3. INVESTIGAÇÃO GENÉRICA SE TRANSFORMA EM ASSÉDIO
Todos aqueles que exercem suas atividades profissionais no âmbito do direito sancionador já presenciaram ou ouviram dizer, que o Ministério Público e a esfera disciplinar dos órgãos públicos, mesmo sem base jurídica, determinam a instauração de inquérito policial civil, ou processo disciplinar, respectivamente, sem a existência de uma prova direita ou indireta, mesmo que mínima, em relação a existência da prática de ato ilícito por parte do investigado, sob argumento, genérico, sendo que a portaria inaugural não descreve com exatidão os motivos da pseudo investigação, fazendo com que a mesma se transforme em verdadeira devassa, com o objetivo de se encontrar algo que legitime a própria atuação estatal.
A investigação genérica é instaurada, para que no curso dela se investigue a vida profissional e fiscal do investigado, no afã de se encontrar algo que possa configurar-se como a prática de um ato ilícito e servir de suporte de uma futura ação civil pública, denúncia penal ou demissão.
Trata-se da forma mais desumana e arbitrária de perseguição estatal, visto que a investigação é direcionada contra a dignidade da pessoa humana, em face a ausência aparente da prática de ato ilícito. Mas o desejo de encontrar algo é tão grande, que algumas investigações se arrastam por muitos anos, no afã de encontrar algo que possa ser utilizado contra a pessoa investigada.
Não vislumbrando, nem em tese, a prática de um ato ilícito, em muitas situações o Ministério Público instaura o inquérito civil ou penal genérico, na maioria das vezes, para com isso tentar justificar, sob o prisma jurídico uma investigação, com a finalidade de perseguir, a qualquer custo o indefeso investigado, tentando encontrar algo que poderá lastrear uma futura ação judicial.
Não resta dúvida que essa conduta do Ministério Público revela a prática de abuso de poder do direito de investigar “assédio processual”, visto que a lei não lhe concede poderes para macular a honra e a moral das pessoas, como se elas fossem meros objetos.
De igual modo, não merece credibilidade jurídica as frequentes afirmações do órgão estatal de “quem não deve, não teme” ou de quem “é inocente demonstrará essa condição no curso da investigação e que é direito soberano do Ministério Público investigar quem quer que seja.”
A pergunta que se faz é se há ou não violação da intimidade, da honra, da dignidade e da privacidade das pessoas/agentes públicos se o Ministério Público ou o poder disciplinar resolve utilizar-se da sua faculdade de promover investigações ou propor ação civil pública quando bem entender, sem plausibilidade jurídica:
Não é fácil a reposta, pois se não resta dúvida que o Ministério Público e a Administração Pública possuem como um dos deveres fundamentais combater a prática de atos ilícitos, e nessa condição, promover atos sempre visando a elucidação da verdade real, a fim de manejar as ações ou investigações pertinentes contra quem quer que seja.
Esse dever do Ministério Público é dosado pela Constituição Federal e pelo direito, para que não haja o manejo indevido em sua atividade persecutória.
Da mesma forma, a Administração Pública se fundamenta pela lei e nessas condições, somente se houver elementos concretos de que houve a prática de ilícito funcional é que estará autorizada a investigar, por meio de sindicância ou de processo disciplinar.
Por essa razão atenta contra a honra a notícia de fato, como seja a prisão de alguém, ou seu indiciamento em inquérito policial, ou ser apontado como suspeito, ou ser formalmente acusado como autor da prática de um ato ilícito se no curso de tais investigações verificar-se que não há a mínima plausibilidade jurídica que pudesse embasar tais providências tomadas contra o investigado/acusado.
A necessidade de proteção jurídica da intimidade foi resultado de uma grande evolução do direito comparado, que viu nos séculos passados o homem, através do Estado ser seu objeto.
Nesse sentido, a Declaração Universal dos Direitos do Homem (ou Humanos), de 10.12.1948, quando da Assembleia Geral das Nações Unidas, em seu artigo 12, assim determinou:
“Art. 12. – Ninguém será objeto de interferências arbitrárias em sua vida privada, família, domicílio ou correspondência, nem de ataques à sua honra ou reputação. Toda pessoa tem direito à proteção da lei contra tais interferências ou ataques.” (g.n.)
Acostumada a ver o homem ser destruído pelo espírito mercantilista de governantes e de líderes políticos, que se utilizaram do Estado para desrespeitar e oprimir o homem, a comunidade internacional se opôs a tais fatos.
Na linha de evolução de proteção aos direitos fundamentais da pessoa, a Convenção Europeia dos Direitos do Homem, de 4.11.1950, incluiu várias disposições garantidoras da vida privada das pessoas, onde a interferência de uma autoridade pública no exercício desse direito deve estar condicionada não só à lei, mas também respaldada por um justo motivo.
Eis o texto do artigo 8º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem:
“Art. 8º - (Direito ao respeito da vida privada e familiar) 1 – Qualquer pessoa tem o direito ao respeito da sua vida privada e familiar, do seu domicílio e da sua correspondência. 2. – Não pode haver ingerência da autoridade pública no exercício deste direito senão quando esta ingerência estiver prevista na lei e constituir uma providência que, numa sociedade democrática, para o bem estar econômico do país, a defesa da ordem e a preservação das infracções penais, a proteção da saúde ou da moral, ou a protecção dos direitos e das liberdades de terceiros.” –[Sublinhado nosso].
Ao analisar o presente artigo, Ireneu Cabral Barreto averbou:24
“1. Este artigo tem como objectivo essencial prevenir o indivíduo contra as ingerências arbitrárias de poderes públicos. Ele exige do Estado não só um dever de abstenção, mas também um papel activo inerente ao efectivo respeito da vida privada e familiar [...]. 2. Contudo as medidas positivas exigidas aos Estados estão em geral sujeitas à margem de apreciação do próprio Estado e é preciso ressalvar um justo equilíbrio entre o interesse geral e o interesse do indivíduo.” –[Sublinhado nosso].
Mesmo sendo difícil definir “vida privada”, não resta dúvida que o direito ao seu respeito não se limitava a possibilitar ao indivíduo viver protegido da publicidade no desenvolvimento de sua personalidade, mais ainda o de não ser vítima de ingerências arbitrárias dos poderes públicos.
O direito à vida privada foi ainda reconhecido pela Convenção Americana dos Direitos do Homem, assinada em São José da Costa Rica, em 22.11.1969, assim explicitado em seus artigos 1/3:
“1) toda pessoa tem o direito de ter sua honra respeitada e sua dignidade reconhecida. 2) Ninguém pode ser objeto de interferência arbitrária ou abusiva em sua privada, sua família, seu lar ou sua correspondência, ou de ataques ilegais à sua honra ou reputação. –[Sublinhado nosso]. 3) Toda pessoa tem um direito à proteção da lei contra tais interferências ou ataques.” –[Sublinhado nosso].
Sendo certo que o direito à proteção da lei contra a violação de interferência arbitrária ou abusiva da vida privada e do indivíduo aí inclua-se a sua atividade profissional, é cláusula fundamental direcionada contra o Estado também, que sempre foi, em um passado recente, o agressor de tais direitos.
Isso porque, as origens dos direitos da dignidade humana, entendidos como um conjunto de normas visam defender a pessoa humana contra os excessos do poder cometidos pelos órgãos do Estado.
O Código de Hamurabi, escrito em cerca de 1780 a.C., havendo divergência nessa data entre os autores; Criado pelo Rei Ur-Namu que teria influenciado Hamurabi para fazê-lo; Esse preocupou-se em impor a justiça para o poderoso que fizesse mal ao fraco, devendo ser apontado como um dos primeiros passos existentes, ainda que de forma tímida, sobre os direitos do homem.
Toda luta contra a tirania e o poder descomunal e absoluto, seja a de Moisés, invocando perante o Faraó o direito dos povos a disporem de si próprios, de Antígona diante de Creonte, afirmando o direito de desobediência ao poder face a leis superiores e ao próprio Estado, ou de Espártaco, chamando diante dos escravos o direito à resistência à opressão, são exemplos da dificuldade de afirmação dos direitos do homem ao longo dos tempos.
Voltando ao nosso ciclo evolutivo da vida privada e da intimidade no cenário jurídico internacional, como forma de manifestação de um processo global de preocupação com as garantias fundamentais do ser humano, a Resolução n.º 428, de 23.01.1970, da Assembleia Consultiva do Conselho da Europa (alíneas 2 e 3 do parágrafo “c”) assim definiu:
“O direito ao respeito à vida privada consiste essencialmente em levar sua vida como entender com um mínimo de interferências. Diz respeito à vida privada, familiar e comunitária, integridade física e moral, honra e reputação, ao fato de não ser apresentado sob um falso vislumbrante, à não divulgação de fatos inúteis e embaraçosos, à publicação, sem autorização, de fotografias privadas, à proteção contra a divulgação de informações comunicadas ou recebidas confidencialmente por um particular. Não podem se prevalecer do direito à proteção de sua vida privada as pessoas que por suas próprias atitudes encorajam indiscrições dos quais elas venham a se queixar posteriormente. O respeito à vida privada de uma pessoa ligada à vida pública traz um problema específico. A fórmula a ‘vida privada termina onde começa a vida pública’ não é suficiente para resolver o problema. As pessoas que representam um papel na vida pública têm direito à proteção de sua vida privada, salvo nos casos em que esta possa ter incidência sobre a vida pública. O fato do indivíduo ocupar lugar na atualidade não o priva do direito ao respeito à sua vida privada.” –[Sublinhado nosso].
Apesar do Brasil ser signatário do Pacto de San Jose da Costa Rica, o que faz com que ele adote em seu ordenamento jurídico interno o que fora deliberado no respectivo tratado internacional, o artigo 5º, incs. X e XII, da CF corroboram o direito fundamental da inviolabilidade da intimidade, da honra, da vida privada, dos dados e informações fiscais e bancárias.
Nesse sentido, cumpre também indagar quais as possibilidades e limites estabelecidos pela ordem jurídica que autorizam a mitigação do referido direito fundamental para a adequada tutela de outros bens jurídicos também consagrados na Constituição Federal.
Não resta dúvida que uma das tarefas do Estado é tutelar os direitos fundamentais das pessoas, promulgando e aplicando normas de caráter punitivo ou que premiam o indivíduo, além de atuar por meio de arrecadação em aplicação de receitas para o desenvolvimento das políticas públicas que ele elege como primordiais ao crescimento da sociedade.
Em sendo assim, havendo violação de direitos fundamentais entre indivíduos, faz-se necessário que o Estado disponha de meios para a averiguação da concreta violação dos bens jurídicos que lhe incumba tutelar para a promoção das responsabilidades tidas por pertinentes.
Esse poder persecutório do Estado permite que combata de forma eficiente e permanente a corrupção e o malbaratamento dos bens e do patrimônio público, dentre outros ilícitos, através de atos concretos que apurem responsabilidades de agentes públicos e de terceiros, fazendo com que responda a pertinentes ações judiciais, ou seja, por intermédio de investigações na busca de elementos concretos e objetivos que demonstrem a autoria e materialidade, em tese, da prática do ilícito.
A tarefa de colheita de elementos probatórios para o cumprimento de seus deveres de proteção ao cidadão pode ser denominada de investigação e será sempre instaurada quando presente um justo motivo para tal, revelado inclusive através de prova indireta.
Ao ser acionado o poder/dever investigatório do Estado esse é o requisito singular de sua própria validade, que é a existência de provas indiretas ou diretas que apontem a prática de um possível ato ilícito por parte do investigado. Tal fato, em tese, justificaria o aprofundamento da investigação, para apurar em seu trâmite a autoria e a materialidade de um possível ato vedado pelo ordenamento jurídico.
Existe poder amplo e irrestrito do Ministério Público ou da esfera correicional dos órgãos públicos, em seu direito de investigar a quem bem lhe aprouver?
Entendemos que não!
E o Supremo Tribunal Federal,25 no julgamento do HC nº 93.930, 2ª T., deixou assente no voto de seu eminente Relator Min. Gilmar Mendes, que a atividade persecutória estatal desenvolvida pela Polícia ou pelo Ministério Público merece vigilância e controle externo pelo Poder Judiciário, verbis:
“Convém observar que o poder de investigar do Ministério Público não pode ser exercido de forma ampla e irrestrita, sem qualquer controle, sob pena de agredir direitos fundamentais. A atividade de investigação, seja ela exercida pela Polícia ou pelo Ministério Público, merece por sua própria natureza, vigilância e controle.” –[Sublinhado nosso].
As orientações constitucionais que disciplinam a persecução estatal não admitem uma atuação do órgão público responsável de forma arbitrária. Daí a necessidade de regras garantidoras da participação do atingindo, assim como aquelas que definem critérios para a atuação (investigação) do Ministério Público ou do poder disciplinar, sempre dentro da legalidade.
Os limites do Ministério Público estarão sempre inseridos na realidade jurídica do investigado, de não ser importunado, salvo por um junto e relevante motivo. Não é dado ao poder persecutório estatal um poder amplo, geral e irrestrito, que possa afrontar os direitos e as garantias fundamentais da parte acusada ou investigada.
Essas regras não são apenas para disciplinarem a participação da pessoa investigada, mas também funcionam como limites para a própria instauração da mesma.
Atente-se, a tanto, que o art. 129, da CF, princípio normativo das funções institucionais do Ministério Público, especifica o rol de funções acometidas à instituição, onde se destaca os seguintes tópicos:
“Art. 129. – São funções institucionais do Ministério Público: I - promover, privativamente, a ação penal pública, na forma da lei; II - zelar pelo efetivo respeito dos Poderes Públicos e dos serviços de relevância pública aos direitos assegurados nesta Constituição, promovendo as medidas necessárias à sua garantia; III - promover o inquérito civil público, para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos; (...) VI - expedir notificações nos procedimentos administrativos de sua competência, requisitando informações e documentos para instruí-los, na forma da lei complementar respectiva. (...) VIII - requisitar diligências investigatórias e instauração de inquérito policial, indicando os fundamentos de suas manifestações processuais. IX – exercer outras funções que lhe forem conferidas, desde que compatíveis com sua finalidade, sendo-lhe vedada a representação judicial e a consultoria jurídica de entidades públicas.”
No citado artigo 129, o seu parágrafo 4º determina aplicar ao Ministério Público no que couber, o disposto no art. 93, também da Constituição Federal. Esse preceito constitucional impõe que todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário sejam públicos e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade.
Dessa forma, pode-se afirmar que o ato que determina a promoção do inquérito civil público e a ação civil pública para a proteção do patrimônio público e social devem ser suficientemente fundamentados, fulcrando-se em uma causa legítima, sob pena de faltar-lhe justa causa para iniciar uma de suas funções institucionais.
Esse dever de fundamentação, dos atos do Ministério Público é a garantia mínima de que seus posicionamentos serão respaldados pelos princípios mais lídimos de direito e de justiça, pois como fiscal da lei, acima de tudo, o membro do parquet deverá pautar a sua atuação para a proteção de valores éticos e morais, respaldados pelo princípio da legalidade.
No mesmo sentido, veja-se que a Lei n.º 8.625, de 12 de fevereiro de 1993, ao instituir a Lei Orgânica Nacional do Ministério Público, concretizou a disposição constitucional em apreço da obrigatoriedade de fundamentação de todas as decisões, sob pena de nulidade, dispondo que (art. 43, III): “indicar os fundamentos jurídicos de seus pronunciamentos processuais, elaborando relatório em sua manifestação final ou recursal.”
Os pronunciamentos do Ministério Público dos Estados e da União devem ser motivados e reveladores da necessidade jurídica de suas intervenções, capazes de concretizar a relativização do direito de inviolabilidade da privacidade da pessoa investigada.
Mesmo que se louve as conquistas institucionais obtidas pelo Ministério Público ao longo do processo constituinte (dentre outros), de que resultou a promulgação da nova Constituição Federal, com a reconstrução da ordem constitucional, surgiu, o Ministério Público, sob o âmbito de legitimidade democrática, com o dever de atuar dentro de padrões de legalidade e de ética.
Essa nova e atual ampliação das atribuições, aumentando a competência, e conferindo-se-lhe os meios necessários à consecução de sua destinação constitucional, exige uma atuação zelosa e conservadora do membro do Ministério Público, pois ele é obrigado a respeitar os direitos e as garantias fundamentais de todos os cidadãos, inclusive dos acusados ou investigados.
Portanto, mesmo quando instaurada a fase pré-processual (inquérito civil, inquérito penal e representação para fins disciplinares) o Ministério Público, no exercício de suas atribuições, deve respeitar todos os direitos e garantias que são direcionados às pessoas, em especial o da preservação de suas intimidades, de não serem molestadas sem um justo e razoável motivo.
A Constituição Federal conferiu, não resta dúvida, uma posição de inquestionável importância para o cidadão, incluindo nesse rol o agente público, destinatário também de todas as garantias constitucionais. Deferiu-lhe, em consequência, os meios necessários à plena realização de sua proteção, tais como a inviolabilidade de sua intimidade, vida privada, honra, imagem, do domicílio, do sigilo da correspondência, das comunicações telegráficas, do livre exercício profissional, etc.
Da mesma forma, a Constituição Federal também outorgou grande importância ao Ministério Público, fornecendo instrumentos legais à concretização de suas finalidades jurídico-institucionais, autorizando-o, no exercício de suas atribuições, dentre outras providências, a de “receber notícias de irregularidades, petições ou reclamações de qualquer natureza, promover as apurações cabíveis que lhe seja próprias e dar-lhes as soluções adequadas (...)” (Lei n.º 8.625/93, art. 27, parágrafo único, n.º 1), competindo-lhe, ainda, dentro desse mesmo contexto, “realizar (...) diligências investigatórias (...)” (LC n.º 75/93, art. 8º, V).
O poder de investigar, em sede penal, civil ou disciplinar, também compõe o complexo de funções institucionais do Ministério Público, sendo essa última situação jurídica inerente ao poder correicional dos órgãos públicos, levando-se em conta que esse poder se acha instrumentalmente capacitado a tornar efetivo o exercício, por sua instituição, das múltiplas e relevantes competências que lhe foram diretamente outorgadas, em norma expressa, pelo próprio texto da Constituição Federal.
Esse poder investigatório, como por exemplo, do Ministério Público, vincula-se ao poder de direito e a supremacia da Lei Fundamental da República como ressaltado pelo Min. Celso de Mello em seu magistral voto no HC nº 93.930/RJ, 2ª T., julgado em 7.12.2010, litteris:
“Mostra-se relevante enfatizar, de outro lado – consideradas as observações que venho de registrar neste voto quanto às limitações que incidem sobre o poder investigatório do Ministério Público, e que lhe são plenamente oponíveis por qualquer pessoa que por ele esteja sendo investigado – que a autoridade da Constituição e a força das leis não se detêm no limiar dos gabinetes dos Promotores de Justiça e dos Procuradores da República, como se tais agentes do Estado, subvertendo as concepções que dão significado democrático ao Estado de Direito, pudessem constituir um universo diferenciado, paradoxalmente imune ao poder do Direito e infenso à supremacia da Lei Fundamental da República.” -[Sublinhado nosso].
Em seguida aduz o Min. Celso de Mello:
“Daí porque incidem, sobre o Ministério Público, as limitações de ordem jurídica que venho de referir, sob pena de desvalia dos elementos de informação coligidos e produzidos com desrespeito aos direitos e garantias da pessoa investigada.”-[Sublinhado nosso].
Portanto, é violado o princípio da intimidade, da honra, da vida privada e da imagem das pessoas (incluindo os agentes públicos) quando os fatos investigados são genéricos, sem um objetivo previamente definido e também sem um mínimo de prova que possa justificar a necessidade da persecução estatal. Não é, por outro lado, lícita a pífia justificativa de quem “não deve, não teme”, bem como, “quem é inocente demonstrará esta condição no curso da investigação.”
Para o homem de bem, a “simples” instauração de uma investigação se torna agressão aos seus valores morais, visto que não havendo plausibilidade jurídica, não há que se falar em poder investigatório do poder público.
Isso porque, também a intimidade como bem jurídico a ser protegido pelo Estado fortalece a própria dignidade humana.
Em sendo assim, “a intimidade, como direito fundamental, cumpre seu papel de impor limites também à atuação do Estado, dando proeminência à figura do cidadão.”26
O direito à intimidade desvinculou-se do direito à honra para, em primeiro lugar, garantir ao indivíduo o direito de estar só, em sua própria companhia.
Dessa forma, o reconhecimento da intimidade e da vida privada como direito fundamental27 não é um mero princípio programático, visto que dele deve haver aplicação imediata independentemente de outras normas regulamentadoras.
Em sendo assim, ao passo em que o princípio da intimidade não impede que haja a investigação estatal, ele funciona como fator qualificador, exigindo-se do poder público o seu respeito, onde a respectiva relativização desse direito, determina que hajam fundadas, pelo menos, provas indiretas que demonstrem o cometimento de um ato ilícito, capaz de justificar a intervenção do poder público.
O direito de investigação por parte dos órgãos estatais não é absoluto, pois submete-se às regras do ordenamento jurídico, como forma de condicionar a sua própria atuação. E uma dessas regras é o respeito aos direitos fundamentais dos investigados, de não sofrerem o “assédio processual”.
Sendo certo que um deles, e o mais relevante, é o de não ser instaurada a persecução estatal, salvo se precedida de uma causa justa e lícita, capaz de justificar a relativização do direito da intimidade que todas as pessoas gozam.
Assim, mesmo que cada um dos membros do Ministério Público seja destinatário da independência funcional (ser livre em sua consciência e atitudes), tal prerrogativa não é absoluta quando confrontada com os direitos e as garantias individuais dos cidadãos.
Da mesma forma o poder disciplinar, mesmo sendo livre, encontra barreiras para a sua livre instauração.
Deve haver a devida proporcionalidade em seus atos, tendo em vista que os membros do Ministério Público ou da esfera correicional possuem como missão institucional a defesa de interesses sociais, estando assim investidos das funções de acusadores e garantidores da cidadania.
Ao servir a sociedade e ao poder público, é vedado aniquilar-se ou subverter-se as garantias fundamentais da parte investigada para que ela não sofra transtornos em seu direito de manter-se inviolável em sua intimidade, salvo por uma justa causa.
A independência funcional dos membros do poder persecutório estatal deve se compatibilizar com uma atuação controlada pelos princípios norteadores do direito e da justiça, não se desvinculando, de forma alguma aos direitos fundamentais dos agentes investigados, sob pena de assédio.
Por essa razão não concordamos com a seguinte afirmação do ilustre Emerson Garcia, quando aborda que a forma de atuação do membro do parquet “é insuscetível de qualquer controle, sendo ampla a liberdade de valoração.”28
Nessa divergência ao ilustre mestre se cinge ao fato que o poder de atuação do membro do Ministério Público não é absoluto visto que se submete ao plasmado da Constituição Federal, as disposições constantes do ordenamento jurídico e ao direito, sem que com isso haja desnaturação da sua independência funcional, tão necessária à sua atuação livre e justa, em prol da coletividade.
O controle que defendemos é aquele que estabelece nos direitos fundamentais das partes à serem investigadas, a devida barreira a sua atuação injusta e açodada, capaz de beirar o próprio abuso e arbítrio do direito de investigar ou de acusar (assedio processual).
Nenhum poder é incontrolável ou destituído de limites, até o do membro do Ministério Público, que age justamente em nome da sociedade (de todos os cidadãos).
Pensar de modo diverso é abrir a possibilidade de um poder ser absoluto e não possuir limites, podendo atuar, e devassar a vida de quem bem lhe aprouver de maneira arbitrária ou não.
Por essa razão é que afirmamos, que o poder de investigação do Ministério Público não é mais importante do que o direito da parte de não ser molestada se ela não praticar, ao menos em tese, um ato vedado pelo ordenamento jurídico, capaz de validar a própria atuação ministerial.
Do contrário, haverá abuso do direito de investigar/acionar do Ministério Público. Devendo tal situação ser fiscalizada pelo Poder Judiciário, último guardião dos direitos fundamentais das pessoas e que não está vinculado aos atos ilegais praticados por nenhum dos poderes da República.
Por isso haverá abuso do direito de investigação se ocorrer o manejo do inquérito civil, proposição da ação civil pública ou até mesmo a instauração da persecução disciplinar sem o mínimo de plausibilidade jurídica, respaldadas por provas lícitas, em decorrência de que a investigação genérica, sem um fato previamente determinado, afronta o princípio da intimidade, da honra, da vida privada e da imagem das pessoas, constituindo-se em “assédio processual”.