Justiça de transição

breve abordagem acerca do sétimo Princípio de Chicago e a democracia brasileira no que diz respeito ao exercício das atribuições dos órgãos policiais

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06/02/2020 às 23:25
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4. Observações acerca da segurança pública no Estado de Minas Gerais

Para entender a justiça de transição é necessário considerar que as medidas que devem ser adotadas na busca pela democracia não devem se restringir ao período de transição, porquanto a aplicação da justiça de transição não se limita às hipóteses de mudança de regime. É possível que não se trate necessariamente de mudança de regime, mas sim da existência de arbitrariedades e violações de direitos humanos no âmbito do próprio governo vigente (SERSALE DI CERISANO, 2013). Assim, a atual situação envolvendo a fase preliminar da persecução penal no Estado de Minas Gerais tem o condão de ilustrar a importância do debate.

Inicialmente, o Sistema Integrado de Defesa Social (SIDS), em funcionamento no âmbito da Secretaria de Estado de Defesa Social (SEDS) do Estado de Minas Gerais, permite a todos os órgãos de segurança pública (Polícia Civil, Polícia Militar e Corpo de Bombeiro Militar) a atribuição para procederem ao registro de fatos criminosos (REDS, procedimento equivalente ao tradicional Boletim de Ocorrência) (http://www.reds.sids.mg.gov.br/). Assim, é possível que qualquer desses fatos sejam registrados em repartição militar, inclusive com condução do preso em flagrante, antes da apresentação à autoridade responsável pela ratificação ou não do flagrante.

Tal conduta é justificada a partir de uma visão instrumentalista pautada, principalmente, na falta de estrutura de pessoal e material de outra instituição, de exclusivamente receber a demanda. Indubitavelmente o problema existe, não se discute a precariedade e falta de recursos nesse setor da segurança pública. Contudo, a solução harmônica ao Estado Democrático de Direito não parece ser a lógica do “quanto mais melhor” no sentido de, ao invés de haver uma reestruturação dos órgãos com atribuição constitucional com os investimentos que não apenas são necessários, mas são emergenciais, haver atos violadores de normas constitucionais.

Nessa direção, com o mesmo argumento utilitarista supracitado somado à existência de um plantão regionalizado que, não raras vezes, obriga extensos deslocamentos por partes dos militares (igualmente o problema é existente e solucionável a partir de investimentos públicos nos respectivos setores de segurança), e o baixo número de servidores da Polícia Civil, iniciou-se o debate acerca da lavratura do Termo Circunstanciado de Ocorrência também pela Polícia Militar[10] [11]. Em um primeiro momento em regiões especificas através de espécies de termos de cooperação entre a Polícia Militar e membros do Ministério Público Estadual e decisões judiciais de primeira instância no que tange a aplicação do procedimento na delimitação territorial da respectiva comarca. Depois, pelo conteúdo da própria Lei Estadual n. 22.257/2016.

A investigação criminal por agente alheio à autoridade policial viola todo sistema legal e constitucional dedicado ao Estado-investigação. Nesta direção, O art. 2º, §1º, da Lei n. 12.830/2013, afirmou que “ao Delegado de Polícia, na qualidade de Autoridade Policial, cabe a condução da investigação criminal por meio de Inquérito Policial ou outro procedimento previsto em lei” (ex.: art. 69 da Lei n. 9.099/95, TCO). Destarte, dentro do contexto policial, representações judiciais de medidas cautelares (ou outras providências investigativas) aptas a restringirem direitos individuais em busca da elucidação de fato criminoso não militar, revela verdadeira aberração jurídica quando não subscritas (ou dirigidas) pelo Delegado de Polícia. Tem-se um ato arbitrário, utilitarista e sem fundamento democrático denotando grave afronta a direitos fundamentais em eventual acolhida pelo Poder Judiciário.

Nesta direção, a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica, promulgado no Brasil por meio do Decreto n. 678 de 1992) no item 5, do art. 7º, ao tratar do direito à liberdade pessoal, expressa que toda pessoa detida ou retida deve ser conduzida sem demora à presença do juiz ou outra autoridade autorizada pela lei a exercer funções judiciais. No caso brasileiro, considerando a organização legal das duas fases da persecução penal (administrativa e judicial), essa autoridade é o delegado de polícia (integrante do Poder Executivo) no exercício de funções judiciais. Assim, à corroborar a possibilidade de uma autoridade administrativa (delegado de polícia) exercer função judicial, o item 6 do mesmo dispositivo internacional analisado, infere que, a decisão da primeira autoridade de garantia poderá ser revista através de recurso dirigido a um juiz (Poder Judiciário), ou seja, a autoridade judicial poderá revisar o ato da autoridade administrativa no exercício de função judicial. Nos países em que essa primeira análise de legalidade da prisão é realizada por um juiz, a Convenção prevê a possibilidade de recurso a um tribunal. Destarte, no sistema processual penal brasileiro, em consonância com convenção internacional, é direito da pessoa presa ser apresentada imediatamente a um delegado de polícia previamente constituído para o ato.

Além da função judicial exercida no ato de apresentação do preso em flagrante, em que o delegado realizará o primeiro juízo de tipicidade do fato, importante destacar que, no curso do inquérito policial existem medidas investigatórias que são decididas exclusivamente pelo Estado-juiz (reserva absoluta) e medidas que são decididas pelo Estado-investigador com posterior controle do Estado-juiz (reserva relativa), denotando que o ordenamento brasileiro adotou o sistema de reserva absoluta e relativa da jurisdição. A jurisprudência brasileira, em consonância com o sistema legal e constitucional de atribuições da Polícia Judiciária, reconhece a legitimidade do delegado em peticionar junto ao Poder Judiciário providências ou medidas cautelares necessárias à eficácia da investigação criminal, sem descartar a possibilidade de parecer opinativo do Ministério Público (TRF-4, A.I. n. 5032332-92.2014.404.0000/RS; TRF-1, proc. n. 1458-22.2013.4.01.3819; STF, RE n. 593.727) (ANSELMO et. al., 2016).

Nesse cenário, em assembleia realizada no dia 11 de janeiro de 2016, o Sindicato dos Delegados de Polícia do Estado de Minas Gerais (SINDEPOMINAS), dentre outras deliberações, decidiu pela formalização de ofícios à Defensoria Pública e a OAB, solicitando que levem aos Tribunais Internacionais as questões de TCO e solicitações e cumprimento de mandado de busca e apreensão representados pela PMMG, com base na violação de Direitos Humanos e pela elaboração de ofício à Comissão Interamericana de Direitos Humanos, por violação de Direitos Humanos pela formalização de TCO e representação e cumprimento de mandado de busca e apreensão pela PMMG. Contudo, tais medidas ainda não foram concretizadas.

De acordo com a redação do art. 191 da Lei Estadual n. 22.257/2016, “o termo circunstanciado de ocorrência, de que trata a Lei Federal nº 9.099, de 26 de setembro de 1995, poderá ser lavrado por todos os integrantes dos órgãos a que se referem os incisos IV e V do caput do art. 144 da Constituição da República.

O citado dispositivo foi vetado pelo Poder Executivo. Contudo, o veto foi derrubado pela ALMG em 8/12/2016 e a lei promulgada com o texto originário. De acordo com a argumentação do Governador do Estado, o termo circunstanciado de ocorrência não é um mero registro de crime, mas um substituto de inquérito policial, em casos de menor potencial ofensivo. Por essa razão, o veto seria necessário, uma vez que a Constituição atribui apenas à União legislar sobre matéria processual.

Neste sentido, o citado art. 191 que confere à Polícia Militar a possibilidade de lavrar termo circunstanciado foi objeto de Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI 5637) ajuizada pela Associação dos Delegados de Polícia do Brasil junto ao STF. Em síntese, argui-se a violação de competência privativa da União para legislar sobre processo penal (art. 22, I, CRFB) e a contrariedade da matéria com as atribuições policiais constitucionalmente fixadas (art. 144, §§4º e 5º). Da análise do processo, que ainda se encontra em andamento, verifica-se manifestação da AGU (Advocacia Geral da União) pela inconstitucionalidade do dispositivo questionado[12]; do CONAMP (Conselho Nacional do Ministério Público) requerendo a admissão como amicus curiae e manifestando pela procedência da ADI tendo em vista a inconstitucionalidade do dispositivo questionado; do Conselho Nacional dos Procuradores Gerais dos Estados e da União igualmente requerendo a admissão como amicus curiae com base na relevância e repercussão da matéria; por fim, da ANASPRA (Associação Nacional de Entidades Representativas de Policiais Militares e Bombeiros Militares Estaduais) também requerendo a admissão como amicus curiae, oportunidade em que defende a constitucionalidade do dispositivo questionado (BRASIL, 2017).

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Não se pode negar a existência de um ponto que, talvez, esteja realmente atrás das alegações utilitaristas. A desmilitarização, que não pode ser confundida com restrição de direitos de policiais ou desarmamento, é um tema em debate no Congresso Nacional (exs.: PEC 102 e 430). Vários são os fatores, alheios ao objeto do presente estudo, que fomentam a discussão. Pode-se citar o alto índice de homicídios vitimando militares e civis, recomendação da Organização das Nações Unidas, efetivação do Programa Nacional de Direitos Humanos etc.

De outro lado, surge o debate do ciclo completo que autorizaria a execução de todos os atos de polícia administrativa e de polícia judiciária por corporação militar. O aparato militar utilizado para investigar crimes militares seria utilizado também na elucidação de crimes não militares. A legalização do TCO é um importante passo para essa corrente.

Todas as instituições policiais são dignas do mesmo respeito e importância constitucional, assim como os demais órgãos constitucionalmente organizados. A questão é de não se atropelar atribuições e garantias constitucionalmente asseguradas, sob pena de violação do Estado Democrático de Direito e consequente violação a direitos humanos. Não se pode negar a imprescindibilidade do debate acerca da reestruturação do modelo de segurança pública brasileira ou do próprio modelo de polícia. Entretanto, defender a realização do ciclo completo por instituição militarizada, nos moldes atualmente postos, além de irresponsável, denota flagrante violação às noções de devido processo (procedimento) legal com grave afronta a direitos fundamentais. Portanto, a discussão acerca do ciclo completo requer prévio debate sobre o modelo de polícia. Fora disso, usurpação de atribuição constitucional, especialmente referente a medidas limitadoras de direitos, expressa ruptura ao Estado Democrático de Direito.


Referências

ANSELMO, Márcio Adriano; BARBOSA, Ruchester Marreiros; GOMES, Rodrigo Carneiro; HOFFMANN, Henrique; MACHADO, Leonardo Marcondes. Investigação Criminal pela Polícia Judiciária. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2016.

BASSIOUNI, M. Cherif. The Chicago Principles on Post-Conflict Justice. International Human Rights Law Institute, 2007.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta dze Inconstitucionalidade n. 5637/MG. Relator: Ministro Edson Fachin. Ação em andamento. Disponível em: < http://www.stf.jus.br/portal/processo> Acesso em: 15 de junho de 2017.

JAPIASSU, Carlos Eduardo Adriano; SOUZA, Artur de Brito Gueiros. Justiça de Transição e os fins da pena. Revista Brasileira de Direito. ISSN 2238-0604. Passo Fundo, v. 12, n. 2, p. 207-222, jul/dez 2016.

________; MIGUENS, Marcela Siqueira. Justiça de Transição: uma aplicação dos princípios de Chicago à realidade brasileira. Revista Eletrônica de Direito Penal. ISSN 2318-4892. Brasília, v. 1, n. 1, p. 22-43, junho, 2013.

MADEIRA, Anderson Soares; PEREIRA, Fernanda Moreira Campos; VALE, Sergio Luiz Vasconcelos do. REPARAÇÃO: Principio Fundamental para Efetivação da Justiça de Transição no Brasil Pós Ditadura. Revista Eletrônica de Direito da Faculdade Estácio do Pará. ISSN 2359-3229. Pará, v. 01, n. 02, 2015.

MINISTÉRIO DOS DIREITOS HUMANOS. Observatório do PNDH-3. Disponível em: http://www.pndh3.sdh.gov.br/portal/sistema/sobre-o-pndh3. Acesso em: 15 de jun. 2017.

NICOLITT, André. Manual de Processo Penal. 6ª ed. rev., atual. e amp. Rio de Janeiro: Revista dos Tribunais, 2017.

SERSALE DI CERISANO, Federico. Justicia transicional en las Américas: el impacto del sistema interamericano. Revista IIDH, v. 57. p. 115-136. Jan/jun, 2013.

SILVA, Helder Pereira. O controle civil das Forças Armadas brasileiras após o advento do Ministério da Defesa. Conhecimento e Diversidade. Editora UnilaSalle. ISSN 2237-8049. Rio de Janeiro, v. 2, n. 3, p. 108-120, jul/dez 2010.

SINDEPOMINAS. Comissão de Prerrogativas. Análise da Resolução Conjunta nº 184/14 que institui protocolo de atuação operacional para registro e tramitação de procedimentos de natureza penal, tais como TCO, APFD e AAFAI. Disponível em: http://www.sindepominas.com.br/noticia/sindepominas-entrega-a-chefia-de-policia-parecer-contrario-a-resolucao-1842014. Acesso em: 15 de jun. 2017.

Sobre o autor
Eujecio Coutrim Lima Filho

Delegado de Polícia Civil no Estado de Minas Gerais. Doutor em Direito pela Universidade Estácio de Sá (UNESA, RJ). Mestre em Direito Público pela Universidade Estácio de Sá (UNESA, RJ). Especialista em Direito do Estado pela Universidade Federal do Estado da Bahia (UFBA, BA). Graduado em Direito pelo IESUS (BA). Professor de Direito Processual Penal na UNIFG (BA) e na FAVENORTE (MG). Professor nos cursos de pós-graduação da UNIFG/UNIGRAD (BA) e da ACADEPOL (MG). Ex-Advogado. Ex-Juiz Leigo do Tribunal de Justiça do Estado da Bahia. Autor de obras jurídicas. Colunista do Canal Ciências Criminais.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

Mais informações

Artigo publicado pela Revista dos Tribunais, Vol. 1012, fev./2020.

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