A proibição do aborto frente ao direito à vida e à dignidade da mulher

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Resumo: O presente trabalho teve como tema central a interrupção voluntária da gravidez e os efeitos de sua proibição legal no direito à vida e na dignidade da mulher, ainda que vise a proteção da vida intrauterina. Para tanto, foi realizada uma revisão bibliográfica acerca do direito à vida, da dignidade da pessoa humana e da legislação aplicável ao aborto no Brasil, acompanhada de uma análise da problemática que envolve a repressão ao aborto e os impactos na saúde, vida e dignidade da mulher. Em seguida, foram expostos argumentos e dados estatísticos que justifiquem sua descriminalização diante da realidade social. Concluiu-se que, embora coerente com a proteção jurídica conferida à vida intrauterina, a proibição do aborto vai de encontro à proteção da vida das mulheres, que muitas vezes recorrem à prática correndo o risco de graves complicações, dentre as quais o óbito, além de violar outros direitos fundamentais, tais como a liberdade, igualdade, saúde e dignidade humana, sendo necessária uma revisão da legislação aplicável ao tema.

Palavras-chave: Aborto. Direitos Fundamentais. Dignidade.

Sumário: Introdução. Desenvolvimento. Considerações finais. Referências bibliográficas.


INTRODUÇÃO

Muito se tem discutido sobre a necessidade de se repensar a criminalização do aborto. Trata-se de assunto polêmico e complexo que envolve valores subjetivos os quais levam, muitas vezes, a não análise do tema numa perspectiva racional (LIRA, 2013).

O Código Penal Brasileiro, em seus artigos 124 à 128, trata da questão do aborto, proibindo sua prática, salvo em situações excepcionais, tais como em caso de gravidez decorrente de estupro, ou quando não houver outro meio de salvar a vida da gestante.

Ocorre que, não obstante a proibição da interrupção voluntária da gravidez pela legislação brasileira, a prática continua corriqueira entre as mulheres. Os resultados da Pesquisa Nacional do Aborto (PNA) do ano 2016 indicaram que aproximadamente uma em cada cinco mulheres brasileiras de até 40 anos já realizou ao menos um aborto na vida, sendo que metade utilizou medicamento abortivo e quase metade precisou ficar internada para finalizar o procedimento. Tendo em vista que a maior parte dos abortos é feita de forma ilegal e clandestina, logo, fora das condições plenas de saúde, os resultados obtidos colocam a prática como um dos maiores problemas de saúde pública do Brasil, tornando necessárias medidas do Estado para inclusão da discussão do tema na agenda política do país (DINIZ, MEDEIROS E MADEIRO, 2016).

A pesquisa indicou ainda que, em comparação com os resultados da mesma investigação ocorrida no ano 2010, os números relativos à prática do aborto se mostraram estáveis, sem alteração relevante, indicando que o problema de saúde pública chama atenção não apenas pela alta magnitude, mas também pela sua persistência. As políticas brasileiras direcionadas à questão do aborto o tratam sob ponto de vista religioso e moral, respondendo com a criminalização e a repressão policial. No entanto, a comparação dos resultados do PNA de 2010 e 2016 apontam que essa política é não apenas inefetiva, mas também nociva (DINIZ, MEDEIROS E MADEIRO, 2016).

Ocorre que a criminalização do aborto pela legislação brasileira visa a proteger um direito maior, qual seja, o direito à vida. Tal direito encontra-se expresso no caput do artigo 5º da Constituição Federal de 1988, sendo o mais elementar dos direitos fundamentais, pois, sem ele, qualquer outro direito não pode ser usufruído. A Constituição protege tanto a vida extrauterina quanto a intrauterina e, em coerência com a lei maior, o Código Penal proíbe a prática do aborto, permitindo apenas o aborto terapêutico e o humanitário. (ALEXANDRINO E PAULO, 2018).

Entretanto, a problemática do aborto envolve não apenas aspectos jurídicos, mas também outras áreas do conhecimento humano, tais como a biologia, a filosofia, a sociologia, a medicina, a psicologia e outras mais, tornando-a ainda mais complexa. Do ponto de vista jurídico, verifica-se uma incoerência entre a legislação restritiva e a realidade social (RORATO, 2013).

Para piorar, verifica-se que a criminalização do aborto, embora vise à proteção do direito à vida intrauterina, na prática coloca em risco a vida da mãe abortante, que se submete a práticas clandestinas independentemente da legislação proibitiva. Por esse motivo, a legislação poderia estar em desacordo com a dignidade humana da mulher que recorre à prática abortiva.

Recente estudo da Organização Mundial de Saúde (OMS) e do Instituto Guttmacher indicam que entre 2010 e 2014 ocorreram no mundo 25 milhões de abortos não seguros a cada ano, número este que corresponde a 45% do total de abortos, sendo a maior parte em países em desenvolvimento, inclusive na América Latina. De acordo com os pesquisadores, o aborto clandestino traz graves consequências para a mãe, dentre as quais, o óbito. Nesse estudo, foi verificado ainda uma relação positiva entre abortos seguros – feitos de acordo com os padrões da OMS e por profissional competente para tal – e a existência de uma legislação menos restritiva (GANATRA et al, 2017).

Os níveis de internação pós-aborto verificados na Pesquisa Nacional de 2016 apresentou queda em relação à mesma pesquisa feita em 2010, o que indica que as mulheres podem pelo menos estar buscando meios menos nocivos para realização do aborto, tal como o uso do medicamento misoprostol, recomendado pela Organização Mundial de Saúde para realização de aborto seguro. No entanto, esses índices poderiam diminuir ainda mais se a prática não fosse tratada como clandestina e se fosse garantido o acesso seguro aos medicamentos (DINIZ, MEDEIROS E MADEIRO, 2016).

Diante do exposto, verifica-se a necessidade de se repensar a legislação aplicável ao tema aborto no Brasil. Pergunta-se: até que ponto o direito à vida deve ser invocado no intuito de se proibir a prática do aborto, sem ferir a dignidade das mulheres que recorrem a essa prática clandestinamente, correndo o risco de óbito? A legislação proibitiva, embora proteja a vida intrauterina, não colocaria em risco a vida da mãe?

O presente trabalho teve como escopo avaliar a coerência entre a legislação aplicável ao aborto, o direito à vida e a dignidade da mulher. Para isso, foi analisado, do ponto de vista jurídico, o efeito de uma possível legalização do aborto no direito à vida; verificado como a legislação sobre o tema impacta na dignidade humana da mulher; procurou-se identificar quais são os argumentos pró e contra o aborto. Por fim, foi proposta uma nova reflexão sobre a temática do aborto dentro da realidade social.

Este estudo adotou como base de pesquisa o método hipotético-dedutivo. Foi introduzido com uma análise da relação entre as normas referentes ao aborto no Brasil e a proteção do direito à vida intrauterina. Para tanto, foi realizada uma revisão bibliográfica sobre o direito à vida, a dignidade da pessoa humana e a legislação aplicável ao aborto no Brasil, obtendo-se os dados necessários a partir de obras doutrinárias, bem como da legislação pátria e recentes pesquisas e jurisprudências relacionadas ao tema. Em seguida, foi feito um estudo sobre a problemática que envolve a proibição da prática e seu efeito na vida e saúde da mulher, expondo dados estatísticos e argumentos que justificam a sua descriminalização. Por fim, foi analisada a necessidade de uma revisão da legislação referente ao assunto.


1. A proibição do aborto frente ao direito à vida

Em conformidade com o constitucionalismo contemporâneo, o princípio da dignidade da pessoa humana foi incorporado expressamente na Constituição Federal de 1988, em seu art. 1º, inciso III, como seu valor supremo e definido como fundamento da República Federativa do Brasil. É considerado um “superprincípio” que deve direcionar a interpretação da Constituição Federal. Sua aplicação não pode ser afastada em casos concretos, especialmente em situações em que se verificam desrespeitos à vida, à integridade física e psíquica, ausência de condições mínimas de existência digna, limitação da liberdade ou provocação de desigualdade ou em casos de flagrante desrespeito a direitos fundamentais. O princípio em questão vincula a atuação dos poderes estatais, e todas as normas — constitucionais e infraconstitucionais — que lhe sejam contrárias são consideradas ilegítimas, devendo ser afastadas do ordenamento jurídico (GARCIA E MARTA, 2009).

Para Sarlet (2008) um significado claro de dignidade humana é difícil de ser obtido de maneira satisfatória e precisa, inclusive para fins de definição do seu âmbito de proteção como norma jurídica fundamental. O autor formula a seguinte proposta de conceito:

Assim sendo, temos por dignidade da pessoa humana a qualidade intrínseca e distintiva reconhecida em cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e corresponsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos (SARLET, 2008, p. 63)

A dignidade humana possui a condição de valor informador de toda a ordem jurídica e os direitos fundamentais consistem em explicitações dela, havendo assim uma relação indissociável entre ambos (SARLET, 2008).

A Constituição Federal de 1988 determina, em seu artigo 5º, caput, que “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade (...)”.

O direito à vida é tido como o mais fundamental de todos os direitos, pois a existência e o exercício de qualquer outro direito se condicionam a ele. Sem vida, nenhum outro direito pode ser sequer considerado (ALEXANDRINO & PAULO, 2018; MORAES, 2012; SILVA, 2017).

Em decorrência do princípio da dignidade da pessoa humana, resulta que o direito fundamental à vida não se trata apenas do direito à sobrevivência física, mas sim a uma existência digna sob o aspecto espiritual e material, em conformidade com o Estado Social Democrático. Dessa forma, o direito à vida, do ponto de vista biológico, abrange o direito à integridade física e psíquica e se desdobra, dentre outros, no direito à saúde, na proibição da pena de morte e do aborto. Já numa visão mais ampla, significa o direito a condições mínimas necessárias a uma existência condizente com a natureza humana (ALEXANDRINO E PAULO, 2018).

Nesse sentido, em julgamento de grande repercussão social, o Supremo Tribunal Federal decidiu que a interrupção da gravidez em caso de feto anencéfalo não constitui crime, de forma que o direito à dignidade e à saúde da gestante, inclusive psíquica, deveriam prevalecer sobre a proteção à vida intrauterina, tendo em vista que a condição de anencefalia é sempre letal. Destaca-se que a decisão da corte suprema aplica-se exclusivamente à interrupção da gravidez em razão de feto anencéfalo, não se estendendo a outros tipos de má-formação (ALEXANDRINO E PAULO, 2008).

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Trata-se do julgamento da Ação de Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF nº 54), proposta pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde (CNTS) em 17 de junho de 2004, na qual, oito anos depois, houve a decisão, por maioria dos votos dos ministros do Supremo Tribunal Federal, declarando a inconstitucionalidade da interpretação de acordo com a qual a interrupção da gravidez de feto anencéfalo é conduta tipificada no Código Penal (GRECO, 2018).

Em concordância com a proteção que a ordem jurídica concede à vida intrauterina, o Código Penal Brasileiro, em seus artigos 124 à 128, trata da questão do aborto, proibindo sua prática, salvo em situações excepcionais, tais como em caso de gravidez decorrente de estupro, ou quando não houver outro meio de salvar a vida da gestante (ALEXANDRINO E PAULO, 2008).

Ensina Jacques Robert apud Silva (2017, p. 200) que:

O respeito à vida humana é a um tempo uma das maiores ideias de nossa civilização e o primeiro princípio da moral médica. É nele que repousa a condenação do aborto, do erro ou da imprudência terapêutica, a não aceitação do suicídio. Ninguém terá o direito de dispor da própria vida, a fortiori da de outrem e, até o presente, o feto é considerado como um ser humano.

O aborto é conceituado como o ato de interromper o processo gestacional com a retirada do feto do interior uterino, podendo ser classificado como natural, acidental, criminoso, terapêutico, humanitário (ou sentimental), estético, eugênico ou social (econômico). No aborto natural, a interrupção da gravidez ocorre de forma espontânea em razão de anormalidade no crescimento do feto, doença infecciosa ou distúrbio glandular. O acidental, por sua vez, ocorre por interferência externa involuntária, como uma queda, por exemplo. Ambos são impuníveis. O aborto eugênico se dá quando há sério e grave problema de formação do feto. O social ou econômico é o permitido às famílias que se encontram em difícil situação financeira. O Código Penal brasileiro apenas permite o aborto terapêutico e o humanitário (BELO, 1999).

De acordo com Silva (2017), houve três vertentes em relação ao aborto no seio da Constituinte. Uma defendia o direito à vida desde a concepção, o que levaria à proibição do aborto. Outra possibilitaria a prática por entender que o indivíduo passava a ser sujeito de direito a partir do nascimento com vida, sendo a vida intrauterina responsabilidade da mãe. A terceira, por sua vez, defendia que a Constituição não deveria interferir no assunto. No entanto, para o autor, a Constituição Federal de 1988 aponta para inadmissão do aborto e a resolução da questão depende da decisão de quando começa a vida.

No seu entendimento, já existe vida humana no feto e a sua interrupção não se justifica numa época em que há tantos recursos para se evitar a gravidez.

De acordo com Mattos apud Moraes (2012), o começo da vida ocorre, do ponto de vista biológico, no momento da fecundação do óvulo pelo espermatozoide, quando é gerado o zigoto. O embrião é um ser individualizado, com material genético distinto do pai e da mãe, sendo imprecisa a afirmação de que a vida do feto está englobada pela vida da mãe (BITTAR apud MORAES, 2012).

Belo (1999) defende que o nascituro é um ser vivo que cresce, tem metabolismos orgânicos, batimentos cardíacos e até se movimenta em determinada fase da gestação. Possui vida própria ainda que se encontre temporariamente dependente do corpo materno. Embora ainda não possua personalidade civil, a qual só começa a partir do nascimento com vida, existe uma expectativa de vida humana que a lei não poderia deixar de proteger, e a ele são conferidos direitos desde a concepção, de acordo com o Código Civil brasileiro.

No entanto, para fins de proteção pela legislação penal, a vida só terá relevância após a nidação, que consiste na implantação do óvulo fecundado no útero da mãe. Por tal motivo, não se pode afirmar que os dispositivos intrauterinos e as pílulas anticoncepcionais que atuam após a concepção, impedindo a implantação do óvulo no endométrio, sejam abortivos. Porém, implantado o ovo no útero materno, qualquer atitude no sentido de interromper a gravidez, em princípio, será considerada aborto, consumado ou tentado (GRECO, 2018).

Hironaka apud Garcia e Marta (2009) chama atenção para possíveis consequências indesejáveis que a descriminalização do aborto poderia acarretar, como a morte de seres silenciosos, indefesos e inocentes, indo contra um conjunto de valores pautados na dignidade da pessoa humana.

No mesmo sentido, Greco (2018) defende que a vida deve ser protegida a qualquer tempo, que não há diferença entre causar a morte de um ser que possui 10 dias de vida, ainda que intrauterina, ou 10 anos de idade. Argumenta que, na prática do aborto, não é levada em consideração a dor sofrida pelo óvulo, embrião ou feto e a morte de qualquer um deles é aceita com facilidade uma vez que seu sofrimento não é sentido.

No Brasil, nem mesmo a condição de miserabilidade poderia ser invocada para afastar a ilicitude da prática do aborto. Em caso de gestante que viva numa situação de exclusão social, sem que o Estado lhe forneça meios suficientes para que possa trabalhar e cuidar de seus filhos, a gravidez deverá ainda assim ser levada adiante. Não lhe é permitido causar a morte de um ser em desenvolvimento em razão da impossibilidade de mantê-lo após o nascimento, devendo, neste caso, entregá-lo para adoção (GRECO, 2018).

Verifica-se, pois, que a legislação proibitiva do aborto no Brasil é coerente com a proteção que o ordenamento jurídico confere à vida intrauterina, não havendo, a princípio, discrepância, pelo menos do ponto de vista jurídico.


2. A violação dos direitos humanos da mulher

“Ainda que pareça paradoxal, falar em aborto é falar em vida” (Dias, 2004, p.88).

No Brasil, desde os tempos coloniais, o aborto foi repudiado pela Igreja Católica, que o considerava homicídio, muitas vezes provocado em razão de relacionamentos extraconjugais. A medicina sustentava tais entendimentos responsabilizando somente as mulheres pelo aborto em razão de suas femininas “paixões”, que estavam em desacordo com a vida familiar digna. A prática do aborto também ia de encontro aos interesses mercantilistas da metrópole portuguesa, que buscava a ocupação demográfica da colônia (DEL PIORE apud GARCIA E MARTA, 2009).

O tema aborto é sempre tratado com significativa carga de emotividade, uma vez que possui desdobramentos não apenas no campo legal e médico, mas também na Ética, na Filosofia, na Psicologia, além de implicações na Religião e na Política (DIAS, 2004).

Trata-se de assunto que provoca reações bastante apaixonadas em razão, dentre outras, da posição da Igreja Católica, que condena a prática mesmo nas situações admitidas pela legislação brasileira (SACRAMENTO, 2007).

No entanto, Sacramento (2007) defende que o Direito não deve se submeter aos valores da religião Católica e impor a posição dela, inclusive aos não crentes, ainda que se trate de religião predominante no país. Isso porque a Constituição Federal de 1988 consagrou, em seu artigo 19, inciso I, o princípio da laicidade do Estado, que impõe uma posição neutra do Poder Público quanto às muitas concepções religiosas. Dessa forma, a fundamentação para tratar do tema aborto deve ser isenta de ideais religiosos e sim basear-se em argumentos jurídicos, científicos e de moralidade laica.

Não é simples encontrar uma solução que satisfaça interesses contrários, em especial quando, de um lado, segmentos éticos e religiosos defendem uma repressão rígida enquanto grupos feministas radicais sugerem uma banalização do aborto, surgindo o risco de a prática ser usada como forma de controle de natalidade (DIAS, 2004).

Em que pese a Constituição Federal de 1988 não ter tratado expressamente do tema aborto voluntário, a matéria está intimamente ligada a conteúdos constitucionais, já que envolve princípios e valores supremos consagrados na Lei Maior (SACRAMENTO, 2007).

Sacramento (2007) defende a tese na qual a vida intrauterina recebe proteção jurídica em menor intensidade do que a vida de um ser que já nasceu e que a tutela ao nascituro aumenta progressivamente com o desenvolvimento do embrião. Como argumento, compara a pena atribuída pelo Código Penal brasileiro à gestante que comete o aborto (um a três anos de detenção) à pena prevista para o homicídio simples (fixada entre seis e vinte anos de reclusão). Cita ainda o artigo segundo do Código Civil, segundo o qual a personalidade civil da pessoa se inicia a partir do nascimento com vida, embora a lei coloque a salvo os direitos do nascituro desde a concepção. Também chama atenção para o sentimento social e exemplifica com o aborto espontâneo que, embora seja bastante doloroso para grande parte das famílias, não gera o mesmo sofrimento que a perda de um filho já nascido, já que a percepção geral é de que vida significa muito mais após o nascimento. Cita ainda o fundamento científico de que a formação do córtex cerebral apenas ocorre no segundo trimestre da gravidez e que antes disso o feto não é capaz de possuir sentimentos ou pensamentos. Por esses motivos, diz-se que o nascituro, embora possua vida, não é uma pessoa, mas um ser em potencial, merecendo sim proteção do ordenamento jurídico. Contudo, a proteção da vida intrauterina deve sujeitar-se a uma ponderação de interesses que envolvem outros direitos protegidos pela Constituição, em especial os direitos fundamentais da gestante.

Em estudo do aborto e Constituição no direito comparado, Sacramento (2007) verificou uma significativa tendência à liberalização do aborto visando proteger os direitos humanos das gestantes. Tal liberalização decorre, dentre outros fatores, do processo de emancipação da mulher e da laicização dos Estados. É o que ocorre, por exemplo, nos Estados Unidos da América, França, Itália, Alemanha, Portugal, Espanha, Inglaterra e Canadá, países em que a legislação é menos restritiva em comparação à brasileira. Chama atenção o fato de se tratar de países com tradições constitucionais semelhantes à do Brasil e nos quais os direitos fundamentais também ocupam posição privilegiada no ordenamento jurídico. De um modo geral, as legislações modernas procuram um equilíbrio entre os direitos humanos das gestantes e a proteção à vida do feto, que aumenta na medida em que progride a gestação.

No Brasil, em discordância com os parâmetros internacionais relativos ao tema, o aborto é permitido apenas em três situações: gravidez decorrente de estupro, em caso de risco de morte da mãe ou em casos de fetos anencéfalos.

A comunidade internacional, por meio dos Comitês da Organização das Nações Unidas (ONU) sobre os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (PIDESC), sobre a Eliminação da Discriminação contra a Mulher (CEDAW), e sobre Direitos Humanos (PIDCP) recomendou ao Brasil a adoção de medidas para efetivar o pleno exercício dos direitos sexuais e reprodutivos e enfatizou a necessidade de se enfrentar a temática do aborto como grave problema de saúde pública e de se reformar a legislação, eliminando medidas punitivas impostas às mulheres que recorrem à interrupção voluntária da gravidez (PIOVESAN, 2007).

2.1. Estatísticas do aborto

A Organização Mundial de Saúde (OMS) conceitua aborto inseguro como o procedimento de interrupção da gravidez realizado por indivíduo que não possui o treinamento necessário para tal ou praticado em ambiente em desconformidade com os padrões médicos mínimos. Já os abortos realizados por profissional competente e dentro dos padrões médicos são considerados seguros e as complicações ou mortes são mínimas (GANATRA et al, 2017).

Um grupo de pesquisadores da OMS e do Instituto Guttmacher realizou estudo global, regional e sub-regional em que classificaram a prática do aborto em três categorias de segurança baseadas na definição de aborto inseguro da OMS somada a diretrizes para aborto seguro da referida organização (as categorias foram: aborto seguro, menos seguro e pouco seguro, de forma que as duas últimas, somadas, refletem os abortos inseguros). Os abortos classificados como seguro, no estudo em questão, foram os realizados por meio de métodos recomendados pela OMS apropriados para o período gestacional e por profissional capacitado. Para serem classificados como “menos seguros”, deveriam atender ao menos um dos critérios anteriores. Os classificados como pouco seguros foram os praticados por pessoa não competente e usando-se métodos perigosos, tais como ingestão de substâncias nocivas ou inserção de corpo estranho, por exemplo (GANATRA et al, 2017).

Os resultados indicaram que dos 55,7 milhões de abortos ocorridos no mundo a cada ano entre os anos 2010 e 2014, 30,0 milhões foram realizados de forma segura, enquanto 17,1 milhões foram praticados de maneira menos segura e 8 milhões foram feitos de forma pouco segura. Somando os abortos menos seguros e os pouco seguros, verificou-se que 25,1 milhões de abortos, a cada ano, foram realizados de forma insegura e que 97% desse total ocorreu em países em desenvolvimento. Quando agrupados de acordo com a restrição legal do país, observou-se que o número de abortos inseguros foi significativamente maior nos países em que a legislação é altamente restritiva. Assim, apesar de os avanços científicos que possibilitam a prática segura na atenção primária à saúde, os abortos inseguros persistem e resultam em uma gama de complicações, como o óbito da mãe e os altos custos para a mulher, para as famílias e para o sistema de saúde. Os cientistas concluíram pela necessidade de esforços, principalmente nos países em desenvolvimento, para garantir o acesso ao aborto seguro (GANATRA et al, 2017).

A Pesquisa Nacional do Aborto de 2016, outro relevante estudo de aferição da prática, combinou a técnica de urna e questionário face a face, sem prejuízo do sigilo, o que tende a aumentar as respostas verdadeiras. Os resultados indicaram que a prática é comum no Brasil; que aos quarenta anos, cerca de uma em cada cinco mulheres já abortaram; que no ano de 2015 ocorreram cerca de meio milhão de aborto no país; que grande parte dos abortos é ilegal, logo, realizada fora das condições plenas de atenção à saúde; que as maiores taxas ocorreram entre mulheres de baixa escolaridade e renda, negras, pardas e indígenas; que houve significativas diferenças regionais quanto ao número de aborto (DINIZ, MEDEIROS E MADEIRO, 2016).

O estudo indicou ainda que, em comparação à Pesquisa Nacional do Aborto realizada em 2010, a proporção de mulheres que realizaram a interrupção da gravidez não alterou de forma relevante, indicando que o problema de saúde pública se destaca não só pela sua magnitude, mas também pela sua persistência. Indica ainda que a forma como a prática é tratada no país – com criminalização da prática e repressão policial – se mostra inefetiva e nociva, não diminui o número de abortos e impede que as mães busquem acompanhamento e informações para a prática segura. Por fim, a pesquisa indicou que o número de abortos praticados com o uso do medicamento misoprostol em detrimento de práticas mais danosas aumentou em relação à mesma pesquisa realizada em 2010, o que indica a possibilidade de as mortes por complicações terem diminuído. No entanto, permanecem outros riscos relevantes, tais como a necessidade de internação para finalizar o procedimento e os danos à saúde mental.

Já Dias (2014) aponta que, no Brasil, um milhão de abortos, talvez um milhão e meio, são praticados anualmente. Por se tratar de prática clandestina, o número dificilmente é quantificado com exatidão. Como consequência de procedimentos abortivos de má qualidade, mais de dez mil mulheres morrem anualmente, sendo a maior causa de morte feminina no país. Em razão dessas estatísticas, a OMS aponta o Brasil como recordista mundial em abortos provocados. Verifica-se que, ao proteger a vida de um embrião, o Estado deixa de garantir a vida das mulheres, já que apenas uma minoria que aborta possui recursos financeiros para o pagamento dos valores exorbitantes cobrados pelas clínicas particulares, onde o procedimento é realizado, ainda que clandestinamente, com um mínimo de segurança, em tese. Por tais motivos é imprescindível que o Estado assuma sua função de proteger a vida e a dignidade das gestantes, pois transformá-las em criminosas já se provou uma medida ineficaz para impedir o abortamento.

Dessa forma, paradoxalmente, os que defendem a inviolabilidade do direito à vida do feto acabam por contribuir para a morte seletiva das mulheres (PIOVESAN, 2007).

2.2. Perigos à mulher que aborta e a violação dos direitos fundamentais

O direito à liberdade, junto ao direito à isonomia, sustentam a dignidade da pessoa humana. Por essa razão, não se deve impor à mulher limites ao exercício do livre arbítrio sobre o próprio corpo, sob pena de afronta ao princípio da igualdade que equipara homem e mulher (DIAS, 2004).

Para Rorato (2013), a repressão criminal ao aborto viola a dignidade da mulher enquanto ser humano, sendo pois incompatível com a Lei Maior, que se norteia justamente pelo princípio da dignidade da pessoa humana. Além de não alcançar a função de preservar a vida intrauterina, coloca as mulheres em situação de clandestinidade muito mais grave do que a possível ausência de lei penal, já que provoca um maior número de direitos violados e não possui eficácia garantida. Dessa forma, torna-se necessária e urgente uma revisão da legislação aplicável ao tema.

Ainda, na opinião de Dias (2004, p.96):

O filho, por não haver sido desejado, quantos abortos não sofrerá vida afora? Certamente sofrerá incontáveis abortos: o aborto da violência, da fome, da indiferença, da cobrança, da exclusão social. Quantas vezes será violado seu direito constitucional à vida, à saúde, à alimentação, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar? Todos esses direitos só serão exercitados se viver em um “lar” - Lugar de Afeto e Respeito, onde o maior direito é o direito ao amor.

Assim, verifica-se que criminalização do aborto constitui uma violência contra a vida da gestante e da própria criança. Não se deve desconsiderar as possíveis consequências de se levar a termo uma gestação indesejada.

2.3. Tentativas de avanço no Brasil

Corroborando com as estatísticas e os argumentos expostos, o Partido Socialismo e Liberdade (PSOL) ajuizou, no Supremo Tribunal Federal, a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 442, por meio da qual requer seja declarada a não recepção parcial, pela Suprema Corte, dos artigos 124 e 126 do Código Penal brasileiro pela Constituição Federal de 1988, alegando que os referidos dispositivos, por criminalizarem a prática do aborto, violam os princípios e direitos fundamentais garantidos constitucionalmente (NOTÍCIAS STF, 2017).

A legenda defende que os motivos jurídicos que, em 1940, justificavam a criminalização do aborto pelo Código Penal já não se sustentam; que a criminalização do aborto viola a dignidade da pessoa humana e a cidadania das mulheres; que afronta também o princípio da não discriminação, tendo em vista que mulheres negras, indígenas, de baixa renda, de baixa escolaridade ou que vivem distante dos centros urbanos são desproporcionalmente afetadas por recorrerem a métodos mais inseguros do que os utilizados pelas abortantes de maior poder econômico ou com maior acesso à informação; que afronta ainda os direitos à saúde, à integridade física e psicológica das mulheres, à vida e à segurança, por abandonar as gestantes à clandestinidade de procedimentos inseguros que levam a óbitos evitáveis além da dor física e mental (NOTÍCIAS STF, 2017).

O partido entende que a análise da ADPF em questão deve ser feita de forma cumulativa, consistente e coerente com o enfrentamento da questão do aborto pelo STF, que liberou pesquisas com células-tronco embrionárias no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 3510, em 2018; que garantiu o direito à interrupção da gravidez de feto anencéfalo, em 2012, na ADPF 54 e que, no julgamento do Habeas Corpus (HC) 124306, em 2016, afastou a prisão preventiva de acusados da prática do aborto por meio da Primeira Turma. Por fim, solicita, no mérito, a declaração de não recepção parcial dos artigos 124 e 126 do Código Penal pela Constituição, excluindo do âmbito de sua incidência o aborto realizado nas primeiras doze semanas de gestação, além da concessão de liminar suspendendo prisões em flagrantes, inquéritos policiais, processos em andamento e decisões judiciais baseados na aplicação dos referidos dispositivos a casos de interrupção da gravidez realizadas no mesmo período (NOTÍCIAS STF, 2017).

Até o presente momento, não houve julgamento da referida ação de inconstitucionalidade. No entanto, em agosto de 2018 foi realizada audiência pública no STF, presidida pela Ministra Rosa Weber, como parte da preparação para o julgamento da ADPF 442, na qual foram ouvidos mais de sessenta especialistas do Brasil e do exterior, dentre os quais haviam pesquisadores, profissionais da saúde, juristas, representantes de organizações da sociedade civil de defesa dos direitos humanos e entidades de natureza religiosas, pessoas com diferentes pontos de vista em relação ao tema (NOTÍCIAS STF, 2018).

2.4. Ações necessárias

De acordo com Dias (2004), é fato que o abortamento vem sendo utilizado como método contraceptivo, seja por falta de informações, seja por falta de recursos para adoção de práticas de prevenção, seja por inexistência de efetivo programa de planejamento familiar. O procedimento clandestino se tornou uma indústria rentável, restando impunes diversos casos de mortes ou complicações, que ocorrem principalmente entre a população mais hipossuficiente, onerando o serviço previdenciário estatal. Prejudica ainda a população economicamente ativa, já que o período de fertilidade feminina coincide com sua produtividade.

Lira (2013) defende que ser a favor da descriminalização do aborto não significa defendê-lo como método contraceptivo e que o Estado deve, de toda forma, promover a educação sexual e reprodutiva, bem como o planejamento familiar, no ambiente escolar e nos diversos meios de comunicação social, além de propagar e fornecer métodos contraceptivos de forma gratuita a toda população.

Sacramento (2007), além da ampliação dos investimentos em planejamento familiar e educação sexual para redução do número de gestações indesejadas, propõe a garantia do direito à creche, a erradicação do preconceito contra a mulher grávida no ambiente de trabalho e o fortalecimento da rede de segurança social. Segundo o autor, trata-se de medidas muito mais eficazes na proteção da vida intrauterina e que não geram tantos efeitos colaterais quanto a repressão criminal ao aborto.

Por fim, argumenta que a descriminalização do aborto não será suficiente se o Estado não assegurar os procedimentos médicos necessários à prática segura por meio do Sistema Único de Saúde, pois as mulheres de baixa renda continuariam correndo os mesmos riscos de vida. E conclui que essa atuação não geraria aumento de gastos pelo Poder Público, já que o Governo já gasta considerável quantidade de recursos com o tratamento das consequências das práticas clandestinas.

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