5. DIREITOS FUNDAMENTAIS APLICAM-SE ÀS RELAÇÕES PRIVADAS
E não se diga que o estatuto das liberdades públicas (Direitos Fundamentais) se restringe à esfera das relações verticais entre o Estado e o indivíduo, pois também incide sobre o domínio em que se processam as relações de caráter meramente privado, ou seja, nas relações horizontais.
O Supremo Tribunal Federal Brasileiro, hodiernamente, no Recurso Extraordinário nº 201.819, na lavra do Ministro Gilmar Mendes, decisão datada de 11/10/2005, assentou que os direitos fundamentais projetam-se numa perspectiva de ordem vertical e horizontal, isto é, tanto nas relações do cidadão com o Estado como nas relações privadas, de indivíduo com indivíduo.
A Ministra Ellen Gracie [38] registrou que:
Um entendimento segundo o qual os direitos fundamentais atuam de forma unilateral na relação entre o cidadão e o Estado acaba por legitimar a idéia de que haveria para o cidadão sempre um espaço livre de qualquer ingerência estatal. A adoção dessa orientação suscitaria problemas de difícil solução tanto no plano teórico, como no plano prático. O próprio campo do Direito Civil está prenhe de conflitos de interesses com repercussão no âmbito dos direitos fundamentais. O benefício concedido a um cidadão configura, não raras vezes, a imposição de restrição a outrem. (...)
Sob o império da Lei Fundamental de Bonn engajou-se Hans Carl Nipperdey em favor da aplicação direta dos direitos fundamentais no âmbito das relações privadas, o que acabou por provocar um claro posicionamento do Tribunal Superior do Trabalho em favor dessa orientação (unmittelbare Drittwirkung).
O Tribunal do Trabalho assim justificou o seu entendimento:
"Em verdade, nem todos, mas uma série de direitos fundamentais destinam-se não apenas a garantir os direitos de liberdade em face do Estado, mas também a estabelecer as bases essenciais da vida social. Isso significa que disposições relacionadas com os direitos fundamentais devem ter aplicação direta nas relações privadas entre os indivíduos. Assim, os acordos de direito privado, os negócios e atos jurídicos não podem contrariar aquilo que se convencionou chamar ordem básica ou ordem pública".
Na mesma esteira, Ingo Wolfgang Sarlet [39] afirma que o debate doutrinário em torno do reconhecimento, ou não, de uma eficácia direta dos direitos e garantias fundamentais, com projeção imediata sobre as relações jurídicas entre particulares, assume um nítido caráter político-ideológico, assim caracterizado como
uma opção por uma eficácia direta traduz uma decisão política em prol de um constitucionalismo da igualdade, objetivando a efetividade do sistema de direitos e garantias fundamentais no âmbito do Estado social de Direito, ao passo que a concepção defensora de uma eficácia apenas indireta encontra-se atrelada ao constitucionalismo de inspiração liberal-burguesa.
Wilson Steinmetz [40] põe em destaque a significativa importância de estender-se, ao plano das relações de direito privado estabelecidas entre particulares, a cláusula de proteção das liberdades e garantias constitucionais, cuja incidência não se resume, apenas, ao âmbito das relações verticais entre os indivíduos, de um lado, e o Estado, de outro:
No marco normativo da CF, direitos fundamentais - exceto aqueles cujos sujeitos destinatários (sujeitos passivos ou obrigados) são exclusivamente os poderes públicos - vinculam os particulares. Essa vinculação se impõe com fundamento no princípio da supremacia da Constituição, no postulado da unidade material do ordenamento jurídico, na dimensão objetiva dos direitos fundamentais, no princípio constitucional da dignidade da pessoa (CF, art. 1º, III), no princípio constitucional da solidariedade (CF, art. 3°, I) e no princípio da aplicabilidade imediata dos direitos e das garantias fundamentais (CF, art. 5º, § 1º).
A autonomia privada – que encontra claras limitações de ordem jurídica – não pode ser exercida em detrimento ou com desrespeito aos direitos e garantias de terceiros, especialmente aqueles positivados em sede constitucional, pois a autonomia da vontade não confere aos particulares, no domínio de sua incidência e atuação, o poder de transgredir ou de ignorar as restrições postas e definidas pela própria CF, cuja eficácia e força normativa também se impõem, aos particulares, no âmbito de suas relações privadas, em tema de liberdades fundamentais.
Diante disso, os princípios constitucionais devem operar como limites à capacidade de auto-regulação dos grupos, na medida em que se faça necessário assegurar a eficácia de direitos fundamentais dos indivíduos em face do poder privado das associações.
Isso significa, portanto, que a ordem jurídico-constitucional brasileira não conferiu ao proprietário a possibilidade de agir à revelia dos bons costumes e convivência pacífica e, em especial, dos postulados que têm por fundamento direto o próprio texto da Constituição da República Federativa do Brasil, notadamente em tema de proteção às liberdades e garantias fundamentais. Mas deve o proprietário pautar-se dentro dos bons costumes e modos da comunidade onde vive, fazendo, assim, correto uso e gozo de sua propriedade. Prejudicando o sossego, a tranqüilidade, enfim, a qualidade de vida das pessoas com quem tem a obrigação de conviver, acaba fazendo a propriedade descumprir a sua função social, além de espancar o fundamento da própria CF, a dignidade da pessoa humana. Assim, a privação da propriedade desse indivíduo é medida que se impõe em prol da manutenção da ordem, da melhoria da qualidade de vida e, a partir de uma macro visão, da justiça social.
6. POSSIBILIDADES DE AÇÃO CONCRETA
A maneira de se concretizar, de acionar o Estado-Juiz para que tome providência necessária para privar ou restringir a propriedade do morador sociopata deve ser tema de outro estudo mais detalhado. Até porque envolve os vários institutos jurídicos de organização dos espaços urbanos previstos tanto no Código Civil Brasileiro como no Estatuto da Cidade, como por exemplo, desapropriação, servidão administrativa, limitações administrativas, instituição de zonas especiais de interesse social, parcelamento, edificação ou utilização compulsórios etc.
Todavia pode-se traçar algumas hipóteses.
Uma das possibilidades é mover ação judicial em face do Município solicitando ao Estado-Juiz que obrigue o ente público a desapropriar o imóvel, em razão do seu mau uso, em detrimento do interesse social e subutilizado, na forma do §3º do art.1228 do Código Civil: "O proprietário pode ser privado da coisa, nos casos de desapropriação, por necessidade ou utilidade pública ou interesse social, bem como no de requisição, em caso de perigo público iminente". E o §4º do art.182 da Constituição da República Federativa do Brasil: "É facultado ao Poder Público municipal, mediante lei específica para área incluída no plano diretor, exigir, nos termos da lei federal, do proprietário do solo urbano não edificado, subutilizado ou não utilizado, que promova seu adequado aproveitamento (...)".
Modus in rebus, conforme recente informativo do site Consultor Jurídico [41], a justiça dos EUA tem admitido desapropriação com fins comerciais, o que muito se aproxima do caso aqui estudado.
A Suprema Corte norte-americana decidiu que os Estados podem desapropriar terrenos em prol do desenvolvimento econômico. Os juízes entenderam que a transferência de propriedades para projetos do setor privado que criam empregos e movimentam o comércio é ação semelhante à construção de parques ou de uma nova avenida.
O Juiz John Paul Stevens entendeu que "a promoção do desenvolvimento econômico é uma função governamental tradicional e de longa aceitação", objetivo que, segundo ele, é mais bem atingido por meio da promoção de empreendimentos privados que pela propriedade estatal. Stevens foi acompanhado por Anthony Kennedy, David Souter, Ruth Bader Ginsburg e Stephen Breyer.
No caso concreto, a Suprema Corte decidiu sobre uma ação em que proprietários de casas no condomínio Fort Trumbul, em Connecticut, pleiteavam o direito de continuar em suas propriedades.
A polêmica girava em torno do conceito de uso público. De acordo com o artigo 5º da Constituição norte-americana o governo é proibido de desapropriar propriedades privadas "para uso público sem justa compensação". Segundo os donos de propriedades no condomínio, a desapropriação em questão não tem o objetivo de "uso público". Historicamente, a Corte tem entendido pela irrestrita competência estadual para decidir o que constitui uso público ou não.
Outra possibilidade é requerer provimento judicial no sentido de limitar as faculdades do proprietário, ou seja, impedindo o morador de, por exemplo, usar ou gozar de sua propriedade. Sua única possibilidade seria alienar ou locar. Tal solução resolveria o problema do restante dos moradores do condomínio – que poderiam voltar a ter uma vida tranqüila e uma convivência saudável – e ao mesmo tempo manteria a disposição da propriedade com o morador perturbador.
CONCLUSÃO
O morador proprietário de unidade habitacional em condomínio edilício, a princípio, tem as faculdades de usar, gozar e dispor de seu imóvel. Direito esse assegurado constitucionalmente, como liberdade pública, e infraconstitucionalmente. Ou seja, em regra, o Estado, nem ninguém, não pode interferir na sua propriedade.
Todavia, no exercício do direito de propriedade, o sujeito deve ter em mente também o direito de vizinhança que nada mais é do que uma limitação da liberdade pública.
A propriedade está vinculada diretamente ao atendimento da sua função social. Muito se tem discutido a respeito do que vem a ser a função social da propriedade, pelo que se entende, neste trabalho e conforme dispositivos legais citados, como sendo, não só o cumprimento das diretrizes e previsões do plano diretor municipal, como também, e principalmente, a implementação de qualidade de vida das pessoas e promoção de justiça social. Nessas duas últimas expressões se incluem o bem viver, a correta educação dos filhos, a boa convivência entre as pessoas, a preservação de bons costumes, enfim, a busca da excelência moral.
Assim, o morador de condomínio edilício que faz uso nocivo de sua propriedade, como barulho arrastando móveis, anda com trajes íntimos pelos corredores do edifício, estaciona seu veículo trancando outros, faz uso de substância entorpecente no edifício, mesmo após ter sido repreendido pelos moradores etc. é considerado como sociopata, anti-social.
A convenção do condomínio, o seu regimento interno, a legislação infraconstitucional e a própria Constituição da República Federativa do Brasil prevêem unicamente a cominação de multa em desfavor do morador anti-social, o que é insuficiente para resolução prática do problema.
Por outro lado, essa falta de bom senso e civilidade do morador sociopata constitui afronta à dignidade da pessoa humana, diga-se da dignidade das outras pessoas que moram no edifício. A dignidade da pessoa humana não é apenas princípio constitucional, mas é fundamento da própria República Federativa do Brasil.
Além disso, a propriedade deve cumprir uma função social. A função social implica em obediência ao plano diretor, qualidade de vida dos cidadãos e justiça social. Tal comportamento anti-social diminui a qualidade de vida dos outros moradores e não realiza justiça social, entendida como medidas tomadas em favor do coletivo, de maneira a afrontar mais uma vez um princípio constitucional.
Na colisão entre o direito de propriedade do morador anti-social e a dignidade das outras pessoas que moram no mesmo edifício, deve prevalecer a dignidade da pessoa humana, pois se trata de fundamento da República Federativa do Brasil e tem relação direta com os direitos de personalidade, além de ser referência constitucional unificadora de todos os direitos fundamentais. A dignidade da pessoa humana obriga a uma densificação valorativa que tenha em conta o seu amplo sentido normativo-constitucional. A afronta ao princípio da dignidade da pessoa humana constitui em verdadeiro descumprimento da função social da propriedade, o que justifica a privação da propriedade do morador sociopata.
O Supremo Tribunal Federal já decidiu que os direitos fundamentais não se aplicam somente nas relações verticais, ou seja, nas relações entre Estado e cidadão, mas também nas relações horizontais, isto é entre cidadãos.
O instrumento a ser utilizado para concretizar a privação da propriedade do morador deve ser tema de outro estudo, se limitando este a, abstratamente, investigar as possibilidades dentro do ordenamento jurídico brasileiro. No campo das conjecturas, pode-se aventar a possibilidade de acionar judicialmente o Município solicitando ao Estado-Juiz que obrigue o ente público a desapropriar o imóvel, em razão do seu mau uso, em detrimento do interesse social, portanto, subutilizado. Outra é requerer provimento judicial no sentido de limitar as faculdades do proprietário, ou seja, impedindo o morador de, por exemplo, usar ou gozar de sua propriedade. Suas alternativas seriam alienar ou alugar.
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