Chapolin Colorado: o herói latino-americano

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18/02/2020 às 15:26
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Reflexões sobre o arquétipo do super herói latino-americano, Chapolin Colorado. Criação satírica mexicana, a obra visava a estabelecer um contraponto ao modelo norte-americano de desenvolvimento econômico.

Resumo:Criada com o escopo de criticar, de forma satírica, a intervenção estadunidense na América Latina, sobretudo em terras mexicanas, através da manipulação presente nos produtos vendidos pela indústria cultural, a série El Chapulín Colorado foi responsável por romper com o estigma do modelo norte-americano como um molde a ser seguido, conforme o enfoque da Teoria do Espelho de Próspero, de Richard Morse. Mediante a elaboração de um personagem que se preocupa e se empenha em ajudar as vítimas, empreendendo uma crítica ao capitalismo imperialista dos Estados Unidos, o lendário Chespirito escreveu seu nome na História da arte e da cultura não só mexicana, mas também de toda a América Latina. A referida crítica à diferença no modelo de desenvolvimento estadunidense em relação ao da América Latina encontra sua maior referência nos episódios que envolvem Super Sam.

Palavras-chave: Indústria Cultural. Chapolin Colorado. América Latina. Influência estadunidense. Super Sam.

Sumário:1. Introdução – 2. A Comunicação de Massa como mecanismo de imposição ideológico-cultural estadunidense. 3. A metáfora “O Espelho de Próspero”. 4. Detectando a presença do inimigo: intervenção estadunidense no México. 5. Um herói para a América Latina. 6. Super Sam: a personificação da intervenção estadunidense. 7. Conclusão . 8. Referências. 


1 Introdução

A manipulação presente nos produtos vendidos pela indústria cultural concebe o molde capitalista difundido pelos Estados Unidos como um modelo a ser seguido. Por exemplo, incutindo a ideia da colônia representada pela América Latina que se espelha na metrópole, qual seja, EUA. Essa afirmativa emerge de forma cristalina na cultura dos super-heróis americanos, tão difundida em solo latino-americano.

Diante desse ambiente, a América Latina viu a necessidade de criar um super-herói exclusivo, específico para suas terras, dotado de suas características e particularidades. Com isso, em 1970, um artista mexicano genial teve a ideia brilhante de criar o seriado El Chapulín Colorado. Idealizado justamente com o escopo de criticar, de forma satírica – algumas vezes, utilizando-se, inclusive, de ironia –, a imagem do capitalismo imperialista norte-americano como um ideal a se espelhar. O personagem logo caiu nas graças do público latino. Tanto que, atualmente, é visto como o herói latino-americano.

Em contraponto a Chapolin Colorado, é trazida à baila a figura de Super Sam, o super herói estadunidense e rival de Chapolin, representando o sistema capitalista sob a égide do imperialismo norte-americano.

Oportuno mencionar que o personagem Chapolin Colorado não empreende uma crítica à nação norte-americana, mas sim, às atitudes imperialistas e etnocêntricas propaladas pelo modelo político, econômico, social e cultural capitalista presente nos Estados Unidos. Tampouco seria aquele o intuito de seu criador, o que fica evidente no trecho do livro”O Diário do Chaves” quando narra:

Depois escreveu uma coisa no quadro e mandou que a gente copiasse. Foi isso que eu copiei:

“Devemos estudar História sem gerar sentimentos de ódio; sem espírito de vingança. Não para piorar as coisas, e sim para melhorá-las. Em uma palavra: com Amor”.

E como não entendemos muito bem o que ele queria dizer, depois nos explicou que há livros e professores que, com suas lições de história, o que fazem é nos ensinar a odiar o próximo. Por exemplo: os espanhóis, por terem conquistado o México; ao americanos, por terem ficado com a metade do território mexicano; os franceses, por terem nos imposto um imperador que não era daqui etc. Mas isso é muito ruim. Não devemos odiar ninguém. E, menos ainda, odiar uma pessoa pelo que seus antepassados fizeram de errado. [...]

[...]

Depois o Professor Girafales nos disse que também não devemos odiar os norte-americanos (que continuam sendo os gringos) por terem tirado a metade do território do México (aliás, Seu Madruga contou que tiraram a melhor parte, ou seja, onde estão as melhores estradas e tudo o mais). Porque o professor disse que não foi culpa só deles, mas também de muitos mexicanos que preferiam lutar entre si a se defender deles. E isso está errado, porque, se entram na sua casa pra roubar, o mais importante é se defeder dos ladrões, antes de brigar com seus irmãos.

E, de qualquer jeito, acho que aqueles gringos também não são os mesmos de hoje. Ou seja: é pra rezar e pedir a Deus que os de hoje não sejam piores do que aqueles. (BOLAÑOS, 2006, p. 93-95).

Assim, o presente ensaio crítico visa promover um enfoque e análise da série El Chapulín Colorado sob a ótica da teoria do “Espelho de Próspero”, de Richard Morse, notadamente dos episódios cuja influência estadunidense é abordada (e criticada), a saber, naqueles em que Chapolin contracena com Super Sam.


2 A Comunicação de Massa como mecanismo de imposição ideológico-cultural estadunidense

Empregada pela primeira vez no livro “Dialética do Esclarecimento”, de Theodor Adorno (1903-1969) e Max Horkheimer (1895-1973), a expressão “indústria cultural” se presta a enfatizar o caráter mercadológico presente nos bens de cultura - filmes, livros, música popular, programas de TV etc. - produzidos pelas sociedades capitalistas. Isto é, os bens artísticos ou culturais não têm mais necessidade de serem empacotados como tais, mas como produtos de consumo (mercadorias) e como estratégia de controle social. Em suma, nas palavras de Silva (2012, p. 25), “a cultura passa a ser utilizada como produto de uma indústria midiática voltada para o entretenimento das massas”.

Tendo em vista que, segundo Adorno, a Indústria Cultural é utilizada com o objetivo de massificação da sociedade, no contexto do capitalismo monopolista, a ordem é garantida sempre que se mantém as pessoas "alienadas" da realidade.

Para Silva (2012, p. 26):

A produção de “heróis” pela Indústria Cultural caracteriza esse propósito, pois a estruturação das histórias dessas personagens serve para legitimar o sistema capitalista e vender a ideologia do mesmo. Heróis como Super-Homem, Capitão América, Batmam, Mulher Maravilha foram criados para demonstrar a superioridade que os norte-americanos acreditam ter e conquistar, junto ao público, adeptos ao estilo americano de viver. O maniqueísmo contido nas histórias deixa claro qual lado o grande público deve seguir, o “super-herói” sempre representa o bem e o vilão o mal a ser combatido. Haja vista que o enredo é repetitivo e previsível, além de tornar o interlocutor cada vez mais “adestrado” a uma estrutura implícita. Adorno (1996) afirma que um dos propósitos desse tipo de literatura é integrar o indivíduo ao todo, diminuindo ou, até mesmo, anulando sua capacidade crítica.

No caso da série El Chapulín Colorado, a indústria cultural é utilizada para criticar a influência estadunidense.


3 A metáfora “O Espelho de Próspero”

O autor Richard Morse, um teórico norte-americano, em sua obra “Cultura e ideia nas Américas”, de 1988, advoga a tese de que a América Latina se apropria de uma visão anglo-saxônica, que, segundo ele, é um “modelo a ser seguido”.

Silva (2012, p. 23) acentua que

Essa metáfora é uma crítica ao hábito latino de se espelhar nos Estados Unidos, pois o país é visto como próspero e construtor de uma ideologia influente e maniqueísta entre a cultura totalmente capitalista e materialista dos mesmos; em relação à América Latina, a posição analítica de Morse é de querer demonstrar as vantagens e desvantagens da cópia do modelo civilizacional norte-americano para o ambiente latino. Assim, como um espelho físico reflete uma imagem tal como ela é, Richard Morse critica veemente essa ideia plagiadora dos latinos em relação ao protótipo neoliberal burguês norte-americano.

Igualmente, com propriedade, Ianni (2000, p. 09) leciona que

A metáfora “espelho de Próspero” inspirada nos escritos de José Enrique Rodo no início do século 20, alude a Próspero, conquistador e colonizador, europeu ou norte-americano, no contraponto com Caliban, transfiguração de canibal, nativo, conquistado, colonizado.

O que quer significar que Morse buscou explicar essa relação colonizador versus colonizado através da metáfora do espelho, na qual os latino-americanos só se viam pelas lentes refletidas dos outros, qual seja os norte-americanos. É como se os nativos se enxergassem com os olhos de seus conquistadores, mediante a adaptação aos moldes estrangeiros ou a cópia dos mesmos.  

A teoria do “Espelho de Próspero”, de Morse, pode ser perfeitamente aplicada no contexto latino-americano para analisar o personagem Chapolin Colorado, “criado, justamente, com o intuito de criticar o pensamento latino-americano, que concorda ou aceita a ideia de ver os moldes capitalistas desenvolvidos como sendo um modelo a seguir, tanto político, econômico, social e culturalmente” (SILVA et al, 2012, p. 24).

Conquanto empreenda uma crítica ao molde imperialista norte-americano, evidentemente o Chapolin Colorado representa um mecanismo de consumo, ou seja, um produto da indústria cultural. Vale dizer que, em que pese a crítica realizada pela referida série, ela não desmerece os EUA, apenas acentua que as conquistas angariadas em aspecto material  não têm o condão de medir a grandeza de um povo, mas sim, as concebe como “atitudes imperialistas e etnocêntricas do modelo capitalista difundido pelos Estados Unidos” (SILVA et al, 2012, p. 24).  

Para tanto, o meio utilizado a fim de concretizar a crítica se dá justamente pela prática do inverso à lógica capitalista. Isto é, o personagem age de modo contrário à lógica capitalista com o escopo de levar a cabo a crítica. Por exemplo, como adiante exposto, o personagem Chapolin é justamente o avesso ao que a ideologia capitalista norte-americana prega (e impõe) ao perfil de um super-herói.

Chapolin foi ideado com o intuito de satirizar a imagem que a cultura estadunidense veiculava até então (e ainda veicula) dos povos e da cultura latino-americana, de modo a demonstrar que o “Espelho do Próspero” não é, e nunca foi a solução para a América Latina, sem embargo de que muitas mentes atrasadas (e equivocadas também) ainda vejam na adaptação aos moldes estrangeiros ou na cópia dos mesmos a saída para esse intento. 


4 Detectando a presença do inimigo: intervenção estadunidense no México

Que a influência estadunidense na América Latina é uma realidade muito nítida, não só  devido à proximidade geográfica, mas também à política imperialista adotada pelos norte-americanos desde o século XIX, não há dúvidas.

Tratando desse tema, intelectuais latinos, como Martí e Rodó, já haviam alertado, respectivamente, para os perigos do imperialismo da parte norte do continente e para necessidade de se formar uma cultura latino-americana "autêntica" (SILVA et al, 2012, p. 26-27).

Assim, necessária se fazia a figura de um herói latino-americano, com o escopo de legitimar a autenticidade cultural dessa região, tão marcada pela intervenção estrangeira, sobretudo a norte-americana, bem como pelo imperialismo característico anglo-saxão. 

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Consoante defendido com propriedade pelo Doutor Chapatin, também interpretado por Chespirito, no episódio “Uma Conferência sobre o Chapolin” (Conferencia Sobre Un Chapulin, no original), de 1976: “tudo começou quando o povo da América Latina se deu conta que seria urgente que tivéssemos um herói local, um herói autóctone, um herói que falasse a nossa língua. Em outras palavras, um herói como você e como eu”. 


5 Um herói para a América Latina

O seriado El Chapulín Colorado surgiu no contexto de turbulência que assolava a America Latina durante o período da Guerra Fria (1947-1991).

Idealizado pelo ator e escritor mexicano Roberto Gómez Bolaños, também conhecido como Chespirito,[2] a estreia da série El Chapulín Colorado ocorreu no México, em 1970, mesmo ano em que o país sediava a Copa do Mundo de futebol e dois anos após ter sido sede dos Jogos Olímpicos.

Sob dependência do capital estrangeiro, esse continente tornava-se cada vez mais suscetível às influências cultural, ideológica, política e econômica das duas super potências mundiais da época (EUA e URSS).

Nesse cenário, a série representa a gênese da esperança mexicana, de modo a demonstrar para o mundo a irrelevância  dos “heróis importados” diante da existência de um super herói latino.

Por meio do seu discurso, Chapolin faz constantes críticas ao modelo norte-americano, consubstanciado na imposição e aceitação da indústria cultural, que é imposto aos países latino-americanos. Consoante enfatizado por Rodrigues (2012, p. 55):

Ao analisarmos a forma como Bolaños trata determinadas questões sociais em sua obra, podemos considerar que o autor faz uso da sátira como um recurso linguístico para apresentá-las sob a ótica de um juízo negativo. Ora apresentando os indígenas de forma estereotipada, como uma civilização ‘atrasada’ que não conhece as ‘benesses’ do progresso, ora satirizando a intervenção estadunidense no México na figura do ganancioso herói Super Sam, a sátira é um elemento que perpassa a obra de Bolaños, sendo o próprio personagem Chapolin uma visão satírica do que seria um modelo de herói latino-americano: tonto, estúpido, atrapalhado, sem recursos, medroso, porém com um bom coração e rígidos valores morais.

O Chapolin Colorado (também conhecido como Vermelhinho e Polegar Vermelho, no Brasil), é justamente uma sátira ao modelo dos heróis norte-americanos, vez que, como uma espécie de super-herói às avessas, desconstrói a ideia mítica do que seu criador considerava como “super-heróis importados”, tais como Batman e o Super-Homem, que são verdadeiros deuses, dotados de agilidade  fora do comum e poderes sobrenaturais. Porém, mesmo sob essas condições, propõe-se a promover o seu senso de justiça tendo como escudo o seu coração.

Em vários episódios essa relação é explorada, notadamente para evidenciar os elementos que reforçam a identidade de Chapolin em contraponto aos heróis estadunidenses.

Nesse diapasão, pertinente elencar a descrição a seguir:

[...] Chapolin é um herói atrapalhado, feio, magro, medroso, sem nenhum tipo de poder, com poucos recursos e, além disso, mulherengo. Seu embaraço é tamanho, que em um momento de confusão, de desentendimento, ele troca as palavras, dizendo: “palma, palma, não priemos cânico”. Ao contrário dos heróis norte-americanos, que salvam o mundo com seus superpoderes, o Chapolin atua no cotidiano da população latina. Salva uma família que vai ser despejada por não pagar o aluguel, aconselha um menino mimado que joga fora os seus brinquedos velhos, guarda um hotel na possibilidade de um criminoso que está à solta invadi-lo, defende uma manicure de uma barbearia que está cansada dos abusos do chefe e das investidas dos clientes (SILVA et al, 2012, p. 27-28).

Ademais, “Bolaños acaba por utilizar de Chapolin para representar as disparidades econômicas entre as nações da América Latina, como o México, e os EUA” (RODRIGUES, 2015, p. 66). Nas palavras de Chapolin, durante o episódio “Pedintes em Família” (Limosnero y Con Garrote, no original), de 1975: “Eu não sou como o Batman ou o Super-Homem, que resolvem os assuntos na base do dólar. Eu sou um herói do terceiro mundo” (RODRIGUES, 2015, p. 66).

O próprio Bolaños afirma o caráter satírico de Chapolin em uma entrevista realizada, no ano de 1977, no Chile. Ao responder a respeito do surgimento do personagem, o autor relatou a forma pela qual aquele fora criado:

como una sátira a esos superheroes (...) tipo Batman, Superman, etc. Que hablan ingles, que son importados. Yo no digo que Chapolin es mexicano. Es ibero-americano. Hago un héroe auténtico. Un héroe ser humano. Um héroe que tiene medo, que es torpe, que es fraco (...) y miesmo sabiendo que es torpe, fraco e tiene medo, enfrenta el perigo. És el autentico heroi en mi manera de ver. No es lo que no tiene medo e es todo poderoso.[3]

A influência estrangeira nos países subdesenvolvidos foi tema recorrente nos episódios do Chapolin Colorado, senão vejamos.

Nos episódios “O descobrimento da tribo perdida” (La tribu perdida), de 1973, e “A cidade Perdida” (No tiene la culpa el índio, sino lo que hace Fernández, no original), de 1976, que possuem o mesmo enredo, sendo o segundo um mero remake do primeiro com alterações na organização do elenco e de algumas poucas falas, um dos personagens zomba do herói, afirmando preferir os serviços de Batman ou do Super-Homem em vez dele. Ao que Chapolin, sentindo-se extremamente incomodado com tal preferência, responde: “Em primeiro lugar, Batman não está porque está em lua de mel com Robin. Em segundo lugar, o Chapolin Colorado estando aqui, vou lhes mostrar que não precisam de heróis importados”.

No episódio “O pelotão de  fuzilamento” (No es lo mismo el pelotón de la frontera, que la pelotera del frontón, no original), de 1976, Chapolin, ao usar um cipó para se deslocar, comenta que ensinou o método “a um tal de Tarzan dos macacos, mas ele não aprendeu muito bem”. Enfim, Chapolin se enche de patriotismo ao declarar que seus defendidos não precisam de “heróis importados”.

É forçoso concluir, pois, que há um orgulho nacional no discurso de Chapolin, em resposta à interferência dos EUA no desenvolvimento de mercadorias e indústria cultural nativos do México. Eis uma concepção de que o México pode sim produzir seus próprios heróis, sem necessidade de se servir do modelo estadunidense.

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Sobre a autora
Rosemary Gonçalves Martins

Advogada. Graduada em Direito pela Universidade Nove de Julho – UNINOVE (2013). Especialista em Conflitos Internacionais e Globalização pela UNIFESP – Universidade Federal de São Paulo (2019).

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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