A divulgação da foto e do nome de pessoas presas e a mens legis da nova Lei de Abuso de Autoridade (Lei nº 13.869/2019)

12/02/2020 às 17:40
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O texto é um abordagem opinativa acerca da divulgação de fotos e nomes de pessoas presas sob perspectiva da nova lei de abuso de autoridade.

Texto e norma não se confundem. O texto normativo corresponde ao direito positivado pelo Estado, que traça, a partir da opção político-legislativa adotada, um horizonte de possibilidades para fins de futura interpretação. Por outro lado, a norma é o sentido construído a partir da interpretação sistemática de textos normativos.

Assim, o processo hermenêutico da interpretação deve ser compreendido como uma forma de revelação, por parte do intérprete, do sentido da norma jurídica extraído de um determinado dispositivo legal.

A teoria objetiva da hermenêutica jurídica, corrente predominante no direito contemporâneo, afirma que o referencial do processo de interpretação da norma jurídica deve ser a vontade da lei (mens legis), cabendo ao intérprete buscar a adaptação da lei à dinâmica social.

Nesse sentido, o processo hermenêutico deve se pautar na busca do sentido objetivo da lei, de modo a assegurar seus fins sociais e atender às exigências do bem comum.

Essa teoria superou o viés subjetivo da interpretação da norma, cujo foco era a busca da vontade do legislador (mens legislatoris). Como se vê, houve uma mudança do centro gravitacional do processo hermenêutico, que migrou do sujeito criador da norma para a norma em si. Ou seja, o plano de fundo da interpretação da norma jurídica deve ser o momento de sua aplicação, e não o de sua criação.

Portanto, a norma jurídica deve ser interpretada de modo dinâmico. Longe de ser um fato histórico, ela é viva e mutável, sendo, portanto, passível de adaptação. Uma vez inserida no ordenamento jurídico, a norma se desprende do legislador, adquirindo existência própria, objetiva e relativamente autônoma.

Postas essas premissas iniciais, cabe analisar qual é a mens legis da nova Lei de Abuso de Autoridade (Lei nº 13.869/2019), cuja entrada em vigor ocorreu em 3 de janeiro de 2020, especificamente nos artigos 13 e 38 do referido diploma legal, verbis:

Art. 13. Constranger o preso ou o detento, mediante violência, grave ameaça ou redução de sua capacidade de resistência, a:

I - exibir-se ou ter seu corpo ou parte dele exibido à curiosidade pública;

II - submeter-se a situação vexatória ou a constrangimento não autorizado em lei;

(...)

Pena - detenção, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa, sem prejuízo da pena cominada à violência.

(...)

Art. 38. Antecipar o responsável pelas investigações, por meio de comunicação, inclusive rede social, atribuição de culpa, antes de concluídas as apurações e formalizada a acusação:

Pena - detenção, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e multa.

Uma interpretação literal e simplista desses artigos motivou órgãos correcionais das forças de segurança e dos Ministérios Públicos a editarem normativos internos proibindo, de modo irrestrito, que seus membros divulgassem a foto e o nome de pessoas presas e/ou investigadas.

De plano, cabe ressaltar que não se questiona o direito fundamental do preso de ter sua honra e imagem preservadas, bem como a necessidade de coibir sua exposição abusiva pelos órgãos incumbidos da persecução penal. Também não se nega que, antes da vigência da lei, era comum a exposição de pessoas presas, exibidas como troféus à sociedade por meio da imprensa, por uma minoria de policiais que, buscando notoriedade para ascender institucionalmente, ou mesmo por vaidade, acabavam violando direitos fundamentais.

Contudo, é bem verdade que a sociedade tem o direito de ser informada sobre os trabalhos desenvolvidos pelos órgãos de segurança pública e que estes, por sua vez, podem e devem recorrer à imprensa no curso da investigação.

Partindo dessas premissas, o conflito deve ser analisado casuisticamente, por meio do sopesamento dos interesses conflitantes. O objetivo desse sopesamento é avaliar qual dos interesses – que, abstratamente, estão no mesmo nível – tem maior peso no caso concreto.

Primeiramente, passemos à análise do art. 13, I e II, da Lei de Abuso de Autoridade. O já transcrito artigo criminaliza a conduta da autoridade que expõe o preso ou parte de seu corpo à curiosidade pública ou o submete a situação vexatória.

Nesse caso, a mens legis é, sem dúvida, coibir algumas práticas abusivas que se tornaram praxe na rotina policial. Alguns exemplos são:

  1. a exibição de presos perfilados durante coletivas de imprensa;

  2. postagens em redes sociais nas quais policiais aparecem ao lado dos presos, comemorando o êxito de uma operação;

  3. o ato de levantar a cabeça do preso durante a escolta para que seja fotografado e filmado pela imprensa;

  4. entrevistas dentro de quartéis ou delegacias de polícia, nas quais repórteres realizam um verdadeiro interrogatório sub-reptício de presos, quase sempre seguido de um achincalhamento fervoroso;

  5. a gravação e divulgação de vídeos nos quais indivíduos aparecem pedindo desculpas por atitudes que desagradaram algum policial.

Entretanto, como já mencionado, a imprensa é uma ferramenta valiosa à disposição da investigação, podendo a Polícia ou o Ministério Público divulgar a imagem de pessoas presas/detidas em determinados casos.

Cabe lembrar que o acesso à informação é um direito fundamental (art. 5º, XIV, da Constituição Federal), não podendo nenhum policial obstaculizar o trabalho da imprensa, que, em lugares públicos, pode filmar pessoas presas durante escoltas policiais. Porém, é vedado franquear acesso à imprensa a espaços reservados de repartições policiais com o propósito de fotografar ou filmar pessoas presas.

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Outrossim, o crime só se configura se a exposição ocorrer após a prática de violência, grave ameaça ou redução da capacidade de resistência do preso. Assim, a divulgação de uma imagem que já esteja em posse da Polícia antes da prisão, como, verbi gratia, fotografias retiradas da rede social do investigado, não configura crime, pois não foram obtidas mediante nenhuma das elementares do tipo penal analisado.

Ademais, por motivos lógicos, não constitui crime a divulgação de retratos falados ou da imagem de uma pessoa presa, suspeita de ter praticado outros crimes ainda não elucidados. Aqui, o objetivo é a elucidação de crimes e a responsabilização penal do autor.

Outra prática que também não é vedada, mas sim estimulada, é a divulgação da lista de presos procurados, sobretudo os mais perigosos, nos moldes do Alerta Vermelho da Interpol ou do Baralho do Crime da Polícia Civil da Bahia.

A Lei de Abuso de Autoridade exige dolo específico, de modo que, para se considerar crime, a autoridade deve praticar a conduta descrita no tipo penal com a intenção de prejudicar outrem (preso), beneficiar a si próprio ou a terceiro ou, ainda, por mero capricho ou satisfação pessoal. Na ausência do dolo específico, a conduta é considerada atípica.

Quanto à divulgação apenas dos nomes de pessoas presas ou investigadas, não há qualquer vedação, pois o que o art. 38 da Lei de Abuso de Autoridade proíbe é a atribuição de culpa – juízo de certeza – antes de concluídas as apurações e formalizada a acusação pelo Ministério Público.

Arrematando, as autoridades elencadas no art. 2º da Lei nº 13.869/19 não podem se acovardar nem permitir que a criminalidade, de qualquer espécie, ganhe força, pois, sempre que agirem norteadas pelo interesse público, jamais poderão ser responsabilizadas criminalmente, uma vez que estará ausente o dolo específico.

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Sobre o autor
Yan Rêgo Brayner

Delegado de Polícia Civil do Estado do Piauí. Especialista em Ciências Criminais. Entusiasta de temas correlatos ao Direito Penal e à Investigação Criminal.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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