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A adequada tributação do IPTU em face da publicização da propriedade privada urbana

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02/03/2006 às 00:00

Resumo:


  • Análise da propriedade privada urbana e sua relação com a tributação do IPTU, destacando a função social da propriedade e a preservação ambiental.

  • Discussão sobre o papel dos princípios constitucionais, como a igualdade e a razoabilidade, na aplicação e adequação do IPTU como ferramenta de política pública urbana.

  • Exploração das possibilidades de uso do IPTU com finalidades extrafiscais, como incentivo ao cumprimento da função social da propriedade e apoio à sustentabilidade urbana.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

4. O IPTU

4.1. Aspectos iniciais

O Estado, visando a atender as demandas sociais, necessita fixar normas de imposição que lhe permitem arrecadar tributos. O poder de tributar é decorrente do poder de império do Estado, sendo uma manifestação de sua soberania. No Brasil, a Constituição delimitou a competência tributária entre a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, circunscrevendo a esfera de atuação de cada uma dessas entidades jurídico-políticas, no que concerne à instituição e conseqüente cobrança dos tributos.

Mas, apesar de receber prerrogativa constitucional para instituir tributos sobre determinadas situações, deve assentar esta exigência em consonância com os princípios constitucionais, de forma que a sua cobrança não atente contra ideais maiores que a sociedade almeja proteger ou atingir.

Assim, há a necessidade de compatibilizarem-se os princípios constitucionais mediante a ponderação de valores, para uma aplicação mais coerente das normas de tributação. Se por um lado, o valor ambiental, por ser de interesse público, não pode ser suplantado pelos interesses privados do proprietário de um imóvel, porque está relacionado com o princípio da função social da propriedade, por outro, uma tributação harmonizada com a proteção e preservação ambiental estará em sintonia com os princípios da igualdade e da razoabilidade. Entretanto, é perceptível a falta de medidas integradoras das normas tributárias, com as relacionadas ao meio ambiente. Dessa dissonância, decorre uma tributação do IPTU não compatível com o ordenamento jurídico.

4.2. A incidência do IPTU

A competência para instituir o Imposto sobre a Propriedade Predial e Territorial Urbana, antes dos Estados, passou a ser dos Municípios a partir da Constituição de 1934. A mudança propiciou a possibilidade da utilização deste imposto como instrumento para uma melhor adequação das políticas urbanas, visto que a estes cabe também o exercício do poder de polícia relativo ao uso da propriedade imobiliária urbana. 39 É que nos Municípios, as populações e as autoridades locais, reúnem melhores condições para bem conhecer os problemas e mazelas ambientais de cada localidade e identificar as soluções mais adequadas. Neles, é possível implementar o princípio ecológico de agir localmente e pensar globalmente. 40

Assim, embora o IPTU tenha por objetivo primordial a obtenção de recursos financeiros para os Municípios, também pode ser utilizado com finalidade extrafiscal, o que significa que a tributação pode estar voltada para o alcance de outros fins sociais. Neste sentido, a Constituição de 1988 41, autorizou a utilização deste imposto com a finalidade de desestimular aquisições de terrenos com fim especulativo ou que dificultem o crescimento das cidades, pela falta de adequado aproveitamento.

O IPTU incide sobre a propriedade, o domínio útil e a posse de bem imóvel que se caracteriza como urbano, nos limites territoriais definidos em lei municipal e desde que atenda os requisitos estabelecidos no artigo 32 do Código Tributário Nacional 42. Porém, a Constituição Federal, ao fixar a competência tributária dos Municípios, fez referência apenas à propriedade, sem alusão ao domínio útil ou a posse, o que ensejou polêmica entre os doutrinadores acerca da inclusão ou exclusão destas situações no campo tributável do IPTU. Hoje, significativa parte da doutrina tem acolhido a tese de que "a Constituição não utilizou a palavra propriedade no sentido técnico, mas vulgar, permitindo assim entender a posse e o domínio útil como fato gerador do imposto". 43 É certo que a Constituição foi elaborada, não por juristas, mas por representantes do povo eleitos para essa finalidade e que provêm da sociedade. Portanto, é perceptível a utilização de uma linguagem sintética, coloquial, política e carregada de uma ideologia, onde as expressões devem ser entendidas neste contexto e não do ponto de vista estritamente jurídico. Como explica Coelho:

Este é um fenômeno comum a todos os povos. Nem poderia ser diverso, já que o legislador representa as sociedades de que participa. São eleitos pelos diversos estamentos sociais para fazerem as leis. A idéia de uma Constituição ou de leis escoreitas, em linguagem culta, incorporando a metalinguagem dos juristas, não passa de preconceitos elitista quando não de pretensão tecnicista que mal esconde o desejo das classes dominantes de controlar a sociedade pela utilização do Direito. 44

Os titulares do direito sobre a propriedade imóvel, que a lei pretendeu fixar na relação jurídica tributária, como obrigados ao pagamento do imposto, são todos aqueles que têm o exercício pleno da propriedade. Como ensina Hugo de Brito Machado, a posse nada mais é que um direito inerente à propriedade, de forma que a tributação pode recair sobre o direito pleno, total, que é a propriedade, ou um de seus elementos, o domínio útil, ou a posse. 45 Podem figurar assim como sujeitos da relação tributária, o titular do direito real de propriedade, o co-proprietário ou condôminos, o enfiteuta, o usufrutuário, o usuário que demonstre intuito de posse duradoura, dentre outros.

O fato gerador do imposto pode alcançar, portanto, todo aquele que detém qualquer direito de uso, gozo, fruição ou de disposição do imóvel, seja pleno ou limitado.

Com a ocorrência do fato gerador, o titular do imóvel, identificado como sujeito passivo, tem a obrigação de pagar o IPTU. Para tanto, faz-se necessário identificar a sua base de cálculo que, em linhas gerais, é representada pelo valor venal do imóvel, entendido como o valor comercial do imóvel no mercado, representado pela soma do terreno, as acessões e benfeitorias.

A base de cálculo compõe o aspecto material do fato gerador da obrigação tributária, como elemento indispensável para determinar o quanto é devido de imposto, e é definida em lei, como forma de dar ao contribuinte a certeza necessária de que não será tributado de forma injusta. "É atributo essencial, que por isso, não deixa de existir em nenhum caso. Todo tributo tem base de cálculo, por exigência constitucional". 46

Porém, como o valor dos imóveis são influenciados por uma série de fatores, que podem propiciar constantes oscilações, a base de cálculo, neste caso, não será dotada de uma precisão matemática, mas de um valor aproximado, via de regra, editada em plantas de valores aprovadas pelos legislativos municipais, cabendo ao contribuinte o direito de solicitar a revisão, quando incompatível com o preço de mercado.

4.3. Extrafiscalidade, progressividade e seletividade no IPTU

Com o fortalecimento do Estado de bem-estar, construído ao impulso das políticas econômicas Keynesianas, adotadas pela maioria dos países industrializados após a segunda guerra mundial, como resultado de um compromisso entre as classes sociais, em que os detentores do poder, aceitaram a aplicação de políticas de redistribuição de rendas, resultou no aumento das atribuições do Poder Público para com seus governados. 47

Para a concretização deste novo modelo, tornou-se necessário um maior intervencionismo do Estado para garantir os nascentes direitos sociais, exigindo, em contrapartida, mais recursos públicos, que são obtidos, principalmente, através da arrecadação de tributos. Por outro viés, o Estado pode, através da arrecadação, fomentar a participação dos cidadãos para a prática ou abstenção de atos que julgue relevantes ao bem comum. A tributação pode assim ser utilizada essencialmente com dois objetivos: a) obtenção de receitas para financiar as despesas públicas e, b) instrumento voltado ao estimulo ou desestímulo de condutas sociais, em conformidade com as diretrizes do Estado.

Ao segundo objetivo, dá-se a designação de extrafiscalidade, que "consiste na utilização do tributo para obter certos efeitos na área econômica e social, que transcendem a mera finalidade de fornecer recursos para atender às necessidades do Tesouro". 48 O Direito tributário é, então, relevante instrumento de intervenção indireta na sociedade e na economia, que o Estado pode utilizar para alcançar seu desiderato.

Cumpre destacar que a extrafiscalidade foi rechaçada, inicialmente, pela maioria dos autores financistas, vinculados ao pensamento liberal, até as primeiras décadas do século XX, com fundamento na crença de que a utilização da tributação para fins outros que não a arrecadação de recursos financeiros para o Estado, desvirtuava a natureza jurídica dos tributos. 49 Na atualidade, o Estado abandonou o dogma da neutralidade dos tributos e adotou intensamente a extrafiscalidade como mecanismo de intervencionismo estatal.

A adoção de políticas extrafiscais são operacionalizadas pela elevação da tributação, quando o objetivo é coibir ações prejudiciais aos interesses coletivos e, pela redução da tributação, quando se objetiva incentivar determinadas condutas propícias aos interesses sociais. Não obstante, a possibilidade da adoção de medidas extrafiscais, através do aumento da tributação, não autoriza a instituição de tributo confiscatório, visto que as limitações ao poder de tributar, previstas no texto constitucional devem ser plenamente respeitadas.

No que concerne ao IPTU, tem-se como medida necessária e viável, a utilização pelos municípios de políticas extrafiscais, adequando as legislações de forma a compatibilizar as normas ambientais com as normas tributárias. Neste sentido, a Constituição possibilitou a utilização do IPTU, que naturalmente tem finalidade arrecadatória, como instrumento para obter efeitos extra-arrecadatórios através da tributação progressiva, como forma de coação, para que o proprietário do imóvel promova a sua devida utilização ou através da seletividade de alíquotas em decorrência da localização ou uso do imóvel.

A progressividade opera-se através da aplicação graduada de alíquotas em nível ascendente, em razão do crescimento da respectiva base de cálculo, ou de outro elemento que o legislador venha a eleger como medida para a progressão. A progressividade mais difundida é aquela em que o imposto aumenta mais do que proporcionalmente à elevação da sua base de cálculo, a exemplo do que ocorre no Imposto sobre a Renda e proventos de qualquer natureza. Como espécie distinta, tem-se a progressividade no tempo, prevista no artigo 182, §4º, da Constituição, que pode ser utilizada como instrumento de política de urbanização, visando a desestimular a manutenção de imóveis que não atendam a finalidade do plano diretor da cidade.

A Constituição, em seu artigo 156, §1º, II, permite ainda estabelecer alíquotas diferenciadas em razão da localização e do uso do imóvel, o que de acordo com o pensamento de parte da doutrina, não se confunde com a progressividade. A distinção essencial reside em que nesta, a diferença de alíquotas ocorre em relação a um mesmo objeto tributado, enquanto naquela, a diferença de alíquotas ocorre em relação a vários objetos tributados. Deste modo, pode-se dizer que a existência de diferentes alíquotas do IPTU em relação a diferentes imóveis, seja em função do uso, ou da localização destes, caracteriza seletividade e não progressividade. 50

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A aplicação de alíquotas diferenciadas de acordo com o uso do imóvel, alberga a possibilidade dos poderes públicos municipais tributarem, de forma seletiva, os imóveis gravados com limitação de uso em face da proteção ao meio ambiente.


5. Considerações finais

Com esteio no exposto, intentou-se demonstrar que, se a propriedade evoluiu e se configurou, na atualidade, como um instituto direcionado também à consecução de valores que interessam a toda a coletividade, é lídima a garantia dos contribuintes que as normas tributárias sopesem também outros valores de forma a onerar a todos com justiça. Destarte, aquele que abdica de parte de sua propriedade em prol do interesse público, ainda que parcialmente, deve receber do Estado um tratamento diferenciado de quem pode utilizá-la na sua integridade, sem qualquer restrição. Agir contrariamente é inobservar o princípio da igualdade e, por conseguinte, da razoabilidade.

A alternativa mais adequada para o Estado compatibilizar as situações em que o proprietário renuncia a parte dos seus direitos sobre a propriedade com vistas ao bem comum, daqueles que não estão condicionados a esta restrição, é propiciar aos primeiros, uma redução sobre a tributação do IPTU.

A utilização do IPTU com finalidade extrafiscal coloca-se como uma das melhores alternativas que os poderes públicos podem fazer uso para incentivar o zelo para com o meio ambiente e, neste caso, a atuação municipal mostra-se coerente com a idéia de agir localmente. É que, em decorrência da proximidade com o cidadão, tanto o controle como os resultados são mais efetivos e melhor percebidos.

Se é facultado ao município adotar uma tributação progressiva para o proprietário de imóvel que não lhe dá o devido aproveitamento, é justo também que aplique uma tributação diferenciada para aquele que transforma parte da propriedade em coisa pública. Assim, é justo que as leis municipais que disciplinam as normas relativas ao IPTU, estabeleçam três categorias de imóveis: a) os imóveis que não prejudicam o meio ambiente, mas que também não apresentam nenhuma restrição de uso, sobre os quais deve incidir a tributação normal; b) imóveis utilizados em desacordo com sua função sócio e ambiental, para os quais o poder legislativo municipal pode aplicar uma tributação progressiva, e; c) os imóveis com restrição parcial de uso, em virtude da preservação do meio ambiente, para os quais, é adequada uma tributação regressiva, como forma de ressarcimento e incentivo ao particular pelo prejuízo patrimonial decorrente.

Do exposto, é possível vislumbrar que um modelo formado pela integração de normas ambientais e tributárias, se bem compatibilizadas, certamente trarão significativos resultados na formação de uma cultura voltada ao crescimento sustentável das cidades e contrária à degradação ambiental, por conseguinte, disponibilizará aos municípios mecanismos que contribuirão para a melhoria da qualidade de vida do ser humano.

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Sobre o autor
Joacir Sevegnani

Auditor Fiscal da Receita Estadual do Estado de Santa Catarina. Professor de Direito Tributário no Centro Universitário para o Desenvolvimento do Alto Vale do Itajaí - UNIDAVI. Doutorando em Ciência Jurídica pela Universidade do Vale do Itajaí - UNIVALI.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SEVEGNANI, Joacir. A adequada tributação do IPTU em face da publicização da propriedade privada urbana. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 974, 2 mar. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/7999. Acesso em: 23 dez. 2024.

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