4. DA NECESSIDADE DE JUSTA CAUSA CAPAZ DE DAR SUPORTE AO PODER PERSECUTÓRIO DO ESTADO
O poder investigatório do Estado, tal qual a instauração da jurisdição não pode ser ato irresponsável, de força, arbítrio ou de “assédio processual”, pois é matéria pacífica tanto na doutrina quanto na jurisprudência que nos casos de ilegalidade (ausência de justa causa), de desvio de finalidade ou de poder ou na falta de atribuições é que o Poder Judiciário deverá determinar o trancamento da investigação penal ou cível.
Tal posicionamento é endossado por Emerson Garcia e Rogério Pacheco Alves:29
“(...) deve-se conceber tal possibilidade como algo excepcional, destinando-a a hipótese de manifesta ilegalidade e arbitrariedade. (...) Como já adiantado, patentes ilegalidade e dão ensejo à utilização do mandado de segurança. (...) Por último, deve-se ressaltar que o mandado de segurança é o instrumento adequado a alcançar o encerramento das investigações (trancamento) nas hipóteses evidentes de ilegalidade ou abuso de poder.”
Entendemos que a justa causa para a instauração do processo penal também deverá estar presente no âmbito do direito administrativo (disciplinar, inquérito civil, ação civil pública, etc.), pois a Constituição Federal garante o direito à inviolabilidade da honra e da vida privada do cidadão, sem distinguir, inclusive, se ele é ou não agente público.
Justa causa exprime, em sentido lato, toda razão que possa justificar a legitimidade ou a procedência de determinado ato perante o direito.30
Ou, pelas palavras de De Plácido e Silva,31 significa:
“O motivo que possa ser alegado, porque está amparado em lei ou procede de fato justo. Mas a rigor, segundo o sentido de justo, que significa o que de direito, e causa, motivo, razão, origem, é necessário que o que se alega ou se avoca, para mostrar a justa causa, seja realmente amparado na lei ou no direito, ou, não contrariando a este, se funde na razão e na equidade.”
No processo administrativo disciplinar, tal qual no inquérito civil ou no ajuizamento da ação civil pública, a justa causa identifica-se com o justo, revelado através de uma coerente acusação/investigação, onde existam provas indiretas ou provas diretas da prática de atos ilícitos, por parte dos agentes públicos, ligados ao exercício da função pública ou em virtude dela.
Justamente para manter esse equilíbrio, tanto no processo penal como no âmbito do direito administrativo devem buscar sempre o justo, que deriva do latim justus, e representa a justiça e o direito.
Pelo direito justo retira-se o abuso do poder do Estado, em razão de que a dignidade da pessoa é preservada pela norma jurídica.
Nesse contexto, o justo deve identificar-se com o direito, em decorrência de que ele está unido ao honesto (correto). Direito justo, para Karl Larenz, “es un peculiar modo de ser del Derecho positivo”32
Em assim sendo, para evitar a temeridade do poder, o direito elegeu uma justa causa para contrapor a causa genérica ou inconsistente, como elemento essencial da instauração de processos penais ou administrativos.
Essa é a medida fundamental de segurança jurídica, para que não haja um retrocesso do Poder Público com denuncismos irresponsáveis, lembrando-se a época da ditadura militar, onde a existência de um fato punível era o mero juízo de valor negativo, desatrelado de provas diretas.
Bastava haver uma delação, uma suspeita, pouco importando a sua consistência e convicção política, que de um momento para outro, o cidadão cumpridor dos seus deveres civis passava a ser tido como um subversivo.
Esses tempos de ditadura contrários ao estado democrático de direito foram extintos de nosso sistema de governo, para não serem jamais revividos.
Dessa forma, como medida de segurança, para que alguém possa ser submetido a julgamento, deve estar presente a justa causa para a acusação, como aduzido por Maria Thereza Rocha de Assis Moura:33
“Tomando-o como sustentáculo, segue-se que, para que alguém possa ser submetido a julgamento, deve existir justa causa para a acusação, sob pena de esta se transformar em instrumento de coação ilegal, contra a liberdade jurídica do acusado, passível de ser mediada por meio de habeas corpus.” -[Itálico no original]-
Nesse diapasão, justa causa é aquela “que é conforme o direito, (...) se o juiz recebe uma denúncia por fato atípico, cabível o remédio heroico, por falta de justa causa; se recebe uma denúncia sem lastro probatório, falta o interesse processual e, de conseguinte, justa causa. Aliás, a expressão ‘falta de justa causa’ é tão ampla que chega a abranger todas as outras hipóteses elencadas nos demais incisos do art. 648.”34 –[Aspas no original]-
Novamente, registramos o elucidativo posicionamento de Maria Thereza Rocha de Assis Moura,35 verbis:
“A justa causa para a ação penal de natureza condenatória, no direito penal brasileiro, não sobressai apenas dos elementos formais da acusação, mas, também e de modo principal, de sua fidelidade para com a prova que demonstre a legitimidade da acusação. 4.1. Desta conclusão emana que não basta que a peça acusatória impute ao acusado conduta típica, ilícita e culpável. A denúncia ou queixa deve guardar ressonância e estrita fidelidade aos elementos que lhe dão arrimo, sem o que não passará de ato arbitrário, autoritário, que a ordem jurídica não pode tolerar. 4.2. Segue, ainda, que a necessidade da existência de justa causa para a acusação serve como mecanismo para impedir, em hipótese, a ocorrência de imputação formal infundada, temerária, caluniosa e profundamente imoral.”
Em sendo assim, a justa causa é a condição mínima exigida pela norma legal, pela jurisprudência e doutrinariamente para que não ocorra uma acusação sem fundamento (sem prova direta) e temerária, movida por interesses que não são jurídicos, totalmente desprovida de embasamentos sérios, que não configurem a legitimidade da acusação.
Exige-se a justa causa como condição para a instauração do processo penal, processo administrativo disciplinar , inquérito civil e, por fim, para a ação de improbidade administrativa, entre outros tipos de investigação pois em todas essas situações jurídicas é atingido o status dignitatis do acusado.
Por essa razão, é necessário a comprovação indicativa suficiente em relação a autoria e a materialidade; observando-se a necessidade da existência de prova direta como condição da instauração dos processos acima referidos, para que eles correspondam a legalidade da acusação ou da própria investigação.
Só existe a obrigatoriedade da instauração de um dos processos legais declinados quando presente a justa causa, resultante do fundamento da acusação, com a descrição circunstanciada e detalhada dos fatos, acompanhados das provas diretas, que mesmo superficiais, reforçam a tese de que houve a prática de uma infração. A “probable cause” liga-se à existência de um juízo de probabilidade de condenação para justificar a instauração do processo. Sendo que esse juízo inicial de probabilidade indica, mesmo que superficialmente, que houve um ato ilícito cometido pelo acusado, merecedor de uma persecução investigatória, para se buscar a verdade real dos fatos.
Sem essa base de fundamentação, a acusação é insustentável, pois a subjetividade da opinio delicti não é algo efêmero, devendo ser justa, equilibrada, plausível e baseada no texto legal, sem que haja “assédio processual”.
Não se pode violar o direito de qualquer pessoa em decorrência de uma simples suspeita, sob pena de configurar constrangimento ilegal e distanciamento do direito. Por isso é que a justa causa se prende na fundamentação da acusação, cotejada aos seus elementos de base de sustentação, devendo o acusador possuir conduta ética, tendo em vista que a denúncia ou outra peça processual acusatória não podem configurar-se como um abuso/excesso de poder para quem ostenta a condição de acusado.
O fundamento da acusação exige um mínimo de plausibilidade, com uma increpação em termos de justa causa.
A ausência de justa causa impede a válida e legítima instauração de processos ou procedimentos penais36 e administrativos, pois nada pode justificar o abuso de poder, decorrente de uma acusação arbitrária ou injusta, capaz de acarretar um constrangimento ilegal para quem é injustamente colocado na condição de acusado.
Na atual fase do Direito Público não se admitem mais atos desatrelados da legalidade, pois o poder deve ser exercido de forma equilibrada e legal, trazendo para toda sociedade a devida paz e segurança jurídica, não podendo ser, via de consequência, um instrumento da opressão.
Ou, como aduz o jus-filósofo da era moderna Alf Ross:37
“O poder não é conferido às autoridades públicas para ser exercido como elas queiram, mas para ser exercido de acordo com as regras estabelecidas ou princípios gerais pressupostos.”
Para se iniciar qualquer tipo de investigação disciplinar, é necessário que haja a justa causa.
A locução justa causa não tem emprego exclusivo no Direito Penal, ela se incorpora e se projeta para o domínio do direito sancionador estatal, aí incluída a esfera disciplinar.38
A justa causa para a persecução disciplinar está vinculada ao exercício funcional irregular do servidor público.
Esse exercício irregular das funções públicas, explicitado pela prática de ato comissivo ou omissivo, deverá estar interligada direta ou indiretamente ao cargo/emprego do servidor ou decorrente do mesmo, evidenciando a autoria e a materialidade do que se pretende investigar.
A existência de justa causa é condução sine qua non para a instauração de sindicância ou de processo administrativo disciplinar, pois sem elementos materiais (objetivos) não pode o administrador público devassar a vida do servidor público sob o pálido argumento de tentar encontrar indícios de uma pseudo infração disciplinar.
Até mesmo na instauração de sindicância, segundo o parágrafo único do art. 27, da Lei nº 13.869/2019, deverá ter motivação suficiente capaz de justificar a sua instauração.
O processo administrativo disciplinar poderá ser instaurado sempre que a autoridade pública tiver ciência de qualquer irregularidade funcional perpetrada por servidor público. Mas essa ciência deverá vir composta por elementos (indícios) que comprovem, em tese, falta dos deveres ou as obrigações da função (autoria e materialidade), se não uma acusação genérica, desatrelada de substrato jurídico e fático.
Ou, como advertido por J. Guimarães Menegale:39
“O uso do poder disciplinar não é arbitrário, não o faz a autoridade quando lhe aprouver, nem como preferir.”
Tal princípio vige também no escopo da ação de improbidade administrativa, onde o art. 17, § 6º, da Lei nº 8.429/92 estabelece que a demanda somente poderá ser iniciada se tiver justificação que contenham indícios suficientes da prática do ato de improbidade administrativa ou com razões fundamentadas da impossibilidade de apresentação de qualquer dessas provas.
Com a acuidade de sempre, o Min. Napoleão Nunes Maia Filho, em sede doutrinária, ratifica o que foi dito:40
“Com efeito, a formulação de qualquer iniciativa judicial, máxime aquela que carrega pretensão sancionadora, é uma atividade jurídica complexa e de altíssima responsabilidade, que exige do seu autor a mais esmerada atenção, para que a formulação contenha a exata e completa descrição do fato imputado a determinada pessoa, justamente o fato que serve de suporte àquela iniciativa, acompanhado da demonstração prévia de sua concretude (existência material) e de indícios seguros de quem seja agente (autoria).
Sem essa perfeita e rigorosa delimitação das coisas, não se tem a presença da Justa causa para a promoção intentada, e a sua aceitação (da promoção) – se porventura ocorrente – significará apenas e só um ato manifestante de abuso ou tirania processual, ao qual o direito nega peremptoriamente abonos.” (g.n.)
Nesse ponto, bem destaca o eminente Ministro CÉSAR ASFOR ROCHA41:
“Devo me referir que alguns autores entendem, mas sem razão, ao meu ver que a justa causa estaria encampada pela possibilidade jurídica, ou pelo interesse, de sorte que, mesmo respeitando essa posição (...) Pois essa exigência (a da justa causa) a esse cortejo de efeitos também se fazem presentes na análise da inicial da ação por ato de improbidade administrativa (e de todas as ações sancionadoras), que deverá trazer no seu contexto a demonstração da seriedade e da consistência da promoção, mostrando - não apenas com esforço narrativo, mas com elementos materiais seguros e confiáveis - a materialidade do ilícito que se aponta e indicando, também com dados suficientes, seguros e sérios, quem seja o seu praticante; pode-se afirmar que sem essa demonstração objetiva, não estará satisfeita a exigência da justa causa.”
No mesmo teor, no voto condutor do Ag. Int. em REsp nº 932810/ES, Min. Napoleão Nunes Maia Filho, 1ª T., SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA – STJ, DJ de 3.10.2018, é destaca:
“(...)
5. A imprescindibilidade da comprovação da justa causa decorre da possível utilização do direito de ação de forma temerária, que, conforme sustenta o jurista MAURO ROBERTO GOMES DE MATTOS, sem provas ou elementos de convicção para o julgador, deve ser rejeitada (O Limite da Improbidade Administrativa: Comentários à Lei 8.429/92, Rio de Janeiro: Forense, 2001, p. 552).
(...)”
Sob o prisma doutrinário, em laço de extrema felicidade, o Min. Napoleão Nunes Maia Filho,42 deixa explícito que a justa causa funciona como um freio às acusações desatentas, sem a menor base de sustentação empírica.
Essas acusações natimortas, se transformam em meio de tormento na vida funcional do servidor público, trazendo-lhe dor e dano irreparável à sua moral e à sua saúde, em detrimento da busca do direito e da justiça.
Segundo muito bem observa doutrinariamente a Min. Maria Thereza Rocha de Assis Moura43, a prova induzidora da ocorrência de um fato delituoso, na hipótese, a prova ou indícios de autoria, apurados em inquérito policial ou nas peças de informação que acompanham a acusação, formam o binômio que dá consistência à iniciativa sancionadora, sem a qual inexiste justa causa para a instauração do processo penal.
Ausente a tipicidade da conduta, extinta a punibilidade (prescrição) ou verificada a ausência de indícios de autoria ou de prova sobre a materialidade44 da infração disciplinar, não haverá justa causa para dar início a uma investigação disciplinar.
Essa valoração é necessária com o objetivo que seja feita a devida filtragem legal, para não submeter o servidor público ao constrangimento de ser investigado e julgado na esfera disciplinar sem nenhum amparo legal, com todos os inconvenientes dela advindos.
Nesse sentido, apesar de constituir, em tese, um direito-dever da Administração Pública a abertura de sindicância ou instauração de processo administrativo disciplinar, a 3a Seção do Superior Tribunal de Justiça,45 estabeleceu que os princípios da boa-fé e da segurança jurídica e, “ainda a repercussão negativa na esfera funcional, familiar e pessoal do servidor público”, acarretam a necessidade de justa causa para o início da aludida jurisdição administrativa.
Em outro expressivo julgado, a 5ª Turma do STJ, no RMS nº 11.587/STJ46 anulou uma punição levada a efeito contra o servidor público militar, exatamente por não ter ficado caracterizada a justa causa que embasou o processo disciplinar, verbis:
“(...) III – Descaracterizada a transgressão disciplinar pela inexistência de violação ao Estatuto e Regulamento Disciplinar da Polícia Militar de Santa Catarina, desaparece a justa causa que embasou o processo disciplinar, anulando-se em consequência a punição administrativa aplicada (...).”
Consagrado tal princípio para o Direito Administrativo disciplinar, o Superior Tribunal de Justiça pontificou:47
STJ “Configura-se admissível o trancamento do processo administrativo disciplinar em face da manifesta e inequívoca ausência do elemento subjetivo da conduta”
Também prestigiam a necessidade de juta causa os demais Tribunais Regionais Federais.48
Não é lícito e nem factível que ainda ocorram acusações genéricas contra agentes, ferindo sua intimidade, honra objetiva e subjetiva etc. O direito não permite processos de caráter aberto, sem que haja uma justa causa, inclusive contra servidores públicos, que renderão ou não espaço na imprensa escrita e falada contra seus nomes.49