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Teoria constitucionalista do delito

08/02/2006 às 00:00
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O lançamento da 2ª edição do livro Direito penal – Parte geral (Teoria constitucionalista do delito), que acontecerá nos próximos dias, é ocasião mais que oportuna para conclamar a todos a conhecer um novo modelo de delito muito pouco conhecido ou desenvolvido no Brasil, pela ciência penal, durante todo o século XX.

Este princípio de novo milênio constitui um momento muito apropriado para evidenciar que se pode estudar a teoria do delito de acordo com uma nova perspectiva.

Sabe-se que ao longo do século XX a teoria do delito foi construída sobre bases naturalistas (teoria causal naturalista de von Liszt/Beling), sob a inspiração da filosofia dos valores (teoria neokantista, que teve como protagonista maior Mezger), sobre bases ontológicas (finalismo de Welzel, que partia de duas realidades lógico-objetivas: a natureza final da ação e a autodeterminação do ser humano, que teriam a função de vincular o legislador), sob o condicionamento do sistema aos fins da pena (funcionalismo teleológico moderado de Roxin) ou da norma (funcionalismo sistêmico de Jakobs) etc.

No livro citado procuramos abordar a teoria do delito de acordo com a perspectiva de uma nova síntese, fundada em bases constitucionalistas. A lógica estrutural, bastante simplificada, é a seguinte: os princípios, regras e valores constitucionais condicionam os fins do Direito penal; o Direito penal só pode cumprir seus fins (de tutela de bens jurídicos, de redução da violência etc.) por meio de normas; a estrutura e a lógica das normas condicionam a teoria do delito. Conclusão: a teoria do delito está diretamente atrelada ao modelo de Estado vigente, que é o Constitucional e Democrático de Direito.

Uma das conseqüências mais notáveis dessa visão constitucionalista consiste em admitir que o delito só pode ter existência quando o bem jurídico protegido pela norma (que, além de imperativa, é também valorativa) for concretamente afetado (lesado ou posto em perigo). Já não basta, para a tipicidade penal, somente sua concretização formal (que se esgota nas clássicas categorias da conduta, resultado naturalístico – nos crimes materiais -, nexo de causalidade e adequação típica formal).

Para além dessa dimensão puramente formal ou ontológica ou objetiva, a tipicidade ainda requer uma dimensão axiológica ou material, ou seja, a produção de um resultado jurídico desvalioso, que é exigido em todo delito, por força do art. 13 do Código penal brasileiro, que diz: "O resultado, de que depende a existência do crime..."). Não há crime, portanto, sem resultado. Esse resultado (que está presente em todo crime) só pode ser o jurídico e consiste numa lesão ou perigo concreto de lesão ao bem jurídico. Nullum crimen sine iniuria.

O resultado jurídico para ser penalmente relevante deve ser desvalioso. E é desvalioso quando for : (a) objetivamente imputável à conduta do agente (leia-se: fruto de uma conduta praticada no contexto de um risco proibido relevante – imputação objetiva da conduta); (b) real ou concreto (em virtude do princípio da ofensividade está proibido no Direito penal o perigo abstrato); (c) transcendental (afetação de terceiros – princípio da alteralidade); (d) grave (resultado insignificante está regido pelo princípio da insignificância); (e) intolerável (resultados tolerados não são juridicamente relevantes) e (f) objetivamente imputável ao risco criado (imputação objetiva do resultado).

Preenchidas as seis exigências que acabam de ser enumeradas, pode-se concluir que o resultado jurídico conta com relevância penal. Só assim é que se pode falar em tipicidade material, que passa a contar com todos esses requisitos novos. Já não basta que o fato seja formalmente típico. Ele deve ser também materialmente típico. Tipicidade penal, portanto, significa (doravante) tipicidade formal + tipicidade material.

Todos contam com o direito de discordar da construção constitucionalista do delito que acaba de ser esboçada, mas não podem ignorá-la. Quem, nos dias atuais, não conhece ou pouco sabe sobre as dimensões de garantia do princípio da ofensividade, sobre a influência que os princípios político-criminais exercem sobre a teoria do delito (Roxin), sobre imputação objetiva, funcionalismo, tipicidade conglobante de Zaffaroni etc., já não é um penalista do terceiro milênio. Atualização continuada: esse é o desafio permanente e duradouro que guia a transitoriedade e fugacidade da existência humana.

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Sobre o autor
Luiz Flávio Gomes

Doutor em Direito Penal pela Universidade Complutense de Madri – UCM e Mestre em Direito Penal pela Universidade de São Paulo – USP. Diretor-presidente do Instituto Avante Brasil. Jurista e Professor de Direito Penal e de Processo Penal em vários cursos de pós-graduação no Brasil e no exterior. Autor de vários livros jurídicos e de artigos publicados em periódicos nacionais e estrangeiros. Foi Promotor de Justiça (1980 a 1983), Juiz de Direito (1983 a 1998) e Advogado (1999 a 2001). Estou no www.luizflaviogomes.com

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GOMES, Luiz Flávio. Teoria constitucionalista do delito. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 950, 8 fev. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/7931. Acesso em: 3 mai. 2024.

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