A recente edição das Leis nos 11.276 e 11.277 em fevereiro de 2006 põe em voga os esforços concentrados na racionalização do tempo de duração dos processos judiciais no Brasil, objetivando sobretudo conferir alguma efetividade ao dispositivo constitucional que investe os litigantes no direito de exigir sua razoável duração (art. 5º, LXXXVIII da Constituição da República Federativa do Brasil – CRFB). Ambas as Leis visam promover fins que se têm perseguido nas últimas décadas: a celeridade processual e o desafogamento do Poder Judiciário. Neste ensaio, cuido especificamente do dispositivo do art. 518, § 1º, inserido pela Lei nº 11.276/2006 e do dispositivo do art. 285-A, inserido pela Lei nº 11.277/2006. Confira-se:
..................................................................Art. 518.
§ 1º. O juiz não receberá o recurso de apelação quando a sentença estiver em conformidade com súmula do Superior Tribunal de Justiça ou do Supremo Tribunal Federal.
Art. 285-A. Quando a matéria controvertida for unicamente de direito e no juízo já houver sido proferida sentença de total improcedência em outros casos idênticos, poderá ser dispensada a citação e proferida sentença, reproduzindo-se o teor da anteriormente prolatada.
§ 1º. Se o autor apelar, é facultado ao juiz decidir, no prazo de 5 (cinco) dias, não manter a sentença e determinar o prosseguimento da ação.
§ 2º. Caso seja mantida a sentença, será ordenada a citação do réu para responder ao recurso.
Nota-se que o art. 518 vem inserido no Capítulo que trata do Recurso de Apelação, regulando medidas a serem adotadas pelo juízo a quo em matéria de juízo de admissibilidade, efeitos em que o recurso é recebido, e a de resposta do recorrido. E o novo § 1º (inserido pela Lei nº 11.277/2006) prevê a possibilidade de o juízo a quo deixar de receber o recurso se entender que sua decisão está de acordo com súmulas do Superior Tribunal de Justiça (STJ) e do Supremo Tribunal Federal (STF).
Já o art. 285-A inova ao permitir que o juízo profira decisão de total improcedência em caso de a demanda versar sobre tema anteriormente decidido de maneira idêntica. Além de desafogar o Poder Judiciário, a demanda também traria o benefício de não se molestar o cidadão, sujeitando-o à condição de réu em demanda que se sabe infrutífera. Tudo isso, é claro, sem prejuízo da possibilidade de o autor recorrer dessa decisão.
Se de um lado é necessária a revisão pontual do sistema processual brasileiro que já vem ocorrendo para tentar promover o acesso à justiça, de outro lado também é necessário rever práticas cotidianas que se desviam de uma boa técnica de argumentação jurídica e que estão intimamente ligadas à Reforma do Poder Judiciário. Refiro-me especialmente (i) à invocação acrítica de precedentes judiciais como espécie de reforço argumentativo nos casos concretos, sem que haja relação de pertinência entre esses e aqueles; e (ii) à elaboração de enunciados de súmula que não têm consistência justificativa por lhes faltar correlação entre os próprios enunciados e as razões decisórias.
O que pretendo demonstrar neste breve ensaio é que a não-reflexão sobre esses padrões de conduta diante do novo ambiente preparado pelas já mencionadas Leis pode levar a resultados contraditórios às expectativas criadas pela reforma. Não se trata aqui de mero perfeccionismo argumentativo, mas do ideal de correção do Direito que não deve ser posto à margem de qualquer processo de reforma institucional.
Sabe-se que a invocação de precedentes judiciais possui finalidades argumentativas diversas, dependendo do contexto em que é utilizado, seja na interpretação de uma norma, seja na fundamentação de um caso concreto. Na primeira hipótese, objetiva ajudar a construir o significado de um enunciado lingüístico; na segunda, objetiva aliar-se a um conjunto de argumentos que embasam um caso concreto. Todavia, o chamado argumento jurisprudencial somente é utilizado com eficácia quando se traça uma precisa relação de proximidade entre o novo caso concreto e o(s) caso(s) julgado(s) ou a súmula de jurisprudência predominante de Tribunal Superior. Trata-se de exigência metodológica a fim de garantir uma força justificativa mínima ao argumento.
Em minha prática de advogado e de auxiliar perante Juízos de Direito de Varas Cíveis, Empresariais e Juizados Especiais Cíveis, tenho me deparado com uma enormidade de casos envolvendo disciplinas como o Direito Empresarial, o Direito do Consumidor e o Direito Civil (incluindo o Direito de Família), sem prejuízo do constante imbricamento com outras disciplinas em questões incidentes (Direito Constitucional, Direito Administrativo e o Direito Processual). Na análise desses casos concretos, tenho notado que quando as partes invocam precedente judicial, o fazem sem uma prévia análise de pertinência para com o caso concreto, prejudicando – e muito – a força justificativa de sua argumentação.
Exemplo disso é a questão que me foi posta para decidir (submetendo o trabalho à devida supervisão do Juiz competente) em matéria Direito do Consumidor perante um Juizado Especial Cível. Determinado cidadão ajuizou demanda objetivando a declaração de inexistência de relação jurídica com sociedade empresária exploradora de atividade econômica no ramo securitário, argumentando não ter anuído com a formação de um determinado contrato. Em defesa, o réu argüiu prescrição da pretensão material, invocando a Súmula nº 101 do STJ: "A ação de indenização do segurado em grupo contra a seguradora prescreve em um ano". Ocorre que, ao analisar os precedentes da mencionada súmula no portal eletrônico do STJ, constatei que tratavam de demanda ajuizada por segurados em face de seguradoras que deixavam de efetuar o pagamento da indenização devida quando da ocorrência do sinistro. Logo, os precedentes não guardavam nenhuma relação de pertinência com o caso concreto, razão pela qual a prescrição argüida com base nessa súmula foi afastada.
Tal prática me leva à reflexão do Prof. Luciano Oliveira, que faz menção ao chamado "reverencialismo". Trata-se do uso excessivo de argumentos de autoridade em trabalhos científicos, encontrando possível origem no "estilo adotado no foro, onde é preciso convencer o juiz de que se está com o melhor direito (e portanto com a melhor doutrina...)" [01]. Parece-me que aqui cabe a mesma observação: a invocação de precedentes judiciais sem a necessária análise da relação de pertinência acaba por transformar um argumento jurídico em mera figura retórica, em adornos do discurso sem verdadeira força justificativa, cuja única finalidade é tentar convencer o órgão jurisdicional de que se está com o "melhor direito" ou, neste ponto, o "melhor Tribunal".
Antes de apontar as implicações práticas do que foi exposto, inclusive suas relações com a teoria da argumentação e a idéia de correção do Direito, examinarei a questão sob outro ponto de vista. Tratarei do problema da elaboração de enunciados de súmula despidos de correlação entre enunciados e razões decisórias. Contudo, cabe fixar um limite neste ensaio: não me proponho a analisar a origem histórica das Súmulas, tampouco os modelos paradigmáticos existentes no Direito comparado. A proposta é tão-somente analisar o problema central acima delineado diante da questão da argumentação jurídica e da correção do Direito.
Atualmente, o Superior Tribunal de Justiça conta com um repertório de 323 enunciados de súmula, datando a mais recente de 05/12/2005 e a mais antiga de 02/05/1990. Já o Supremo Tribunal Federal conta com um repertório de 736 enunciados de súmula, datando a mais recente de 26/11/2003 e a mais antiga de 13/12/1963. A prática dessas Cortes consiste na elaboração de enunciados abstratos e genéricos, de modo a englobar situações de fato inespecíficas e impessoais.
Essas informações conduzem a uma reflexão que gira em torno do que o Prof. Leonardo Greco apontou em seu texto entitulado "Novas súmulas do STF e alguns reflexos sobre o Mandado de Segurança" [02]. Refiro-me à elaboração de enunciados de súmula que não têm consistência justificativa por lhes faltar correlação entre os próprios enunciados e as razões decisórias.
Apenas com o intuito de exemplificar, aponto o exame empreendido sobre o enunciado de súmula nº 625 do Supremo Tribunal Federal, cujo teor é este: "Controvérsia sobre matéria de direito não impede concessão de mandado de segurança". Greco constatou que "os quatro julgados (mencionados como precedentes da Súmula) não são exatamente iguais, mas todos transmitem a idéia de que o direito líquido e certo é a exigência de comprovação documental dos pressupostos fáticos do direito do impetrante. Nenhum deles se refere à ‘matéria de direito’ de que trata a súmula".
Creio ser isso suficiente para justificar a formulação das seguintes questões:
- Como a menção acrítica a precedentes poderia afetar uma exigência mínima de técnica na argumentação jurídica e de correção do Direito?
- Como a produção de enunciados de súmula de jurisprudência predominante sem a devida correlação entre os próprios enunciados e as razões decisivas pode afetar a exigência mínima de técnica na argumentação jurídica e de correção do Direito?
- Como isso pode se relacionar às reformas institucionais do Código de Processo Civil, especificamente com relação aos dispositivos mencionados no início deste ensaio?
Pretendo, a partir de agora, empregar esforços para elaborar uma resposta para essas indagações. No entanto, afirmo de pronto não ter a pretensão de esgotar o tema, nem tampouco fornecer a "única resposta aceitável".
A idéia de correção do Direito distancia-se do postulado positivista de que a Justiça de uma proposição normativa e sua validade não estão necessariamente conectadas. Tem-se uma reaproximação do Direito com a Moral, sem que com isso seja abandonada a racionalidade exigida para a manutenção de seu status científico. Para tanto, revitaliza-se a racionalidade prática [03], que se propõe a justificar a correção de um enunciado normativo mediante a adoção de procedimento discursivo racional, consistindo na adoção de um padrão mínimo argumentativo, isto é, um conjunto de regras delimitadoras do processo de comunicação intersubjetiva.
Neste ensaio, trato especificamente do princípio da sinceridade, que aponta a um ideal de que o agente do discurso somente deve expressar aquilo em que realmente crê. A violação desse ideal discursivo configura verdadeira ante-sala para "decisionismos" injustificados e atenta diretamente contra a pretendida correção do Direito. Ambas as práticas empreendidas pelos operadores do Direito e aqui problematizadas constituem perfeito modelo de insinceridade do discurso, tendo em vista que seus agentes afirmam proposições nas quais efetivamente não crêem. Veja:
Invocar precedentes judiciais em atos jurídicos sem conteúdo decisório tais como uma petição inicial ou uma contestação exigirá dos agentes do discurso a precisa relação de pertinência com o caso, se pretenderem lhe emprestar alguma força justificativa. Contudo, a menção a precedentes inadequados não deverá emprestar força justificativa ao precedente, excetuada a hipótese de eventual acolhimento do argumento pelo órgão jurisdicional – o que se me afigura um equívoco. Para as partes, essa última conduta pode resultar, na pior das hipóteses, no não acolhimento de determinada linha argumentativa, tal como se deu no exemplo que mencionei da defesa com base na súmula nº 101 do STJ.
Resultado totalmente diverso ocorrerá caso o órgão jurisdicional se valha de precedente inadequado para o caso. E não me refiro à utilização de tal precedente como mero argumento contingente, mas como verdadeira razão de decidir que produz efeitos jurídicos graves. Falo do recém-criado art. 285-A do Código de Processo Civil, que possibilita que o órgão jurisdicional julgue imediatamente improcedente o pedido do autor, se constatar a existência de reiteradas decisões no mesmo sentido pelo juízo.
Mais do que nunca, se exigirá dos juízes uma fundamentação comparativa capaz de demonstrar a relação de identidade havida entre o novo caso concreto e os precedentes invocados. Julgar improcedente o pedido do autor com base no art. 285-A sem a precisa análise comparativa configurará decisionismo, violando o princípio da sinceridade e, por conseguinte, o ideal de correção das decisões judiciais. Portanto, será injusta a decisão que se valer de precedente como razão de decidir, sem que haja uma evidente fundamentação a indicar a relação de pertinência entre o caso concreto e o precedente.
Não é excessivo apontar que, embora a Lei permita a interposição do Recurso de Apelação pelo autor (vencido), essa conduta judicial importará em verdadeira supressão de instância, pois o recurso – se admitido – submeterá a causa diretamente à apreciação do Tribunal sem o exame pelo órgão jurisdicional a quo. E mais: imporá ao autor suportar o tempo de duração do processo, nascido de maneira atribulada [04].
Por outro lado, a elaboração de enunciados de súmula sem a devida correlação entre eles e as razões decisivas pode conduzir a uma situação indesejada: Leonardo Greco já apontou o risco de os enunciados virem a assumir completa independência, vida própria, passando a ter força normativa sem vinculação à Lei e/ou aos precedentes [05] e [06]. Isso é especialmente grave caso se leve em consideração a alteração trazida pela Lei nº 11.276/2006 ao art. 518 do Código de Processo Civil, nele inserindo o § 1º. O fenômeno configura verdadeiro exercício anômalo de função pseudo-legislativa pelo Poder Judiciário, confrontando-se diretamente com o princípio da sinceridade discursiva e perturbando a idéia de correção e coerência sistêmica do Direito.
Do que se expôs nos últimos parágrafos é possível concluir que as alterações legislativas em tela, somadas à prática de tais condutas desvinculadas de uma necessária reflexão, podem trazer resultados que irão na contramão do que se pretende pela Reforma do Judiciário. Daí é que se impõe uma análise crítica de tais condutas por parte dos órgãos jurisdicionais para rever (i) a forma como se utilizam dos precedentes, de modo a aprimorar não só sua força justificativa – quando forem invocados como argumentos –, mas também aprimorar sua utilização como razão de decidir, mediante a análise desconstrutiva dos precedentes, viabilizando estabelecer as relações de identidade havidas com o caso concreto. Também se impõe (ii) a revisão da forma como ocasionalmente são elaborados os enunciados de súmula, na medida em que a pretendida pacificação de divergências na interpretação da lei e uniformização do tratamento dos casos depende da construção de um enunciado que esboce, dentro das possibilidades lingüísticas, a maior fidelidade possível com seus precedentes.
Creio que com essas orientações seria prestigiado em boa medida o princípio da sinceridade, noção elementar da racionalidade prática, que serve não só à argumentação jurídica, mas também, em última análise, ao Direito. Isso porque se estaria a garantir que o processo discursivo seguisse premissas racionais para a própria correção do Direito. Correção essa, que também é pilar do Estado Democrático de Direito (art. 3º, I da CRFB), ao lado do direito à razoável duração do processo (art. 5º, LXXXVIII da CRFB).
Notas
01 "Não fale do código de hamurábi! A pesquisa sócio-jurídica na pós-graduação em Direito". Disponível em: http://www.esmape.com.br/downloads/Luciano_Oliveira_Nao_fale_do_codigo_de_Hamurabi.rtf - Acesso em: 10/03/2005, pág. 05.
02 Disponível em: http://www.mundojuridico.adv.br/sis_artigos/artigos.asp?codigo=238 – Acesso em: 24/01/2006.
03 A propósito, confira-se a dissertação de mestrado de Thomas da Rosa de Bustamante: "Argumentação contra legem. A teoria do discurso e a justificação jurídica nos casos mais difíceis". O autor propõe uma reflexão crítica sobre a conhecida Teoria da Argumentação Jurídica de Robert Alexy.
04 Devo recordar ao leitor que determinados Estados da Federação possuem sistema de distribuição/tramitação de processos extremamente inefetivo, como é o caso de São Paulo, onde a demora na distribuição de um processo pode levar 5 (cinco) anos e de um recurso pode levar 3 (três) anos. Nas palavras do Presidente da OAB-SP Luiz Flávio Borges D’Urso: "Não raras vezes, essa demora supera os cinco anos o que tem contribuído para o Estado de São Paulo contar com um estoque de mais de 500 mil recursos na fila para serem distribuídos entre sos desembargadores". Disponível em: http://www.oabsp.org.br/main3.asp?pg=3.2&pgv=a&id_noticias=2790 – Acesso em: 10/02/2006. Notícia sobre o mesmo tema também está disponível em: http://conjur.estadao.com.br/static/text/32958,1 – Acesso em: 10/02/2006.
05 Ob. cit.
06 Isso sem olvidar o problema que diz respeito à invocação equivocada da súmula para embasar a decisão de inadmissão do recurso de apelação. Sobre isso, acredito que o explanado sobre os precedentes também vale, bastando fazer as modificações pontuais: ao invés de julgamento imediato de causa, tem-se a possibilidade de inadmitir recursos de Apelação com base em súmulas de jurisprudência dos Tribunais Superiores. Também aqui se exigirá que o julgador delineie uma profunda relação de identidade entre a súmula invocada e o caso concreto, de modo a não incorrer nas impropriedades apontadas.