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A crise do superego brasileiro:

aspectos da criminalidade infanto-juvenil

26/02/2006 às 00:00
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"Minha vida é um grande playground, onde eu só posso ‘brincar de fora’: fora da vitrine, da loja, da padaria. A vitrine é o lugar das coisas que eu não posso ter.

Não estou na paisagem. Sou apenas um contraponto que reafirma a vida real dos outros. De algum modo, sou útil. Nem sei que sou infeliz. Para mim, minha vida é normal. Os outros é que se sentem anormais na minha presença. Eu não tenho pena de mim mesmo; por isso, os outros ficam tão culpados(...).

As pessoas preferiam que eu não existisse. Percebo isso com encanto, quando sou expulso de uma loja, ou quando ignoram minha presença. Eu percebo que estrago a festa. Eu sou o Outro total, o Outro completo, tão ‘outro’ que não posso ser visto. Não tenho espelho, nada me reflete". [01]


O trecho acima transcrito, extraído da crônica "Eu Sou um Leãozinho que ainda não Morde", da lavra de Arnaldo Jabor, apresenta-se em perfeita consonância com a realidade de grande parte das crianças brasileiras, cujas precárias condições de desenvolvimento têm sido o cerne dos mais variados debates, principalmente agora, quando o "Estatuto da Criança e do Adolescente" completa seus quinze anos. Frente à crescente criminalidade infanto-juvenil, o êxito da Lei 8.069/90 tem sido alvo de diversos questionamentos, motivando variadas proposições, especialmente no sentido de se promover a diminuição da maioridade penal.

Mais uma vez, o que se observa por parte daqueles que defendem este posicionamento é uma visão reducionista da questão e a tentativa de implementar mais uma política criminal simbólica, com o nítido objetivo de angariar votos e nenhuma preocupação em atacar as raízes de um problema social, que, em parte, apresenta-se de fácil diagnóstico.

Distintamente do que propaga o legislador e grande parte da mídia brasileira, claramente comprometidos com a manutenção de um status quo que se afigura insustentável, a solução para o problema da criminalidade da criança e do adolescente não está na produção em massa de leis penais mais rígidas, mas na maior atenção do Estado com a instituição da família e com a garantia de acesso a uma educação pública ampla e de qualidade, que assegure a igualdade de oportunidades a todos, de modo a efetivar o princípio constitucional da isonomia.

As origens de nossa banalizada criminalidade encontram clara explicação psico-sociológica, remetendo-nos à constatação de uma ruptura generalizada com o pacto edípico e, conseqüentemente, com o pacto social, situação que se observa catalisada pelo modelo capitalista globalizante em que navegamos, estando à beira do naufrágio. O quadro é grave, em especial nos grandes centros urbanos, onde o abismo que diferencia as classes sócio-econômicas é mais aparente e a influência do capitalismo mostra-se agigantada.

Para melhor transparecer o que se entende por ruptura com o pacto edípico e social, valiosas são as palavras proferidas por Hélio Pellegrino [02]:

"A ruptura com o pacto social, em virtude de sociopatia grave – como é o caso brasileiro –, pode representar a ruptura, ao nível do inconsciente, com o pacto edípico. Não nos esqueçamos que o pai é o primeiro e principal representante, junto à criança, da Lei da Cultura. Se ocorre, por retroação, uma ruptura, fica destruído, no mundo interno, o significante paterno, o Nome-do-pai, e em conseqüência o lugar da lei. Um tal desastre psíquico vai implicar o rompimento da barreira que impedia – em nome da Lei – a emergência dos impulsos delinqüenciais pré-edípicos. Assistimos a uma verdadeira volta do recalcado. Tudo aquilo que ficou reprimido – ou suprimido – em nome do pacto com o pai, vem à tona, sob forma de conduta delinqüente e anti-social".

A família brasileira enfrenta grave crise, mais facilmente identificável no extremo inferior da pirâmide sócio-econômica, onde se situam aqueles extremamente pobres e os miseráveis, que, diga-se, são muitos. A corrida pela sobrevivência ou a inexistência de meios suficientes para o sustento de uma prole vem apresentando à sociedade várias gerações de filhos de pais ausentes, que, apesar de desprovidos de condições econômicas mínimas, não se vêem livres do bombardeio de informações que lhes impõe um querer ter ilimitado, próprio do modelo capitalista vigente, que não distingue seus alvos. Na impossibilidade de satisfazer esse desejo inculcado junto aos pais, como fariam os filhos dos grupos mais abastados, muitas das vezes, os rebentos das classes sócio-econômicas inferiorizadas ingressarão na criminalidade à procura de uma identidade que não lhes fora conferida pela sociedade e do êxito material, cujo acesso por meios legítimos não lhes foi assegurado pelo sistema, o qual cuidou, entretanto, de lhes impor a conquista e o modelo de sucesso. Daí a célebre frase atribuída a Hélio Luz, ex-secretário de segurança pública do Rio de Janeiro: "o pobre é convidado para a festa, mas é barrado na porta".

Nascendo na miséria, muitas crianças sequer contam com uma figura que possa representar o Nome-do-pai a que se refere Hélio Pellegrino e, assim, nelas fixar a lei, de modo a prepará-las para o saudável ingresso na vida social. Tal condição implica o inevitável e grave comprometimento do superego destes indivíduos, que nunca viram suas fantasias onipotentes interditadas e com base nesta ausência de limites internos continuarão se comportando.

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Caracteriza-se o superego por ser, tal como definiu Freud, uma das instâncias da personalidade, que funciona como uma espécie de censor em relação ao ego. Compreendendo as interdições parentais do pacto edípico, o superego constitui a lei e a proibição de sua transgressão, ao qual são acrescidos os interditos sócio-culturais.

Esta falta de cerceamento interno aliada à busca pela identidade que, no paradigma capitalista, só poderá ser alcançada a partir da posse desenfreada de bens consumíveis, cria um indivíduo que, mesmo sem acesso aos meios legítimos de consecução do sucesso imposto, não respeitará limites a conter sua ação. Sem o reconhecimento do outro e, portanto, sem identidade que os situe no mundo, os meninos e meninas que já nasceram marginalizados não hesitarão em buscar seu espelho no submundo do crime, onde fatalmente serão acolhidos.

A reunião entre os igualmente marginalizados constitui um núcleo de poder embasado na força, que possibilitará aos nele infiltrados o reconhecimento mútuo, o respeito externo (pelo medo) e o alcance de seus objetivos materiais. Afinal, quem é o exemplo de alcance fácil do sucesso exigido pela sociedade mais próximo destas crianças: o traficante e o praticante de roubos, reconhecidos e respeitados em seu ambiente, ou o professor, desvalorizado e inferiorizado pelo poder público e pela comunidade?

Assim, em busca de sua identidade e de seu reconhecimento pessoal, que acreditam vir do tênis de marca ou do carro da moda, muitas das crianças e adolescentes pegarão em armas ou sucumbirão às tentações do tráfico de drogas. Com desejos ilimitados e destituídos de perspectivas maiores, que não a da satisfação imediata de seu prazer, temos formado um exército de kamikazes, que lotam os institutos médico-legais com seus corpos e também com os daqueles integrantes das castas sociais mais privilegiadas, que nunca os reconheceram como iguais e cujas vidas nada lhes representa.

Apresentado o problema, necessária a pergunta: qual seria a solução ou uma das soluções? A princípio, pode-se responder que certamente ela não está na criação ou no recrudescimento das leis penais. Aliás, de se destacar que a inflação penal legislativa decorrente do "Movimento de Lei e de Ordem", que inspira o legislador há cerca de quinze anos, e a óbvia ineficácia desta política só tendem a agravar o quadro instaurado, haja vista o incremento da sensação de impunidade. Já não há cárcere, polícia ou aparato de justiça criminal suficiente à efetivação de tantas leis penais, sendo impossível se cogitar a extensão do alcance destas aos menores de dezoito anos.

Defendo que uma das soluções viáveis e, frise-se, a mais importante, mesmo que não garanta votos para o próximo certame eleitoral por ser realizável a longo prazo, consiste na concentração de esforços do poder público no trabalho de promover a socialização e conscientização especialmente das crianças e adolescentes em situação de risco. A assistência às famílias e a garantia de uma educação de qualidade e cultura são os únicos instrumentos que podem assegurar a estes menores a construção de uma identidade sólida, internalizando-lhes as regras de convivência em sociedade e oportunizando-lhes o acesso aos meios legítimos de se obter êxito pessoal, com o desenvolvimento de suas potencialidades. Trata-se, tão-somente, da implementação e efetivação de fundamentos e princípios constitucionais, como a dignidade da pessoa humana e a isonomia, os quais vêm sendo relegados por nossos políticos, que mais se atêm a práticas fisiológicas, perpetuando um vício histórico descrito com maestria por Sérgio Buarque de Holanda e cujas raízes remontam aos tempos do Brasil imperial.


Notas

01 JABOR, Arnaldo. Sanduíches de realidade e outros. 9ª ed. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001. ps. 141/142.

02 Do texto Pacto Edípico e Pacto Social (Da gramática do desejo à sem-vergonhice nacional), elaborado por Hélio Pellegrino em pronunciamento feito no Teatro Ruth Escobar, em 08 de julho de 1983, durante debate sobre a peça Édipo – Rei de Sófocles.

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Sobre o autor
Domingos Barroso da Costa

Graduado em Direito pela UFMG. Especialista em Criminologia e Direito Público. Mestre em Psicologia pela PUC-Minas. Assessor judiciário e professor universitário. Membro do INESPE – Instituto Novalimense de Estudos do Sistema Penitenciário.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

COSTA, Domingos Barroso. A crise do superego brasileiro:: aspectos da criminalidade infanto-juvenil. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 969, 26 fev. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/8023. Acesso em: 10 mai. 2024.

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