Muito se escreveu, nos últimos anos, sobre os desafios que se supõe dominarão a agenda mundial e, em particular, a de política externa dos Estados Unidos e de outras nações do mundo ocidental no século XXI. Tem-se dito, - repetindo, em parte, os dogmas do final do século XX -, que as questões entre Norte e Sul continuarão a ser muito mais importantes do que qualquer outra relação em um contexto global. Essa argumentação não é nova e tem sido a base para críticas acerca das alegadas deficiências da política exterior da nação reputada como a mais poderosa (e, pelo menos até o presente momento, sem contrapesos apreciáveis) do planeta (mormente após o final da Guerra Fria, em 1991), - ou seja, os Estados Unidos -, durante, pelo menos, uma geração.
Essas considerações, - repaginadas com inovadores ingredientes geopolíticos e inéditas modalidades de ações exteriorizantes, como as inerentes às denominadas “novas guerras”, em seu sentido mais restritivo -, tornaram-se, sem dúvida, mais visíveis nos últimos anos, em consequência de uma série de novas e renovadas questões que incluem a corrupção (em seus mais variados espectros e, sobretudo, os associados à uma formatação institucionalizada no seio do próprio Estado, seja no contexto dos “Estados falidos”, seja no âmbito dos “Estados subdesenvolvidos” ou “em permanente via de desenvolvimento”), além de uma grande parte das conhecidas pautas reivindicatórias do (ainda) chamado terceiro mundo: recursos, população, alimentos, comércio, investimentos, agenda ambiental e, preponderantemente, a crescente insatisfação entre os pobres, principalmente na Ásia, na África e na América Latina, devido à iníqua distribuição da riqueza entre as nações (insuficientemente resolvida através das agendas conservadoras das denominadas “democracias liberal e neoliberal”), associadas, em grande medida, a questões de (relativo, e nem sempre verdadeiro) protecionismo comercial.
Para a próxima geração, os perigos para o Sistema Internacional resultarão em grande parte de questões diretamente derivadas desses fatores, adicionadas, ainda, aos desafios que o denominado “conflito de civilizações” que o fundamentalismo religioso, materializado no Islamismo Radical (jihadismo), imporá, particularmente, às Democracias Ocidentais.
Ademais, não é (e não será) difícil prever o crescente desenvolvimento de novas e inovadoras tecnologias que tornarão, muito além das atuais, ainda mais proveitosa (em todos os sentidos) a extração de muitíssimos recursos do fundo do mar, incluindo petróleo em águas ultra profundas nas chamadas camadas de pré-sal. O controle dos mares (ou, em linguagem mais apropriada, disputas oceanopolíticas), será, nesse aspecto, de crescente importância para as nações e/ou outros protagonistas que buscam riquezas naturais, conforme já se vem observando, no caso particular da China, através da construção, - ao arrepio do direito internacional e de toda a sorte de tratados e convenções internacionais e mesmo de reiteradas condenações em tribunais internacionais -, de ilhas artificiais no Mar do Sul da China (MSC), em regiões distantes mais de 2.000km de suas costas e dentro de Zonas de Exploração Econômica Exclusiva (ZEEs) de outras nações, renovando, ainda que sobre porções marítimas, as mesmas disputas, de cunho territorial, que no século passado deram origem, em grande parte, às duas guerras mundiais, com ênfase na primeira (1914/18).
Ao mesmo tempo, a exploração dos recursos em novos espaços territoriais (incluindo a disputa pelo controle da geórbita terrestre) abrirá novo potencial de conflito, mormente em regiões desabitadas e/ou de soberania internacional compartilhada, como é o caso da Antártida. Ainda que seja cediço reconhecer que grande parte da riqueza mineral (e dos demais insumos fundamentais à sobrevivência e ao desenvolvimento socioeconômico) existentes no mundo já esteja alocada (direta ou indiretamente) no território (ou sob controle) das grandes potências, a concorrência pela disputa dos recursos fora do âmbito de seus respectivos domínios se travará no espaço soberano do chamado terceiro mundo e, particularmente, no acesso, via terrestre ou marítimo, a essas (diversas) porções geográficas (tradicionais e também novas e singulares) do planeta.
Visto que o petróleo (que, apesar de todos os esforços empreendidos para a sua plena substituição, continuará sendo, até no mínimo 2050, a principal riqueza mineral), além de outros recursos essenciais, destinado ao Japão, Europa Ocidental, Estados Unidos e, sobretudo, à China (com suas ambições globais) e à Índia (com suas aspirações regionais) tem que viajar milhares de quilômetros de oceanos e passar por críticos estreitos, estará invariavelmente sujeito a muitas formas de perturbações, sejam as lançadas por Estados (considerados por seus líderes como hostis), - em um contexto de “conflito tradicional” (por meio de uma reedição, ainda que dotada de novos elementos, de uma Segunda Guerra Fria) -, sejam as provocadas por grupos terroristas (trans ou paraestatais) muito bem estruturados e organizados, em um ambiente próprio de conflitos heterodoxos, ou mesmo, em uma inovadora concepção polemológica em que se dará o emprego heterogêneo de meios (mesclando instrumental militar ortodoxo e heterodoxo) mais próximos dos chamados “embates híbridos”.
Ademais, - no contexto atual das chamadas Guerras de Quarta Geração -, é cediço reconhecer que todas as suas particulares características (auto)limitadoras do emprego do poder militar estarão, mais do que nunca, presentes, - como a Bipolaridade Confrontativa Indireta (Assimetria Reversa Reflexa) ou a Assimetria Reversa (Direta) -, tornando, nesse sentido, as regras de engajamento muito mais restritivas em um ambiente geopolítico extremamente complexo e desafiador.
Além disso, é fato que o ambiente internacional, com especial ênfase no primeiro quartel do presente século, ainda contará com grande número de Estados que se debaterão com forças revolucionárias e reacionárias, decorrentes de novos e velhos nacionalismos étnicos e linguísticos, além de grupos internos, dotados de ameaçadores fanatismos religiosos, concepções identitárias e de outras naturezas dentro de um contexto mais amplo daquilo que se convencionou chamar, em uma leitura mais elástica da expressão, de “novas guerras” (cf. MARY KALDOR; In Defence of New Wars. In: Stability, n. 2 (1), v. 4, p. 1-16, 2013).
E, muito embora não existam mais os graves problemas decorrentes de grupos de orientação marxista-leninista ou maoísta, ou, em termos mais simplificados, comunista (em uma concepção propriamente ideológica) financiados pela Moscou dos tempos da Guerra Fria (ou pela China de MAO TSÉ-TUNG), outros grupos de orientação fundamentalista religiosa, de forma geral, e islâmica radical, de modo particular, - incluindo, adicionalmente, agrupamentos sociais de naturezas identitárias de modo amplo -, se apresentarão como novas e inovadoras ameaças, ainda muito mais difíceis de serem adequadamente equacionadas.
Conquanto o potencial para tais reviravoltas seja maior no (ainda) denominado terceiro mundo (com especial ênfase no Oriente Médio), - em que prevalece a existência de uma seleção heterogênea de Estados “em via de desenvolvimento”, “subdesenvolvidos” e “falidos” -, existe reconhecido potencial de idêntica ameaça em alguns dos mais antigos estados-nações do Ocidente industrializado, na China e na própria Rússia, conforme já se verificou, inclusive com notável ênfase, no final do século XX.
Esses ativistas terão à sua disposição armas de poder destruidor sem precedentes. Um ou mais grupos conflitantes poderão até dispor (excepcionalmente) de armas atômicas rudimentares, seja porque controlam a maquinária da autoridade estatal ou porque capturaram artefatos nucleares, ou até por haverem conseguido tais armas feitas por outras potências que não os Estados Unidos, a Rússia, a França, o Reino Unido e a China. Com a proliferação das armas nucleares (e as de grande poder destrutivo, como químicas e biológicas) em um mundo de crescentes tendências à fragmentação interna dos Estados (incluindo o conceito de “Estados falidos”), o potencial de conflitos (civis) entre as partes, das quais pelo menos uma conta com artefatos nucleares (ou de destruição em massa), aumentará incomensuravelmente.
Nas guerras civis, - e de natureza insurrecional de modo geral -, do futuro, os entreveros decisivos, com toda a probabilidade, também serão travados com armas (convencionais) de letalidade sem precedentes, incluindo artefatos de custo baixíssimo e de fácil aquisição, como drones dos mais variados modelos. Será menos possível confinar a guerra civil (e as de matiz irregular com o largo emprego de meios heterodoxos) às fronteiras do Estado, dentro da própria concepção transnacional das “novas guerras”. O potencial de contaminação dos Estados vizinhos e até das potências não adjacentes poderá ser (efetiva ou potencialmente) ampliado, no mínimo, por dois fatores: à medida em que as potências externas intervierem, direta ou indiretamente; e relativamente ao maior alcance e letalidade das armas de que disporão os protagonistas em um conflito de feição irregular e de natureza heterodoxa (ou mesmo em um contexto “híbrido”).
Não se sabe ao certo se esse fator servirá para dissuadir ou restringir (conter) a intervenção das principais potências, - e principalmente da atual superpotência norte-americana, da candidata (e disruptiva) China, da revigorada (e revisionista) Rússia e da aspirante (e reativa) Índia -, em um caráter eventual. Pode argumentar-se que a ampliação da vulnerabilidade das potências ocidentais (mais China, Rússia e Índia) à devastação, ainda que em escala limitada, por forças nucleares (ou de destruição massiva), - mesmo que primitivas -, ou mesmo de outros matizes controlados por Estados menores, lhes imporá um comportamento de maior moderação em seu apoio a este ou àquele dos diversos grupos contendores, em um conflito interno ou regional, como é o caso, por exemplo, da Coreia do Norte, já nuclearizada, e do Irã, em vias de obtenção deste status.
Poder-se-ia igualmente argumentar que, nesse contexto, as principais potências ver-se-ão induzidas a formas de intervenção indireta em apoio de um lado ou outro, ou de ambos, nos conflitos regionais e subnacionais da atual e próxima gerações, notadamente em um novo ambiente internacional em que o jihadismo islâmico radical tem se pronunciado cada vez com mais eloquência, transcendendo, inclusive, - e particularmente na hipótese -, aos conflitos convencionais restritos às fronteiras nacionais.
A economia chinesa cresceu tanto que é fácil esquecer como a metamorfose do país em uma potência era improvável, o quanto sua ascensão foi improvisada e veio do desespero. A proposta que saiu das montanhas, logo adotada como política de governo, foi um primeiro passo crucial.
A China agora lidera o mundo em índices como número de proprietários de casas, usuários de internet, universitários e, dizem, bilionários. A pobreza extrema caiu para menos de 1% da população. Um lugar estagnado e empobrecido se tornou o maior rival dos Estados Unidos desde o fim da União Soviética. Agora, um desafio histórico tem lugar. O presidente XI JINPING promove uma agenda externa mais assertiva, enquanto endurece em casa. Com o governo TRUMP tendo lançado uma guerra comercial contra a China, em Pequim, a questão não é mais como alcançar o Ocidente, mas como avançar, em uma era de hostilidade dos EUA.
O padrão é recorrente: um poder em ascensão desafia o estabelecido. Uma complicação também é familiar: por décadas, os EUA encorajaram a ascensão da China, construindo a parceria econômica mais importante do mundo. No período, os EUA presumiram que a China um dia cederia às supostas regras de modernização e que a prosperidade alimentaria pedidos por liberdade e democratizaria o país. Ou então que a economia naufragaria, sob o peso da burocracia. Mas nada disso aconteceu.
Os líderes chineses abraçaram o capitalismo, mas continuam a se chamar de marxistas. Recorreram à repressão para manter o poder, mas sem sufocar o empreendedorismo. E tiveram mais de 40 anos de crescimento contínuo, com políticas pouco ortodoxas.
Em setembro a China celebrou 69 anos de governo comunista, superando a União Soviética. A economia do país caminha para virar a maior do mundo por ampla margem. Os comunistas chineses estudaram com afinco erros soviéticos. Concluíram que abraçariam “reformas” para sobreviver, mas que isso não incluiria a democratização.
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O longo boom econômico do país seguiu o excesso autocrático da Revolução Cultural, que dizimou o aparato do partido. O sucessor de MAO, DENG XIAOPING, guiou o país em uma direção radicalmente mais aberta. Mandou jovens autoridades chinesas para o Ocidente para estudar como as economias modernas funcionavam. Investiu em educação, expandiu o acesso a escolas e universidades e quase eliminou o analfabetismo. A China agora produz mais graduados em ciência e engenharia por ano do que os Estados Unidos, Japão, Coreia do Sul e Taiwan juntos.
Outra explicação para as transformações está em mudanças burocráticas. Analistas às vezes dizem que a China abraçou a reforma econômica e resistiu à política, mas o partido fez mudanças após a morte de MAO que não foram profundas a ponto de gerarem eleições livres, mas ainda assim significativas. Introduziu limites de mandato e idades de aposentadoria compulsória, o que facilitou a expulsão de funcionários incompetentes. E reformulou os boletins usados para avaliar os líderes locais, concentrando-se quase exclusivamente em metas econômicas concretas. Os ajustes tiveram impacto tremendo, injetando uma dose de prestação de contas e de competição no Sistema Político. Segundo YUEN YUEN ANG, cientista política da Universidade de Michigan, “a China criou um híbrido único, uma autocracia com características democráticas”. (PHILIP P. PAN; A Metamorfose da China em Potência Global, O Globo, 20/11/2018)
Nessa toada, é de se lamentar que - ainda que não (necessariamente) de forma definitiva -, a ausência de uma sinérgica liderança norte-americana a partir do fim da Guerra Fria (1947/91), com governos protagonizados mais por simples gestores administrativos, a exemplo de BILL CLINTON (1993/2001), GEORGE W. BUSH (2001/09) e, especialmente, BARACK OBAMA (2009/17), tenha construído um “perigoso vácuo” de governança global, verificado ante a completa ausência do necessário estabelecimento de consensos minimamente articulados entre as principais potências mundiais (EUA, Rússia, China, Índia, Reino Unido, França, Alemanha e Japão), com o objetivo de conter (ou mesmo eliminar) a ameaça transnacional representada pelo fundamentalismo religioso de feição islâmica radical (jihadismo). Ainda que, em sentido diametralmente oposto, tenha permitido a própria ampliação dos riscos inerentes a esses reptos, com a desestabilização de países outrora seculares (a exemplo do Iraque, de forma mais pretérita, a Líbia, no passado recente, ou mesmo a Síria, no presente) -, deixando, por via de consequência, escapar uma oportunidade histórica de união cooperativa entre os principais atores do cenário mundial, evitando, em grande medida, a própria disputa por hegemonia (e liderança) global, no contexto de um novo processo embrionário de uma Segunda Guerra Fria.
Mesmo que se possa argumentar que ainda não é necessariamente “tarde demais” para uma nova “retomada” (a exemplo da era REAGAN/BUSH – 1981/93) do poder hegemônico estadunidense, - considerando o ainda existente protagonismo norte-americano -, o fato é que grande parte dos esforços individuais norte-americanos (que, através de uma liderança real e determinada, poderia angariar “alianças de oportunidade”) tende a se perder com a reorientação de expressiva parcela das Forças Armadas estadunidenses para um novo enfrentamento em ambiente de “embate tradicional”, particularmente com a nova postura expansionista chinesa, inaugurada, de forma ostensiva (e confrontativa), por XI JINPING (a partir de 2012), no contexto de um realinhamento doutrinário que apregoa uma divisão de forças aptas para “diferentes embates”. Esse movimento vem sendo denominado de “capacidade de combate em múltiplos domínios”, e vem retirando o “foco” que poderia não somente unir as principais nações do mundo, mas também eliminar (ou, ao menos, reduzir) os riscos representados pelos grupos transnacionais e transideológicos (identitários) que protagonizam o principal ambiente das chamadas “novas guerras”.
Apenas o futuro possui a sabedoria para permitir registrar, com maior exatidão, as consequências dessas previsões sombrias para a estabilidade e segurança internacionais, e mesmo para um eventual “despertar” dos riscos inerentes à ausência de um indispensável consenso global sobre as atuais ameaças, conforme já advertia, à época da Primeira Guerra Fria (1947/91), o Assessor de Segurança Nacional de JIMMY CARTER, ZBIGNIEW BRZEZINSKI (1979):
“A rivalidade é inerente em um sistema que funciona desprovido de um consenso global (mínimo).”
Em qualquer hipótese, resta conclusivo expor que, com toda a certeza, a superação desses reptos imediatos se constituirá na tônica dos desafios globais do século XXI, obrigando aos principais atores protagonísticos do atual cenário geopolítico a repensarem, por derradeiro, o futuro da humanidade e, acima de tudo, a imprescindível superação das ameaças representadas pelas chamadas “novas guerras”, no contexto amplo das denominadas guerras ou conflitos de quarta geração.