INTRODUÇÃO
A Segunda Guerra Mundial (1939 – 1945) marcou profundamente a história do mundo. A ideologia totalitária nazista ou nacional socialista de Adolf Hitler executou perseguição política, étnica, religiosa e, também, sexual. Neste contexto, determinados grupos foram levados a campos de concentração, onde trabalhavam como escravos e viviam sob condições desumanas.
Foi nesse cenário emblemático que, em 1945, pós Segunda Guerra Mundial, na Conferência de São Francisco, foi redigida a Carta das Nações Unidas ou Carta de São Francisco que tinha como objetivo criar um órgão internacional para promover a paz entre as nações e, com isso, evitar guerras, órgão conhecido como Organização das Nações Unidas (ONU).
No ano de 1948, a ONU desenvolveu esboço do documento que resultaria, naquele mesmo ano, na Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH), através da Comissão de Direitos Humanos. Logo, a dignidade humana, torna-se instrumento de luta social, sendo evidenciada como um princípio de suma importância devido ao seu caráter essencial e filosófico ligado a valores como justiça e solidariedade, por exemplo, o que desencadeia o entendimento de que por seu caráter moral, possui atributo para ser considerada princípio universal que merece o reconhecimento e a tutela jurisdicional do Estado.
Neste artigo, analisar-se-á a aplicação do princípio da dignidade da pessoa humana no estado brasileiro, situando-o no texto constituicional, através de um estudo bibliográfico utilizando-se principalmente das teorias construídas por Barroso, Lassale e Hesse. Objetiva-se assim, construir um entendimento acerca da maneira como deve ser interpretado e efetivado o referido princípio nos casos concretos.
DESENVOLVIMENTO
Em 1945, pós Segunda Guerra Mundial, na Conferência de São Francisco, delegados representando 50 (cinquenta) países, reuniram-se nos Estados Unidos da América – EUA, na cidade de São Francisco, para debater a Carta das Nações Unidas ou Carta de São Francisco que tinha como objetivo criar um órgão internacional para promover a paz entre as nações e, com isso, evitar guerras, órgão conhecido como Organização das Nações Unidas - ONU.
No final de 1948, ocorre o efetivo reconhecimento do princípio da dignidade da pessoa humana como direito humano a ser salvaguardado, quando na Assembleia Geral da ONU através da Resolução nº 217 A, foi adotada e proclamada a Declaração Universal dos Direitos Humanos. O princípio objeto deste estudo encontra-se no artigo 1º do DUDH, in verbis:
Artigo 1. Todas os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotados de razão e consciência e devem agir em relação uns aos outros com espírito de fraternidade (UN General Assembly, 1948).
Logo, a dignidade humana torna-se um intrumento de luta social, sendo evidenciada como um princípio de suma importância devido ao seu caráter essencial ligado a valores como justiça e solidariedade, por exemplo.
O fato é que somente com a promulgação da Constituição da República Federativa do Brasil, em 5 de outubro de 1988, o ordenamento jurídico pátrio insere em seu arcabouço normativo a dignidade da pessoa humana como garantia e direito fundamental, em seu artigo 1º, III, como um princípio garantidor da própria república brasileira, vide:
Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: [...] III - a dignidade da pessoa humana (BRASIL, 1988).
O desafio seguinte à constitucionalização do princípio seria criar mecanismos para garantir a sua aplicabilidade no convívio social, como garantidor da paz e da segurança jurídica:
Tratar do Princípio da Dignidade da Pessoa Humana é tratar da sua inserção dentro de um Estado Democrático de Direito, que constitui o fundamento do nosso sistema constitucional e da nossa organização como Estado Federativo, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade, a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, como observamos no preâmbulo da nossa Constituição, que muito bem explicita os anseios da sociedade e também a busca da segurança jurídica (BARBIERI, 2007, p.3).
O princípio da dignidade da pessoa humana é o núcleo de todo o ordenamento jurídico-constitucional que deve ser considerado e respeitado devido ao seu caráter essencial no estado democrático de direito, por ser anterior à própria norma. É inerente às personalidades humanas e afasta a ideia de predomínio das concepções transpessoalistas de Estado e Nação, em detrimento da liberdade individual. Um valor espiritual e moral inerente à pessoa, constituindo-se um mínimo invulnerável que todo estatuto jurídico deve assegurar, de modo que, somente excepcionalmente, possam ser feitas limitações ao exercício dos direitos fundamentais, mas sempre sem menosprezar a necessária estima que merecem todas as pessoas enquanto seres humanos (MORAIS, 2014).
O Ministro Carlos Ayres Britto do Supremo Tribunal Federal (STF), no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 3510-0 sobre a Lei de Biossegurança e pesquisas com células tronco, no ano de 2008, posicionou-se da seguinte forma ao ponderar sobre o princípio:
A dignidade da pessoa humana é princípio tão relevante para a nossa Constituição que admite transbordamento. Transcendência ou irradiação para alcançar, já no plano das leis infraconstitucionais, a proteção de tudo que se revele como o próprio início e continuidade de um processo que deságüe, justamente, no indivíduo-pessoa. Caso do embrião e do feto, segundo a humanitária diretriz de que a eminência da embocadura ou apogeu do ciclo biológico justifica a tutela das respectivas etapas (BRASIL, 2008).
Sob este aspecto, é importante considerar a constitucionalização do direito. Fenômeno que consiste na irradiação das normas constitucionais a todo o ordenamento jurídico infraconstitucional, como um modelo para interpretação e validação das normas jurídicas, a constitucionalização foi abordada por Barroso (2015) em seu texto Neoconstitucionalismo e constitucionalização do Direito.
Assim, o jurista-intérprete terá que interpretar todo o ordenamento jurídico à luz dos valores constitucionais, com primazia e em primeira instância e não mais deverá se ater apenas aos códigos, as resoluções, as portarias ministeriais e outros documentos do ordenamento jurídico, que complementam a lei infraconstitucional. Todo o direito é interpretado a partir da Constituição.
Quando aborda-se o referido princípio é preciso observar como é garantida a eficácia e aplicabilidade deste no plano fático, aonde as relações sociais se desenvolvem e estão em constante dinamicidade. Barroso (2014) afirma que, para fins didáticos, existem três modalidades de eficácia dos princípios: a direta, na qual se extrai uma regra a partir do núcleo essencial do princípio, permitindo, assim, sua aplicação; a interpretativa, em que as normas devem dialogar de forma a convergir com referido princípio e este servirá como critério de ponderação na hipótese de colisão de normas; e, por fim, a negativa, que paralisa, em caráter geral ou particular, a incidência de regra jurídica que seja incompatível com a dignidade humana.
Defende ainda que no momento da aplicação correta dos princípios sempre geram regras que regem situações específicas. Como forma de diferenciar dois dos principais aspectos da dignidade da pessoa humana, pode-se visualizar este princípio como dois círculos concocêntricos. O circulo interno contém o conteúdo essencial do princípio e é uma fonte direta de direitos e deveres. Para exemplificar, tem-se a seguinte situação: quando um direito não está expresso na constituição ou não existe nenhuma regra específica impedindo uma conduta, como o direito geral contra a autoincriminação no Brasil, a lacuna pode ser suprida pela extração do significado essencial da dignidade . Esse é o primeiro papel de um princípio como a dignidade da pessoa humana: funcionar como fonte de direitos (BARROSO, 2014).
Outro papel principal é o interpretativo. A dignidade humana é parte do núcleo essencial de outros direitos fundamentais, como a liberdade, igualdade e o voto. Assim sendo, ela vai informar qual é a forma de interpretação de tais direitos, ajudando a definir seu sentido no caso concreto. Ademais, quando houver lacunas no ordenamento jurídico, a dignidade da pessoa humana pode servir como parâmetro para encontrar a melhor resolução (BARROSO, 2014).
Para estudar a eficácia do princípio é necessário também lançar luz às teorias que analisam a eficácia da própria Constituição. Lassale (1933), ao abordar a temática, defende que existe a constituição formal e a constituição real, sendo esta última a que realmente disciplina as relações sociais e está condicionada aos fatores reais do poder, que o mesmo definiu, contextualizando à Prússia de seu tempo, como sendo a monarquia, a aristocracia, a grande burguesia, os banqueiros, a pequena burguesia e a classe operária.
Existe outra constituição que rebaixa a jurídica ao status de folha de papel, e ela não é configurada por “direitos”, muito antes, ela é a manifestação de poder, ou melhor, de fatores reais do poder (LASSALE, 1933, p. 17-18).
O doutrinador defende que, em um país, existem duas constituições: a constituição real e a jurídica, sendo que esta última não passaria de uma mera formalidade escrita que está irremediavelmente subjugada à constituição real, na qual as relações de poder dominantes em um Estado preponderam.
Contra argumentando essa linha de pensamento, Konrad Hesse (1991) parte de uma análise criteriosa, na qual argumenta que observar a Constituição e o próprio direito constitucional como mero espectador da imperatividade dos fatores reais do poder é a negação da ideia de justiça na sua forma mais ampla, nos dizeres do mesmo:
A idéia de um efeito determinante exclusivo da Constituição real não significa outra coisa senão a própria negação da Constituição jurídica. [...] Assim, o Direito Constitucional não estaria a serviço de uma ordem estatal justa, cumprindo-lhe tão-somente a miserável função — indigna de qualquer ciência — de justificar as relações de poder dominantes (HESSE, 1991, p.1).
A constituição, segundo Hesse, tem força própria, que se firma na medida em que logra idealizar a sua pretensão de eficácia que está vinculada necessariamente ao princípio da necessidade. As forças espontâneas que moldam o seu tempo possibilitam o desenvolvimento e a ordenação objetiva da Constituição e é através dessa adaptação que ela atua de forma a ter uma força vinculante para conseguir ditar os princípios basilares do Estado em que vigora.
Não obstante, a força normativa da Constituição não se assenta apenas na sua adaptação a uma realidade, ela deve convergir esforços para que a sociedade oriente a sua conduta segundo a ordem nela estabelecida, ou seja, essa ordem não logra ser eficaz sem o concurso da vontade humana.
A despeito de todas as teorias demonstradas, é essencial dar plena observância ao fato de que a CF/88 surge no âmbito da redemocratização no Brasil, consolidando direitos que foram arbitrariamente violados pelo próprio Estado brasileiro no período da Ditadura Militar. A Carta Magna nasce, então, do clamor populacional e veio consolidar princípios que deveriam ser respeitados e efetivados sumariamente, como o princípio da dignidade da pessoa humana, passado a vigorar com plena força normativa e correspondendo aos anseios do povo de seu tempo.
Com todo o exposto, ao analisar a amplitude do significado do princípio da dignidade humana e a sua força normativa, segundo critérios apontados pelos doutrinadores, referentes a própria Constituição, tem-se clarificado o entendimento de que o exercício de tal princípio deve alcançar a todos os cidadãos, independentemente de orientação sexual ou de gênero. Por isso, o Estado deve agir com impessoalidade ao desenvolver leis e políticas públicas para que alcancem a grande diversidade de pessoas, sem discriminação de nenhum tipo, buscando a integração, o reconhecimento de todos como parte necessária do Estado e do próprio Direito através da garantia do exercício do princípio da dignidade da pessoa humana.
CONCLUSÃO
Este trabalho possibilitou o entendimento sobre a aplicabilidade do princípio da dignidade da pessoa humana no estado brasileiro. Em um primeiro momento, tratou-se do contexto histórico que possibilitou a inserção do princípio no ordenamento constitucional. Ademais, buscou-se a sua definição e conteúdo axiológico, para resultar, enfim, nas teorias que abordam sobre o alcance jurídico do princípio.
Conclui-se que a dignidade atua como fonte do direito, quando supre lacunas existentes no ordenamento jurídico, e como parâmetro interpretativo para regras infraconstitucionais, dado o processo de constitucionalização do direito, ou até mesmo como núcleo essencial de outros direitos fundamentais.
A despeito de outras teorias discutidas neste trabalho, pode-se obsevar que outros fatores condicionam a aplicação fática do princípio, conforme asseverou Lassale a seu tempo, e que estes dependem das estruturas sociais que predominam à época. Já Hesse, aponta para força normativa da Constituição que não se assenta apenas na sua adaptação a uma realidade, mas sim na união de esforços comund para que a sociedade oriente a sua conduta segundo a ordem nela estabelecida.
REFERÊNCIAS
BARROSO, L. R. A Dignidade da Pessoa Humana no Direito Constitucional Contemporâneo: A construção de um conceito jurídico à luz da jurisprudência mundial. 3ª reimpressão. Editora fórum, 2014.
BARROSO, L.R. Neoconstitucionalismo e a constitucionalização do direito: o triunfo tardio do direito constitucional no Brasil. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 851, 1 nov. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/7547. Acesso em: 4 mar. 2020.
BARBIERI, S. R. J. O Princípio da Dignidade da Pessoa Humana e os Povos Indígenas. Outubro de 2007. Disponível em: < http://www.direitonet.com.br/artigos/exibir/3799/O-principio-da-Dignidade-da-Pessoa-Humana-e-os-Povos-Indigenas>. Acesso em: 4 de janeiro de 2020.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 3510-0. Requerente: Procurador-geral da república. Requerido: Presidente da república. Relator: Ministro Ayres Britto. Brasília. 29 de maio de 2008. Disponível em: < http://www.stf.jus.br/portal/geral/verPdfPaginado.asp?id=611723&tipo=AC&descricao=Inteiro%20Teor%20ADI%20/%203510>
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal: Centro Gráfico, 1988.
HESSE, K. A Força Normativa da Constituição. Trad.: Gilmar Ferreira Mendes. Disponível em: < http://www.geocities.ws/bcentaurus/livros/h/hessenpdf.pdf> Acessado em 20 de fevereiro de 2020.
LASSALLE, F. O Que é Uma Constituição?. Trad.: Walter Stönner. São Paulo: Edições e Publicações, 1933.
MORAIS, A. Direito Constitucional. 30ª Ed. São Paulo: Atlas, 2014.
ONU. Declaração Universal dos Direitos Humanos. 1948. Disponível em: < http://www.ohchr.org/EN/UDHR/Documents/UDHR_Translations/por.pdf>. Acesso em: 27 de fevereiro de 2017.