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A adequada tributação do IPTU em face da publicização da propriedade privada urbana

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02/03/2006 às 00:00
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SUMÁRIO: 1. Introdução; 2. A Propriedade; 2.1 Origem e evolução; 2.2 A Publicização da Propriedade; 3. Os princípios constitucionais; 3.1 Aspectos gerais; 3.2 O princípio da Função Social da Propriedade; 3.3 O Princípio da Igualdade; 3.4 O Princípio da Razoabilidade; 4. O IPTU; 4.1 Aspectos iniciais; 4.2 A incidência do IPTU; 4.3 Extrafiscalidade, progressividade e seletividade no IPTU; 5. Considerações finais; 6. Referências Bibliográficas.


1. Introdução

            O presente estudo tem por escopo analisar a propriedade privada urbana no contexto da preservação do meio ambiente, fixando um paralelo com a tributação do Imposto sobre a Propriedade Predial e Territorial Urbana (IPTU), objetivando avaliar a possibilidade e oportunidade da sua utilização como instrumento de ressarcimento indireto pelo poder público àqueles que têm o direito de uso e gozo restringido em função de limitação legal.

            Se a tributação da propriedade propicia recursos indispensáveis aos municípios, o meio ambiente, aqui entendido na acepção ampla de proteção do patrimônio histórico, cultural, paisagístico e ambiental, é, seguramente, um dos bens mais prestigiados nos dias atuais, pois da sua preservação depende a sobrevivência humana com dignidade e bem estar. No Brasil, onde cerca de 80% [01] dos habitantes vivem nas cidades, é freqüente a restrição imposta a proprietários de imóveis urbanos, permitindo apenas a utilização parcial, em decorrência da necessidade de preservação do meio ambiente, o que significa tornar público uma parte do patrimônio com vistas a privilegiar os interesses da coletividade. Entretanto, a preservação do meio ambiente deve ser realizada de forma solidária e não solitária, pois da sua proteção dependem todos os cidadãos.

            Se os tributos destinam-se ao financiamento do Estado, aqueles que indiretamente auxiliam o poder público através da abdicação de parte do direito de propriedade, necessitam, certamente, de tratamento diferenciado daqueles que não possuem qualquer restrição neste sentido.


2. A Propriedade

            2.1 Origem e evolução

            Segundo a concepção divina, Deus deu ao homem a terra e tudo o que nela contém, para o sustento e conforto de sua existência. Sobre este enfoque, no início as coisas pertenciam à humanidade em comum, pois eram produções espontâneas da natureza e ninguém possuía originalmente o domínio privado de uma parte qualquer que excluísse o direito dos demais homens. [02]

            Nesse estágio, o homem vivia em estado de natureza, o que significava que era absolutamente livre para decidir sobre suas ações e dispor de seus bens sem depender da autorização de nenhuma autoridade superior. Assim, em regra, todos tinham todo o poder, em condições de igualdade, o que lhes permitia desfrutar juntos, de todas as vantagens comuns da natureza sem subordinação ou sujeição a outro homem.

            Mas mesmo nesse modo de vida primitivo, havia algumas coisas que o homem se apropriava pelo trabalho, seja pelo ato de caçar e abater um animal ou de coletar frutos. O trabalho despendido na apropriação de uma coisa sem dono dava-lhe o direito de propriedade, a partir do momento em que conseguia apossar-se dela. O mesmo passou a acontecer com as terras comuns, as quais assim permaneciam até que alguém, através do trabalho, passasse a dar-lhes valor pelo seu uso para uma finalidade produtiva, como a semeadura e o cultivo. Deste modo, a medida do valor da propriedade foi estabelecida pelo trabalho nela despendido e a extensão restringia-se a uma proporção moderada, suficiente para uso e sustento da família. [03]

            Porém, se a apropriação da terra funda-se no trabalho, a fixação permanente dos homens nela e a afirmação de um direito de propriedade mais sólido dá-se por outras razões.

            Nas eras remotas, havia três coisas que estavam intimamente ligadas e que parecem terem sido mesmo inseparáveis: a religião doméstica, a família e o direito de propriedade. Naquele contexto, a idéia de propriedade privada fazia parte da própria religião em que cada família tinha nos seus antepassados os seus deuses e os cultuava em seu próprio altar, o qual se fixava ao solo e dele não se separava.

            Pelo fato de terem nos próprios ancestrais seus deuses, cabendo aos herdeiros o dever de zelar por eles em vida, resultou que a família estava vinculada ao altar e este, por sua vez, encontrava-se fortemente ligado ao solo. Desta estreita relação que se estabeleceu, portanto, entre a religião, o solo e a família, surgiu a necessidade da fixação de uma residência permanente para os descendentes, que jamais a abandonarão, a não ser quando alguma força superior a isso os constranja. [04] Tem-se assim a propriedade, não como de um único homem, mas de uma família, cujos futuros descendentes devem vir um após o outro, nascer e morrer vinculados ao mesmo solo.

            A propriedade então é adquirida pelo trabalho, mas o direito sobre ela surge de forma mais objetiva, quando os antigos sepultam nela os primeiros mortos de sua família e se estende ao redor do pequeno cemitério sobre o campo que a rodeia, em quantidade suficiente para o seu sustento e desde que outro já não tenha dela se apossado.

            Neste modelo embrionário do direito de propriedade, vê-se que não foram as leis, mas a religião que, a princípio, a garantiu, onde cada domínio estava sob a proteção das divindades domésticas as quais velavam por ela e seus familiares vivos. As divisas destas propriedades eram compostas de uma faixa de terra de um metro de largura que permanecia sem cultivo e era considerada sagrada e inviolável, sob pena de severas sanções. Em dias certos do mês e do ano, o pai de família percorria esta linha de demarcação e realizava determinados cultos e oferecia sacrifícios para despertar a benevolência dos seus deuses para com a terra e seus familiares. Para melhor delimitá-la colocava a cada certa distância algumas pedras ou troncos, a que denominava termos, os quais fixavam por definitivo e para todo o sempre o limite da propriedade. [05] Após a fixação dos marcos da propriedade, os mortos tomavam posse definitivamente do solo, viviam sob o pequeno outeiro e ninguém, a não ser a família, podia pensar em unir-se a eles, invadir a terra demarcada, remover as sepulturas ou demoli-las.

            Mas se a religião foi o elo inicial de garantia da propriedade, não se sustentou como elemento suficiente para dar-lhe consistência. Somente com o surgimento do Estado é que a propriedade passa a ter uma garantia plena, elevando-se ao patamar de direito intocável.

            Na concepção de Locke, o Estado decorreu de um contrato social entre os homens, visando a uma vida mais confortável, segura e pacífica, objetivos que podiam ser alcançados através da preservação do direito de propriedade e da proteção dos direitos dos membros da comunidade. [06] Hobbes também fundamenta sua concepção sobre a origem do Estado na opção humana de convivência social que pressupõe a renúncia de prerrogativas individuais, em benefício da coletividade. [07] Para Rousseau, com o estabelecimento de um contrato social, o homem perde a liberdade natural e um direito ilimitado a tudo quanto deseja alcançar, mas ganha a liberdade civil e o direito de propriedade sobre tudo o que possui. Se a liberdade natural era limitada pelas forças do indivíduo, a liberdade civil, agora, é limitada pelo poder do Estado. [08]

            O Estado não é, entretanto, um poder que se impôs à sociedade de fora para dentro, é antes um produto da sociedade, quando esta chega a um determinado grau de desenvolvimento e necessita de um poder colocado, aparentemente, acima dos cidadãos e que estabeleça as regras de comportamento e mantenha a ordem. [09]

            Destarte, se com o aparecimento do Estado, por um lado, os homens abdicam de parte da liberdade para a adequada convivência em sociedade, por outro, podem desfrutar de um poder superior que melhor lhes garanta os direitos antes instáveis. Neste novo modelo, são as leis estabelecidas, com o consentimento da maioria, que proporcionam a garantia necessária do direito de propriedade, onde o Estado atua como mantenedor da ordem e dos direitos dos cidadãos.

            Com a garantia dada pelo Estado, a propriedade ganha características de exclusividade e perpetuidade, especialmente após a difusão dos ideais da Revolução Francesa, que tencionava propugnar uma nova ordem lastreada na igualdade e na legalidade. Como resultado, os princípios do liberalismo passaram a ser os substitutos do desgastado despotismo da época feudal, reforçando, ainda mais, a proteção dos direitos individuais, destacando-se o da propriedade. Porém, no início do século XX, em decorrência dos graves problemas sociais, surge um movimento de oposição à estrutura conservadora do liberalismo, exigindo uma maior intervenção estatal, que se concretiza com o "Estado de Bem-Estar Social". [10]

            Como conseqüência, o conceito de propriedade começa a sofrer uma lenta transformação, deixando de ser um direito sagrado de seus titulares e assegurado em toda a sua plenitude, para configurar-se como um instituto destinado a atender também aos interesses sociais, onde são admitidas limitações, sempre que sobressaia o bem-estar da coletividade. De bem intocável, vinculado unicamente aos interesses do particular, a propriedade passa então por um processo de publicização, ao agregar também finalidades voltadas ao interesse público.

            2.2 A Publicização da Propriedade

            Se até um passado recente, a significação da propriedade estava relacionada ao alcance dos fins particulares, especialmente para a manutenção da família, na atualidade, foi modelada como um instituto mais flexível e adequado aos interesses da sociedade. Esta nova concepção que agrega ao seu conceito, o interesse público, decorreu de sua crescente publicização, operada através da inserção de fundamentos de validade no texto constitucional. Embora a publicização da propriedade tenha suporte na Constituição, concretiza-se através da atuação legislativa infraconstitucional, em que o Estado aumenta sua intervenção nas liberdades individuais, reduzindo a autonomia privada com vistas a garantir o bem comum.

            Do ponto de vista jurídico, este novo paradigma é resultado da crescente fragilização da idéia clássica de um direito bipartido em público e privado e que não mais atende, hodiernamente, à complexidade das relações sociais, exigindo cada vez mais uma concepção abrangente, onde o direito deve ser compreendido como um todo interligado por muitos pontos de contato. Sob a ótica econômica, é conseqüência, sobretudo, da reação contra a concepção liberal de Estado que se manifestou no século passado e funda-se na idéia aristotélica de que o todo vem antes das partes. [11]

            Porém, na visão de Bobbio, juntamente com o processo de publicização do privado, vem ocorrendo um processo contrário que pode ser chamado de "privatização do público":

            Os dois processos, de publicização do privado e de privatização do público, não são de fato incompatíveis, e realmente compenetram-se um no outro. O primeiro reflete o processo de subordinação dos interesses do privado aos interesses da coletividade representada pelo Estado que invade e engloba progressivamente a sociedade civil; o segundo representa a revanche dos interesses privados através da formação dos grandes grupos que se servem dos aparatos públicos para o alcance dos próprios objetivos. [12]

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            Independente do ângulo que se avalie, "o primado do público significa o aumento da intervenção estatal na regulação coativa dos comportamentos dos indivíduos e dos grupos infra-estatais, ou seja, o caminho inverso ao da emancipação da sociedade civil em relação ao Estado". [13]

            No Brasil, a constitucionalização do regime jurídico da propriedade, mediante a consagração do direito à sua utilização pública e a exigência do cumprimento de uma função social, também fez com que ficasse superada a concepção individualista e liberal, dando lugar a um novo modelo em que preponderam os interesses sociais. No modelo brasileiro, a efetivação da publicização da propriedade pode ocorrer em diversos níveis, variando desde a sua perda através da desapropriação, até a simples limitação de uso. Para Maria Sylvia Zanella di Pietro, "o direito brasileiro prevê sete modalidades de restrições à utilização da propriedade, cada uma delas afetando de um modo o direito de propriedade. Estas restrições são as limitações administrativas, a ocupação temporária, o tombamento, a requisição, a servidão administrativa, a desapropriação e o parcelamento e edificação compulsórios". [14]

            As restrições que dizem respeito ao tema, são as limitações administrativas, especialmente, aquelas relacionadas à proibição do aproveitamento integral do terreno em razão de preservação ambiental ou paisagística, ou ainda, da obrigação de manter a integridade das construções que representam patrimônio histórico ou cultural. Neste caso, a limitação de uso afeta o direito de usar, gozar e dispor da coisa da forma que melhor lhe aprouver, pela imposição de restrição à liberdade do titular, no tocante à efetivação de seus poderes, inerentes à qualidade de proprietário.

            Se por um lado, as vedações citadas impostas ao particular podem resultar em redução no valor econômico do imóvel, por outro, o seu cumprimento é exercido em prol da coletividade, o que denota uma prestação de serviço público. Portanto, os imóveis com estas características necessitam de tratamento diferenciado dos demais, como forma de dar concretitude aos valores contemplados nos princípios constitucionais.


3. Os princípios constitucionais

            3.1 Aspectos gerais

            O direito, como um sistema integrado de normas jurídicas inter-relacionadas, exige do legislador especial atenção na elaboração das leis, para que os fins sociais almejados sejam alcançados. Neste viés, cabe-lhe legislar, especialmente, em consonância com os valores que os princípios jurídicos trazem subjacente, porque eles agem como liames, dando unidade e coerência ao sistema.

            A significação originária de princípio deriva da expressão pricipium que provém do latim e que, numa acepção vulgar, diz respeito a início, começo, origem das coisas. Tal noção, explica-nos Paulo Bonavides, deriva da linguagem da geometria, "onde designa as verdades primeiras". [15] Pode-se ainda adotar significação distinta quando se fala em princípios constitucionais em que a palavra é utilizada no sentido de mandamento nuclear de um sistema normativo, alicerce que lhe dá sustentação e harmonia. [16]

            Os teóricos e juristas do Direito têm utilizado o termo com sentidos diversos, conforme exemplifica Manuel Atienza e Juan Ruiz Manero:

            a-Princípio no sentido de norma muito geral, ou seja, a que regula um caso cujas propriedades relevantes são muito gerais.

            b-Princípio no sentido de norma redigida em termos particularmente vagos. A vagueza pode se dar quando se utilizam conceitos jurídicos indeterminados.

            c-Princípio no sentido de norma programática, isto é, norma que estipula a obrigação de perseguir determinados fins.

            d-Princípio no sentido de norma que expressa valores superiores de um ordenamento jurídico.

            e-Princípio no sentido de norma dirigida aos órgãos aplicadores do Direito.

            f-Princípio no sentido de regula iuris, isto é, de enunciado da ciência jurídica de um considerável grau de generalidade e que permite a sistematização do ordenamento jurídico. [17]

            Manoel Gonçalves Ferreira Filho sintetiza a utilização pelos juristas da expressão ‘princípio’, em três sentidos de alcance diferente:

            Num primeiro, seriam ‘supernormas’, ou seja, normas (gerais ou generalíssimas) que exprimem valores e que por isso, são ponto de referência, modelo, para regras que as desdobram. No segundo, seriam standards, que se imporiam para o estabelecimento de normas específicas - ou seja, as disposições que preordenem o conteúdo da regra legal. No último, seriam generalizações, obtidas por indução a partir das normas vigentes sobre determinada ou determinadas matérias. Nos dois primeiros sentidos, pois, o termo tem uma conotação prescritiva; no derradeiro, a conotação é descritiva: trata-se de uma ‘abstração por indução’. [18]

            Apesar dos inúmeros sentidos atribuídos aos princípios jurídicos, é importante destacar que, atualmente, sob qualquer ângulo em que sejam avaliados, caracterizam-se por possuírem um grau elevado de juridicidade, ou seja, representam uma potencialização das normas. No dizer de Alexy, são normas que ordenam que algo seja realizado na maior medida possível, dentro das possibilidades jurídicas e reais existentes, porque são mandados de otimização. [19] Neste sentido, "violar um princípio é muito mais grave do que transgredir uma norma. A desatenção ao princípio implica ofensa não apenas a um específico mandamento obrigatório, mas a todo o sistema de comandos". [20] É a mais grave forma de ilegalidade ou inconstitucionalidade, conforme o escalão do princípio atingido, porque representa insurgência contra todo o sistema, subversão de seus valores fundamentais.

            Cabe ainda ressaltar que os princípios, juntamente com as regras, são tidos como espécies do gênero norma. [21] Isto significa que ambos são caracterizados dentro do conceito de norma jurídica, onde a distinção entre um e outro é uma distinção entre dois tipos de normas.

            Nesta concepção, a distinção parte do pressuposto que "as regras são aplicáveis à maneira de tudo ou nada. Dados os fatos que uma regra estipula, então ou a regra é válida, e neste caso a resposta que ela fornece deve ser aceita, ou não é válida, e neste caso em nada contribui para a decisão". [22] Os princípios, por sua vez, têm uma dimensão que as regras não têm - a dimensão de peso ou importância. Quando os princípios se entrecruzam, aquele que vai resolver o conflito tem de levar em conta a força relativa de cada um, embora a determinação de qual princípio é mais importante não se opera através de uma mensuração exata. [23]

            Para o tema em análise, interessa mais o sentido que os princípios jurídicos apresentam no Direito Constitucional, já que as normas gerais acerca do direito de propriedade encontram-se constitucionalizadas. Os princípios constitucionais são os princípios gerais do Direito alçados à norma suprema, o que aparentemente tem sido uma tendência no Constitucionalismo atual, ao positivar expressa ou implicitamente aqueles dotados de maior densidade e amplitude normativa.

            Ao analisar os princípios no texto constitucional, Gomes Canotilho estabelece um escalonamento de acordo com a posição que ocupam. Ensina que "a articulação de princípios e regras, de diferentes tipos e características, iluminará a compreensão da constituição como um sistema interno assente em princípios estruturantes fundamentais que, por sua vez, assentam em subprincípios e regras constitucionais concretizadores desses mesmos princípios". [24] Procura com isso demonstrar o modo como se concretizam, de forma que os princípios mais abstratos vão sendo densificados por outros de menor grau. Os princípios estruturantes que se constituem em indicativos das idéias diretivas básicas de toda a ordem constitucional são o Princípio do Estado de Direito, o Princípio Democrático e o Princípio Republicano. Por sua vez, o Princípio do Estado de Direito, como exemplo, é densificado através de uma série de subprincípios como o da constitucionalidade, da legalidade e da separação dos poderes. [25] Por outro lado, podem ainda ser densificados através de regras como o são aquelas relacionadas à regulação e disciplinamento da atividade econômica.

            Neste modelo, tem-se então uma estruturação escalonada em que os Princípios estruturantes espraiam as idéias mestras por toda a Constituição em razão da força densificadora que emanam. A seguir, colocam-se os princípios constitucionais gerais, dotados ainda de uma abstração e abertura que lhes permite dar sustentação e ligação às regras constitucionais para complementar todo o arcabouço, as quais preenchem o texto constitucional e lhe dão uma consistência uniforme. [26]

            Não resta dúvida que a adoção de um sistema em que coabitam princípios e regras possibilita a compreensão e melhor adequação das normas aos anseios de uma sociedade em constante evolução, do contrário um modelo forjado apenas sob regras exigiria uma disciplina legislativa exaustiva e completa, sem qualquer espaço livre para a complementação, característica natural dos sistemas abertos. [27] É possível perceber, portanto, que as regras possuem uma estrutura em que, tradicionalmente, se concretizam pela descrição de um fato, proibindo ou permitindo determinada conduta, ao que se acrescenta a elas sanções, em se tratando de regras proibitivas. Os princípios, por seu turno, não se reportam a um fato específico que se possa precisar, podendo mais ser entendidos como indicadores de uma opção pelo favorecimento de determinados valores, a exemplo da função social da propriedade, que a sociedade almeja concretizar.

            3.2 O princípio da Função Social da Propriedade

            Com o crescente processo de publicização da propriedade, o Estado passa a fazer uso de novos meios de concretização das políticas públicas. Diante deste novo paradigma, ganha relevância a função social da propriedade, como princípio fomentador dos objetivos colimados pelo conjunto da sociedade.

            Antes de abordar a função social da propriedade, impende delimitar o termo ‘função social’, iniciando-se pela idealização de São Tomás de Aquino de que os bens apropriados individualmente teriam um destino comum, que o homem deveria respeitar. [28] Influenciado por Auguste Comte, com seu pensamento de que cada cidadão era uma espécie de funcionário público, que deveria trabalhar em função da ordem social, Leon Duguit também formulou um conceito de função social, afirmando que todo ser humano teria uma função social a desempenhar. Com efeito, ao falar da propriedade, entendia que esta não seria um direito absoluto, do contrário, a propriedade seria condição indispensável para a prosperidade e grandeza da sociedade e, portanto, não seria um direito, mas uma função social. [29] Entretanto, o conteúdo por ele dado à função social da propriedade, praticamente a tornava objeto social, retirando o direito de propriedade do particular.

            Hodiernamente, "por função social entende-se dar uma destinação ocupável ao terreno, torná-lo produtivo em algo lícito, gerador de riqueza, edificar algo e destiná-lo ao uso. Algo há que se fazer necessariamente para promover o seu adequado aproveitamento urbano". [30]

            No que concerne especificamente à função social da propriedade urbana, esta repousa no pressuposto primordial de que cabe à administração pública disciplinar e coordenar a atividade urbanística das cidades, afetando os direitos patrimoniais dos particulares. É em relação à propriedade urbana que a função social tem seu alcance mais intenso, eis que possibilita, de forma mais objetiva, o equilíbrio entre o interesse particular e o interesse coletivo. [31] Deste modo, a propriedade urbana cumpre sua função social não apenas quando atender às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor, consoante disposição constitucional [32], mas também quando a ela for dado tratamento racional e adequado, inclusive quanto aos recursos naturais e preservação do meio ambiente assegurando, assim, o bem-estar de todos. [33]

            Todavia, inobstante a obrigatoriedade constitucional do cumprimento da função social da propriedade, não se trata de abolir os direitos privados do titular, nem tampouco de restringi-los ao arrepio do ordenamento jurídico. O que a nova concepção de propriedade pretende mediar é o direito do particular dispor dela em toda a sua plenitude, sem olvidar que este direito pode ser exercitado somente nos limites em que os atos não produzam efeitos prejudiciais à coletividade.

            Do que se expôs, é possível compreender a função social da propriedade como a sujeição do direito de propriedade a um interesse coletivo, diversamente da concepção liberal que a concebia como um direito individual e absoluto. Não basta ser proprietário, é necessário dar-lhe um fim não direcionado apenas aos interesses do proprietário, mas também aos interesses da coletividade. A justa propriedade é resultado, portanto, não apenas de um título que a garante, mas também do propósito a que se destina, de forma que o descompasso com os interesses do conjunto da comunidade, autoriza a intervenção do Estado, para dar-lhe adequado tratamento. Assim, a preservação do meio ambiente é justificativa razoável para a limitação do uso da propriedade privada, contudo, respeitando os direitos individuais e observando os demais princípios constitucionais, especialmente, a igualdade.

            3.3 O Princípio da Igualdade

            O princípio da igualdade com sede explícita no texto constitucional, inclusive em seu preâmbulo, denota o anseio de elegê-lo como um valor supremo e, por conseguinte, um dos alicerces do ordenamento jurídico. A supremacia da igualdade, todavia, exige constante vigilância do legislador e do aplicador do direito para que se torne ideário factível em cada situação, pois como norma programática, mostra um objetivo a ser constantemente almejado e buscado sob todas as formas. Entretanto, não é incoerente pensar que, para a concretização da igualdade, é necessário fazer uso da desigualdade. Como ensinava Rui Barbosa, adotando a idéia de Aristóteles, "a regra da igualdade não consiste senão em quinhoar desigualmente aos desiguais, na medida em que se desigualam. Nesta desigualdade social, proporcionada à desigualdade natural, é que se acha a verdadeira lei da igualdade". [34] E conclui que "tratar com desigualdade a iguais, ou a desiguais com igualdade, seria desigualdade flagrante, e não igualdade real". [35]

            O princípio da igualdade consiste na proibição de arbitrariedade, desproporção ou excesso, significando vedação da desigualdade consubstanciada na injustiça, na insegurança e na opressão da liberdade. Objetiva, portanto, dar unidade ao sistema jurídico, funcionando como medida, proporção ou razoabilidade, em todos os valores e princípios.

            Como uma especificação daquela, a igualdade tributária, da mesma forma, serve de medida, e harmoniza simultaneamente a justiça com os diversos princípios vinculados aos casos concretos. Logo, o legislador ordinário, ao deparar-se com a necessidade de instituir um tributo, deve considerar a capacidade contributiva, mas pode também sopesar outros princípios não relacionados à esfera tributária, em vista de relevante interesse social subjacente, de forma que da ponderação resulte elevação ou redução da tributação e, por conseqüência, seja preservado o valor que o Estado pretende proteger. Deduz-se que "a igualdade tributária não está presa a um único fundamento, eis que pode se justificar por motivos fiscais ou extrafiscais, financeiros ou políticos, conjunturais ou permanentes". [36]

            Para o caso em análise, interessa não apenas o tratamento igualitário na aplicação da lei, mas, principalmente, nas criação das normas pela lei. O princípio da igualdade dirige-se ao próprio legislador, vinculando-o à criação de um direito igual para todos os cidadãos e situações, observadas as desigualdades. [37]

            3.4 O Princípio da Razoabilidade

            O princípio da razoabilidade que defluiu da evolução da cláusula "due process of law", de origem britânica e migrou para as colônias americanas, onde ampliou seu significado, não se restringiu mais apenas ao caráter processual, passando a ser instituto com função ampla de bloqueio, no sentido de que algo seja realizado nos limites do plausível e do aceitável. [38]

            É um parâmetro de valoração dos atos do Poder Público para aferir se eles estão informados pelo valor superior inerente a todo ordenamento jurídico: a justiça. Sendo mais fácil de ser percebido do que conceituado, o princípio concretiza-se num conjunto de proposições que buscam fazer com que a aplicação da norma aos casos concretos ocorra de acordo com a razão, supondo equilíbrio, moderação e harmonia.

            Em matéria tributária, serve para balizar o legislador, garantindo ao contribuinte o direito de ser tributado de maneira prudente, ponderada e razoável. Vale dizer que o Estado, ao legislar sobre tributos, faça-o através de legislações simplificadas, operacionalmente factíveis e em sintonia com os princípios constitucionais. Neste caso, se a Constituição elegeu como objetivo fundamental do Estado, dentre outros, a construção de uma sociedade justa (art. 3º, I), este ideal pressupõe a adoção de medidas direcionadas ao atingimento deste fim colimado, através de uma tributação conformada com o modelo social pretendido.

            Portanto, a tributação da propriedade através do IPTU, embora tenha íntima relação com o princípio da capacidade contributiva, também deve guardar conformação com o princípio da função social da propriedade, especialmente no tocante à proteção do meio ambiente, como meio de tratar igualmente a todos. A aplicação da razoabilidade, neste caso, pressupõe que aqueles que protegem o meio ambiente, ainda que coagidos por norma legal que os impeça de degradá-lo ou destruí-lo, possuem direito restringido, além de contribuírem para o bem comum com uma parte dos bens privados. O titular de imóvel, sem restrição desta ordem, ainda que não afronte o princípio da função social da propriedade, não contribui, na mesma proporção, com seus bens para a coletividade. Tome-se o exemplo de um imóvel em que a metade esteja coberta por árvores nativas em que é vedada a retirada. Se o titular tem restringido a utilização do terreno e, ao mesmo tempo, contribui para a melhoria ambiental da cidade, uma tributação sobre o imóvel idêntica ao que não apresenta esta restrição importa em tratar com desigualdade os dois casos. É que, adotando-se este paradigma, o primeiro passa a contribuir diretamente para a sociedade, como decorrência dos benefícios oriundos da conservação do meio ambiente, ao passo que o segundo, por não exercer esta função, deverá contribuir em valor maior para compensar o tratamento desigual, como forma de equalizar as duas situações.

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Sobre o autor
Joacir Sevegnani

Auditor Fiscal da Receita Estadual do Estado de Santa Catarina. Professor de Direito Tributário no Centro Universitário para o Desenvolvimento do Alto Vale do Itajaí - UNIDAVI. Doutorando em Ciência Jurídica pela Universidade do Vale do Itajaí - UNIVALI.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SEVEGNANI, Joacir. A adequada tributação do IPTU em face da publicização da propriedade privada urbana. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 974, 2 mar. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/7999. Acesso em: 28 mar. 2024.

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