositura da ação ou da instauração da investigação, com a obrigação de promover a acusação a todo custo, mesmo que não haja a mínima chance de lograr êxito em sua postulação. Portanto, em não havendo elementos suficientes e comprobatórios da prática do ilícito deve o Ministério Público ou a autoridade competente para instaurar o processo disciplinar, opinar pelo arquivamento do feito.
Nesse sentido, aduz Paulo Rangel:23
“Deve agir, desde que presentes os requisitos que viabilizam o curso do processo. Assim, pode e deve o Ministério Público deixar de promover a ação desde que o fato apurado no inquérito seja atípico, ou embora típico, não haja a justa causa.”
Vamos mais além, pois entendemos que se não houver no mínimo prova indireta da prática de um ato ilícito, não haverá plausibilidade jurídica para o Ministério Público iniciar sequer a investigação através do inquérito penal ou civil público, em decorrência de que seu poder investigatório não atinge o status de macular os direitos fundamentais das pessoas que não podem ter violadas suas intimidades e honra, sem que haja um justo e relevante motivo para tal.
As condições para o regular exercício do direito de agir do Ministério Público ou do poder persecutório disciplinar, vincula-se a uma causa legítima, e não a interesses pessoais ou de autopromoção interna, pois antes de mais nada compete-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais individuais indisponíveis (art. 127, da CF).
Nessas condições, a insistência de acusar-se a qualquer custo, se resume no “assédio processual” vedado pelo direito e agora pela jurisprudência evolutiva do Superior Tribunal de Justiça – STJ.