Não cabe ao Parquet formular políticas públicas

20/03/2020 às 14:22
Leia nesta página:

Judicializar políticas públicas de combate à covid-19 é inadequado. Compete aos políticos, não ao Ministério Público, formular estratégias de saúde e educação.

1. O FATO

A imprensa noticiou que o Ministério Público Federal (MPF) pediu à Justiça Federal a suspensão por 30 dias de voos internacionais no Aeroporto de Fortaleza (CE). O pedido, direcionado à Agência Nacional de Aviação Civil (Anac) e à União, consta em ação ajuizada nesta quarta-feira (18), e busca reforçar medidas de prevenção à transmissão do novo coronavírus.

A suspensão é referente a operações de pousos e decolagens de aeronaves comerciais procedentes ou com destino ao exterior. A exceção seria para situações emergenciais solicitadas por comandantes. De acordo com o MPF, o prazo inicial da suspensão poderia ser prorrogado conforme a necessidade.


2. O PARQUET A FORMULAÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS

Data vênia, não cabe ao Parquet formular política pública, judicializando temas que não a eles próprios.

Trata-se de governar através do ajuizamento de ações civis públicas.

A formulação de políticas públicas é dada aos políticos. Não a mais que eles.

Disse J. J. Gomes Canotilho (Direito Constitucional, 4ª ed., pg. 912, Portugal, Livraria Almedina) que os juÍzes não se podem transformar em conformadores sociais nem é possível, em termos democráticos processuais, obrigar jurisdicionalmente os órgãos políticos a cumprir um determinado programa de ação.

No entendimento de Konder Komparato (Ensaio sobre o juízo de constitucionalidade de políticas públicas, 1997) a política deliberativa sobre as políticas da República pertence à Política e não à Justiça. Dir-se-ia, outrossim, que as normas constitucionais sobre direitos sociais dependeriam de acolhida pelo legislador, e aí poderiam ser alegadas em juízo (art. 53.3 da Constituição Espanhola).

Realmente, não cabe ao Judiciário a formulação de políticas públicas de caráter social. Não se trata aqui de direito subjetivo público, mas de algo que envolve a adoção clara de políticas econômicas voltadas, globalmente, para o atendimento à saúde, educação, habitação. A formulação de programas nacionais de saúde, por exemplo, com suas estratégias de combate a endemias, é problema do Executivo e do Legislativo, observando as necessárias carências sociais.

Aliás, no REsp 169.876/SP, relator Min. José Delgado, de 16.06.98, DJU de 21.09.98, p.70, já se decidiu que a realização de políticas dependeria de prévia disponibilidade de recursos orçamentários, não cabendo ao Judiciário imiscuir-se.

Caberá à Administração tal tarefa.

O que se vê é mais uma precipitada medida que somente encanta aos que se preocupam com manchetes e notícias de jornais.

O Parquet tem já uma tarefa dada pela Constituição, a partir do artigo 129 da Constituição.


3. DECRETO E NÃO PORTARIA

De outra parte, o Ministério da Justiça, mediante medida no exercício de poder de polícia, própria da Administração, irá publicar medida impedindo o acesso de estrangeiro ao pais, como medida para evitar a expansão da COVID-[19].

O ideal seria que tal administrativo fosse traçado por Decreto editado pelo presidente da República.

Lopes Meirelles define-a como os "atos administrativos internos, pelos quais o chefe do Executivo (ou do Legislativo e do Judiciário, em funções administrativas), ou os chefes de órgãos, repartições ou serviços, expedem determinações gerais ou especiais a seus subordinados, ou nomeiam servidores para funções e cargos secundários. As portarias, como os demais atos administrativos internos, não atingem nem obrigam aos particulares, pela manifesta razão de que os cidadãos não estão sujeitos ao poder hierárquico da Administração pública" (Direito administrativo brasileiro. 2. ed. 1966, p. 192).

Themístocles Brandão Cavalcanti prende-se também ao conceito rígido e interno das portarias, conceituadas como "o meio, ou melhor, a forma de que se revestem os atos administrativos destinados a produzir efeito dentro das repartições, e a regular a ordem interna dos serviços. Constitui também a portaria o instrumento das autoridades administrativas para no mear, demitir, suspender, licenciar certos empregados, quando não gozem estes de garantias e prerrogativas legais" (Curso de direito administrativo. 6. ed. 1961. p. 63).

A portaria não pode criar direitos novos ou obrigações novas, não estabelecidos no texto básico; não pode ordenar ou proibir o que o texto fundamental ordena, ou não proíbe; não pode facultar, ou proibir diversamente do que o texto básico estabelece.

Há no caso a Lei 13.979, na matéria, que deve ser objeto de regulamentação através de decreto e não de portaria, inclusive no que concerne às medidas quanto ao exercício do poder de polícia, como é o caso da internação e da quarentena devidas em nome da saúde pública, do bem comum. Essas medidas devem ser tomadas no cumprimento e no exercício do poder de polícia.

No Brasil, admitem-se os chamados regulamentos de execução ou executivos.

O regulamento de execução se presta a:

a) precisar o conteúdo dos conceitos de modo sintético referidos pela lei;

b) determinar o modo de agir da Administração nas relações que, necessariamente, travará com os particulares na oportunidade da execução da lei;

c) surgem na chamada discricionariedade técnica, quando, na lição de Oswaldo Bandeira de Mello (Princípios Gerais de Direito Administrativo, volume I, 1980, pág. 310), se tem: “o Legislativo delega ao Executivo as operações de acertar a existência de fatos e condições para a aplicação da Lei, os pormenores necessários para que as suas normas possam efetivar-se. Ela encontra corpo nas atividades estatais de controle. A lei da habilitação fixa os princípios gerais da ingerência governamental e entrega ao Executivo o encargo de determinar e verificar os fatos e as condições em que os princípios legais devem ter aplicação”. Trata-se da Administração explicar técnico-cientificamente os pressupostos de fato previstos em lei.

No Brasil, alguns juristas, quando vigente a última Constituição, defenderam a tese de que o país admitia os regulamentos autônomos, sob o fundamento de que o artigo 81, V, atribuía ao Presidente da República a competência para “dispor sobre a estruturação, atribuições e funcionamento dos órgãos da administração federal”. Ora, os regulamentos de organização devem ser editados na forma da lei, de modo que não podem ser editados independentemente da lei.

Não há no Brasil regulamentos independentes, há regulamentos de execução, que servem para aplicação da lei. Não podem operar contra legem, ultra legem, nem praeter legem. Operam secundum legem.

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No caso em discussão, a regulamentação desse poder de polícia dar-se-á diante de decretos de regulamentação editados pelo presidente da República. Dentre outras medidas necessárias, o decreto deverá determinar que medidas o corpo de saúde envolvido poderá tomar para quem se nega a internação e outras similares.


4. CABE O EXERCÍCIO DO PODER DE POLÍCIA À ADMINISTRAÇÃO À LUZ DO PRINCÍPIO DA SUPREMACIA DO INTERESSE PÚBLICO

Atende-se aos casos de relevância e urgência na aplicação do modelo legislativo no que concerne ao exercício da autoexecutoriedade do ato administrativo para que se possa ter o poder de policia.

Para o caso há o atendimento do principio da supremacia do interesse público sobre o interesse privado, razão pela qual fala-se da executoriedade dos atos administrativos.

Como lecionou Celso Antônio Bandeira de Mello(Curso de direito administrativo, 17ª edição, pág. 87), como expressão dessa supremacia, a Administração, por representar o interesse público, tem a possibilidade, nos termos da lei, de constituir terceiros em obrigações mediante atos unilaterais. tais atos são imperativos como quaisquer atos do Estado. Demais disso, como disse Celso Antônio Bandeira de Mello, trazem consigo a decorrente exigibilidade, traduzida na previsão leal de sanções ou providências indiretas que induzam o administrado a acatá-los. Bastas vezes ensejam, ainda, que a própria Administração possa, por si mesma, executar a pretensão traduzida no ato, sem necessidade de recorrer previamente às vias judiciais para obtê-la. É a chamada autoexecutoriedade dos atos administrativos. Essa ocorre nas seguintes hipóteses: a) quando a lei expressamente preveja tal comportamento; b) quando a providência for urgente ao ponto de demandá-la de imediato, por não haver outra via de igual eficácia e existir sério risco de perecimento do interesse público se não for adotada.

Também por força desta posição de supremacia do interesse público e de quem o representa na esfera administrativa, reconhece-se à Administração a possibilidade de revogar os próprios atos inconvenientes ou inoportunos, conquanto dentro de certos limites, assim como o dever de anular os atos inválidos que haja praticado. É o princípio da autotutela dos atos administrativos.

Trata-se de executoriedade dos atos administrativos unilaterais. Através dele a Administração pode modificar, por sua única vontade, situações jurídicas, sem o consentimento dos atingidos pelo ato.

É a chamada execução forçada na via administrativa, que consiste em uma via jurídica especial, própria do ato administrativo, fazendo a Administração prescindir da declaratio iuris do Poder Judiciário.

A executoriedade, pois, por sua importância, é a manifestação do poder de autotutela da Administração Pública, pelo qual esta tem a possibilidade de realizar, de forma coativa, o provimento no caso de oposição do sujeito passivo.

Pois a executoriedade dos atos administrativos tem fundamental importância no exercício do poder de polícia administrativo, na faculdade que tem a Administração Pública de disciplinar e limitar, em prol de interesse público adequado, os direitos e liberdades individuais, como já ensinou Caio Tácito (O poder de polícia e seus limites. in Rev. De Dir. Adm., volume 27, páginas 1 e seguintes).

Repita-se que não cabe seja ao Parquet ou ao Judiciário a tarefa de formulação de política pública. À Administração caberá, no exercício do poder de polícia tomar as devidas providências.

À Administração caberá executar medidas no exercício do poder de polícia como ainda aplicar providências visando à sua correta adoção, seja monitorando, seja disciplinando a sua atuação e a correta obediência pelos administrados.

Percebe-se, pois, que, dentro do narrado, não há espaço para atuações laterais ou colaterais que substituam a Administração no seu exercício do poder de policia, na formulação de politicas públicas de saúde pública.

A ação noticiada deve ser julgada extinta por falta de interesse de agir, via carência de ação.

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Sobre o autor
Rogério Tadeu Romano

Procurador Regional da República aposentado. Professor de Processo Penal e Direito Penal. Advogado.

Informações sobre o texto

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